Água: BNDES é financiador de 80% das privatizações
Foto: Igor Sperotto
Enquanto o Brasil privatiza a água o mundo remunicipaliza. Sistema nacional de saneamento, que inclui água e esgotos, está na mira do setor privado e privatização será bancada pelo BNDES. No Rio Grande do Sul, mesmo que faça parte das exigências de salvaguarda propostas pelo governo Temer, ao menos no discurso Sartori descarta a possibilidade de privatizar Corsan e Banrisul e oferece setor energético como contrapartida aos benefícios do Regime de Recuperação Fiscal dos Estados. O projeto encontra dificuldades no Congresso
Ao mesmo tempo que o governo gaúcho tenta emplacar a privatização do setor energético no Rio Grande do Sul, a União busca promover rapidamente a privatização do setor de saneamento no país, em pelo menos duas frentes. A primeira é o programa de concessões do governo federal para o setor de saneamento nos estados, tocado pelo Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O banco vai financiar até 80% dos projetos privados, com taxa de juros de longo prazo (TJLP) e períodos de até 20 anos. O BNDES possui uma área de Desestatização, e é, conforme descrito em seu próprio site, “o condutor do processo de concessões e outras formas de desestatização de ativos do Programa de Parcerias para Investimentos (PPI), do Governo Federal”.
Sob o pretexto de universalizar o saneamento no Brasil, a instituição lançou em novembro o programa de concessões estaduais de saneamento, integrante do PPI, para “desenvolver projetos de parcerias com iniciativa privada para a realização de investimentos em abastecimento de água e esgotamento sanitário”. Em 9 de novembro, foi publicado o edital de pré-qualificação técnica e jurídica para interessados em fazer os estudos técnicos de estruturação dos projetos. As empresas qualificadas poderão disputar as licitações feitas pelo BNDES para contratação dos estudos técnicos em cada estado. Habilitaram-se Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins, sendo que RJ, RO e PA já haviam tido seus projetos incluídos na primeira reunião do Conselho do PPI, ainda em setembro.
Enquanto o governo gaúcho tenta emplacar a privatização do setor energético no Rio Grande do Sul, a União busca promover rapidamente a privatização do setor de saneamento no país, em pelo menos duas frentes. A primeira é o programa de concessões do governo federal para o setor de saneamento nos estados, tocado pelo Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O banco vai financiar até 80% dos projetos privados, com taxa de juros de longo prazo (TJLP) e períodos de até 20 anos. O BNDES possui uma área de Desestatização, e é, conforme descrito em seu próprio site, “o condutor do processo de concessões e outras formas de desestatização de ativos do Programa de Parcerias para Investimentos (PPI), do Governo Federal”.
No final de março teve início a contratação dos estudos. Os dois primeiros estados da lista foram Alagoas e Amapá. Na sequência, dentro do primeiro lote, vem licitações para Maranhão, Pará, Pernambuco e Sergipe. O segundo lote incluirá Acre, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Santa Catarina. Dados divulgados pelo BNDES indicam que as companhias estaduais que aderiram ao programa atendem a 90 milhões de pessoas em 2,3 mil municípios. O programa está aberto a novas adesões.
Brasil privatiza enquanto o mundo remunicipaliza
Estudo realizado pelos organismos internacionais Unidade Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos (PSIRU), Instituto Transnacional (TNI) e Observatório Multinacional, publicado em 2015, apontou para uma tendência global de remunicipalização dos serviços de água e saneamento a partir do ano 2000. O estudo apresenta 180 casos de remunicipalização, entre eles Berlim, Budapeste, Buenos Aires e Paris, em 35 países. Nos Estados Unidos, frequentemente citado por defensores do enxugamento do Estado no Brasil, foram registrados 49 casos. Falta de investimentos em infraestrutura, aumento das tarifas e danos ambientais são alguns dos problemas apontados nas privatizações dos serviços e que embasaram os processos de remunicipalização.
A segunda grande articulação do governo Michel Temer (PMDB) para tentar garantir a privatização do saneamento é o Projeto de Lei Complementar (PLP) 343, o do Regime de Recuperação Fiscal dos Estados, enviado pelo Executivo em fevereiro à Câmara dos Deputados. O texto inicial estabeleceu a formatação, por parte dos estados, de um conjunto de leis autorizando “a privatização de empresas dos setores financeiro, de energia e de saneamento, com vistas à utilização dos recursos para quitação de passivos”. Acabou gerando uma série de resistências dentro e fora do Congresso, que alongaram sua apreciação.
Fontes: PSIRU, Food & Water Watch, Corporate Accountability International, Remunicipalisation Tracker
Fontes: PSIRU, Food & Water Watch, Corporate Accountability International, Remunicipalisation Tracker
Corsan teve lucro 27% maior em 2016 do que no ano anterior
O governo gaúcho nega qualquer encaminhamento para a privatização da Corsan, a sociedade de economia mista controlada pela administração estadual que responde pelo abastecimento de água para dois terços da população (6 milhões de habitantes em 316 das 497 cidades do estado) e fornece esgotamento sanitário para 700 mil pessoas, em 50 cidades.
Conforme o secretário Geral de Governo, Carlos Búrigo, nas tratativas em Brasília para mudar as contrapartidas exigidas dos estados, o RS pleiteou a inclusão de emendas que alterem a redação do texto, de forma a excluir tanto o setor de saneamento como o financeiro (leia-se Banrisul). O Estado pretende incluir imóveis como ativos na negociação. “A Corsan não entra na negociação, porque tem uma ação social. Existem municípios que dão resultado econômico-financeiro para a Corsan. Mas existem municípios que não, e precisam ser subsidiados. Então, se fizermos a transferência para a iniciativa privada, estes municípios ficarão desassistidos”.
Foto: Igor Sperotto
Os números da Corsan explicam porque, apesar da decisão do governo, a possibilidade de compra ou outro tipo de participação privada continua a ser pleiteada por empresas do setor. Mesmo abrangendo municípios onde o serviço precisa ser subsidiado, a companhia obteve em 2016 receita líquida de R$ 2,3 bilhões e lucro líquido de 207,8 milhões. O lucro foi 27% superior ao registrado em 2015. O argumento que já chegou a ser exposto por empresas interessadas na privatização, e que engordaria ainda mais os números da parte a ser vendida, não convenceu integrantes nem do atual governo e nem de administrações anteriores. No modelo idealizado por investidores privados, onde o serviço seria dividido por bacias, as empresas ficariam com as grandes cidades do sistema e o governo com as que necessitam de subsídio.
O artigo do texto que trata das privatizações também teve sua flexibilização indicada pelo relator do projeto na Câmara, o deputado federal Pedro Paulo (PMDB/RJ). Só que, no caso do Rio, o único outro estado além do RS interessado em aderir ao Plano, a exclusão da exigência de privatização do setor de saneamento parece jogada ensaiada para acalmar as resistências à venda da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que são muitas. Além de o Rio ter sido um dos primeiros estados a se habilitarem ao programa de concessões do governo federal para o setor de saneamento, a privatização da Cedae já constava no acordo prévio que o governo federal tentou fechar com o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) sobre o socorro financeiro em janeiro, à revelia da existência de lei que regulamentasse as negociações.
Para qualquer dos estados, o acordo não passa a valer a partir da aprovação da Câmara. Precisa, antes, ser revalidado pelas Assembleias Legislativas.
ENTREVISTA | LEO HELLER
Governo federal tem pressa em privatizar
Foto: Foca Lisboa/UFMG/Divulgação
O Extra Classe ouviu Leo Heller, relator das Nações Unidas para água e saneamento, além de pesquisador da Fiocruz/Minas Gerais.
Extra Classe – O atual governo tem pressa em adotar um modelo privado de saneamento?
Leo Heller – Os passos iniciais vão na direção de colocar a participação privada no setor com uma prioridade muito alta. A decisão não é somente do governo federal, porque a titularidade do serviço, de fato, é municipal. Mas o governo federal tem muita força.
EC – A forma de ingresso do setor privado, através de financiamentos de um banco de fomento público, não é questionável? O setor público argumenta que não tem recursos para investir e por isso um banco público financia o investimento privado. Não seria mais fácil financiar diretamente os estados ou municípios?
Heller – Os estudos que já avaliaram esta questão do investimento privado no saneamento mostraram que as empresas privadas colocam muito pouco recurso próprio. Então o argumento de que é preciso privatizar porque o Estado está insolvente e o investidor privado vai qualificar e ampliar o serviço tem, via de regra, se mostrado um tanto falacioso. O que ocorre na prática nestes casos é que ou o recurso vem de bancos públicos, como estamos assistindo aqui no Brasil, ou vem de aumento nas tarifas.
EC – O senhor acredita que há tempo hábil para a privatização do setor durante este governo?
Heller – Por enquanto, são estudos. Mas é evidente que são indutores. O interessante é que o governo brasileiro faz a opção por privatizar sem que existam muitas evidências de que este é o melhor caminho. A privatização do saneamento não é algo novo: tem pelo menos 200 anos. Aconteceu no século 19 e depois houve uma onda mais recente, entre os anos 1980 e 1990. Só que, depois, muitos desses sistemas foram reestatizados em função dos problemas que apresentaram. Além disso, é complicada na proposta federal a questão da escala: ela pretende uma privatização em massa. Não me recordo de casos semelhantes, a não ser dos ocorridos na era Margareth Thatcher na Grã-Bretanha e do caso do Chile. E o modelo inglês tem até hoje uma série de problemas.
EC – Existem alternativas viáveis?
Heller – Sim, existem muitos modelos de prestação pública do serviço. E alguns com alguma participação privada. Hoje o que predomina em termos internacionais são os serviços públicos e locais. No Brasil temos vários serviços municipais de excelente qualidade e alguns problemáticos. Também existem municípios muito pequenos, onde não há escala para o serviço. Para estes casos, uma boa solução, que já vem sendo aplicada, são os consórcios intermunicipais.
Números do setor energético desmentem governo estadual
O governo José Ivo Sartori (PMDB) gaúcho vai insistir na privatização do setor de energia, que engloba a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a Companhia Riograndense de Mineração (CRM) e a Companhia de Gás do Estado do RS (Sulgás), com ou sem o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados proposto pela União. A garantia vem tanto do secretário Geral de Governo, Carlos Búrigo, como do líder do governo na Assembleia, deputado Gabriel Souza (PMDB). “O caminho é privatizar ou federalizar, independente da nossa questão com o governo federal. No mundo atual a iniciativa privada pode entregar serviços qualificados e melhores para a população”, resume o secretário.
A desvinculação da venda das três estatais das negociações do Regime de Recuperação Fiscal dos Estados é o mais recente capítulo do imbróglio em que se transformou a tentativa de privatização do setor de energia no estado. No núcleo do Executivo gaúcho a privatização se tornou uma espécie de ponto de honra, cujo principal argumento, até agora, tem sido o citado por Búrigo: de que a iniciativa privada entrega serviços qualificados e melhores. O problema está nos números, que atrapalham o discurso do governo, geram dissabores na base aliada e dúvidas na população.
O Executivo ensaiou levar o projeto (a Proposta de Emenda Constitucional 259/2016) à votação na convocação extraordinária da Assembleia Legislativa que fez no apagar das luzes de 2016, mas não tinha os 33 votos necessários (em dois turnos) para fazê-lo passar. E segue sem tê-los. Ante a hesitação da base aliada, o governo ventilou a informação de que faria o plebiscito, uma possibilidade que repete desde 2015. “É um blefe. Tudo o que o governo não quer é fazer o plebiscito, porque não tem o menor controle sobre o que a população pode decidir. O que o governo deseja é estabelecer a tese de que vender patrimônio e aderir ao Regime de Recuperação Fiscal é a única saída possível para o estado”, adverte o professor de Administração Pública da Ufrgs, Aragon Érico Dasso Júnior.
Para viabilizar a privatização do setor de energia, formatada desde o início da gestão Sartori, o Executivo gaúcho vem substituindo argumentos. Todos acabaram sendo questionados ou contestados pelas próprias empresas, por dados disponíveis no Tribunal de Contas do Estado (TCE), na Comissão de Finanças da Assembleia Legislativa e nos balanços das companhias. Primeiro, o Executivo, no final de novembro, quando apresentou a proposta de venda ou federalização das três companhias dentro de um pacote de medidas encaminhado ao Legislativo, justificou a ação informando que as empresas eram deficitárias.
Lucro líquido da Sulgás pode bater R$128 mi
Antes ainda de o pacote começar a ser apreciado pelos deputados, integrantes dos quadros técnicos das empresas contestaram as informações. A situação mais contundente foi a da companhia de gás. A Associação dos Empregados da Sulgás (Assulgás) abriu os números da empresa. Seu lucro líquido, que em 2015 foi de R$ 68,5 milhões, deve alcançar R$ 128 milhões em 2016. Em julho do ano passado, a companhia foi apontada como a terceira melhor do setor de energia do país pelo ranking Melhores e Maiores da Revista Exame. E ficou em primeiro lugar no indicador ‘Rentabilidade’ do setor de Petróleo e Gás no ranking Valor 1000, da revista Valor Econômico.
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
A partir das contestações, o Executivo adotou nova justificativa, a de que o Estado precisa se concentrar na prestação de serviços essenciais como saúde, educação e segurança e de que a situação das finanças inviabiliza os investimentos que as empresas precisam. Entidades que representam os servidores das companhias e entidades de classe, como o Sindicato dos Engenheiros (Senge/RS) voltaram a questionar as informações. A Sulgás divulgou que não recebe investimentos do governo porque suas despesas e investimentos são pagos com recursos resultantes da venda de gás natural. E que repassa dividendos (algumas dezenas de milhões anuais) ao Estado. No caso da CEEE, o Executivo destacou ainda sua pesada estrutura operacional e o fato de não conseguir repassar seus custos ao preço da tarifa. A UniproCEEE rebateu que seria impossível repassar todos os custos uma vez que eles incluem o passivo de 80% absorvido na primeira privatização.
Eliseu Padilha é um dos principais articuladores
Para completar, dois deputados da base aliada e um do PTB, que se posiciona como independente, passaram a presidir frentes parlamentares em defesa das três companhias passíveis de privatização. Foi quando o governo mudou pela segunda vez a estratégia. A partir de articulações diretas do ministro-chefe da Casa Civil, o gaúcho Eliseu Padilha, integrantes do Executivo passaram a anunciar que o RS precisava aderir ao Plano de Recuperação Fiscal dos Estados idealizado pelo governo federal como forma de equilibrar suas finanças. E que, para tanto, precisaria promover uma operação de ‘disponibilização de ativos’. No caso, os ativos das companhias do setor de energia.
Mas ao invés de viabilizar as vendas, o Executivo gerou ainda mais questionamentos sobre as operações. Além disso, o interesse da União e os termos da ‘recuperação fiscal’, que técnicos da própria Secretaria da Fazenda projetam, aumentará a dívida do Estado em cerca de R$ 30 bilhões, atraíram a atenção dos órgãos de controle. Na segunda quinzena de março o TCE gaúcho, atendendo a uma solicitação do Ministério Público de Contas (MPC/RS), determinou a abertura de uma inspeção especial para acompanhar as negociações entre Estado e União. Uma semana depois, o Executivo decidiu novamente desatrelar as vendas das três companhias da adesão ao Plano.