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Ando com os ouvidos entupidos. Nada de zunidos e zumbidos. Apenas acúmulo auditivo, de prestar atenção ao que contam, cantam, citam.
O dr sugeriu remover o volume de sons depositados nos pavilhões.
Com a lupa, o cotonete me traz lembranças, amarelecidas e enceradas pelo tempo. Numa maçaroca, ouço a maravilhosa voz de Edda Dell´Orso em Era Uma Vez no Oeste misturada com a voz da cancela do shopping, que me diz volte sempre, embora eu queira voltar é pra Edda e todas suas trilhas italianas.
Agora soa o rouquenho e nervosinho do Pato Donald do genial e suave Clarence Nash e aí se junta com Procópio Ferreira interpretando uma lista telefônica. Fico boquiaberto com ambos, capacidades vocais memoráveis.
Cotoneteio a orelha de novo, retiro pegajosa porção sonora. Consigo distinguir trocentos fragmentos: a risada de Tom Hulce em Amadeus, Manoel de Barros dizendo uns poemas no balcão da livraria Dazibao no Rio dos meados dos 90, Quintana fala outros no café da Caldas Jr.
E também a melhor ária de ópera feita pra voz masculina, em Lakmé, do Delibes, e eu nem gosto tanto de ópera. E ainda, vinda dos confins da infância, o chamamento por alto falante através do vento de mais uma sessão do fabuloso cinema do Sesi ao ar livre, fins dos 50.
Espalho as sonoridades e vou reconhecendo, músicas e falas: num aeroporto, a voz sensual da Iris Lettiéri me acalma no caos da ocasião, enquanto ressoam as proparoxítonas do Drama de Angélica com Jararaca e Ratinho, proparoxítonas sem parentesco com as de Construção, do Chico, também ressoantes.
De repente, junto reouço zilhões de I love yous, que meu ingreis nunca reproduziu direito. Aí o cinema ataca com tudo, um mix com a regressão vocal de Hal em 2001, o Darth Vader arfante do poderoso James Earl Jones e aquele coquetel de vozes que formam a voz do E.T., enquanto Marlon Brando repete horror, horror em Apocalipse Now.
Em outra limpeza, Millôr em Poa falando das palmeiras da Praça Garibaldi, uma entrevista do LFV na rádio JB, Sean Connery envolvente em In My Life. E meu irmão Jorge, guri numa árvore, soltando a bela voz em Dolores Sierra.
Outro cotonete traz duas alegrias: o editor Júlio Mariani, da extinta Folha da Manhã, me diz: Inventa um título, começa a coluna amanhã; isso no mesmo dia que nasceu minha filha Letícia e que anos depois ao violão me derreteria com Dans mon ile de Henry Salvador.
No último cotonete, infinitas vezes repetidas, a frase mais linda de se ouvir em casas alheias: Tu é de casa.
(Tem mais. Mas a vontade é de enfiar tudo de novo no ouvido.)