Arte: Fábio Alves (Bold) sobre foto Panda Filmes/Divulgação
Arte: Fábio Alves (Bold) sobre foto Panda Filmes/Divulgação
Documentário sobre o Presídio Central revela o poder das facções criminosas que atuam sob a conivência do Estado. Existem muitos infernos nesta terra e o Presídio Central de Porto Alegre deve ser um deles. Um dos maiores presídios do Brasil, hoje chamado de Cadeia Pública, foi considerado o pior do país em CPI realizada no Congresso Nacional em 2008 e um dos piores da América Latina pela Organização dos Estados Americanos. Pouca gente vê o que se passa no coração desta ilha de exclusão, pois nem mesmo os guardas têm acesso a suas galerias superlotadas – não existem celas, porque paredes foram derrubadas para que mais de 4,5 mil apenados pudessem ocupar um espaço feito para abrigar menos de 1,9 mil pessoas.
“Apenas travestis (sic), criminosos sexuais e infratores de trânsito ficam em galerias que não são comandadas pelas facções. Ao pisar no Central, 80% dos apenados são imediatamente recrutados pelo crime”, conta Tatiana Sager, diretora do documentário Central: o poder das facções no maior presídio do Brasil, em cartaz em cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. A impossibilidade de acesso ao interior do cárcere fez com que a diretora fornecesse câmeras para que os detentos registrassem um pouco da rotina e dos conflitos dos que sobrevivem naquela que já foi chamada de masmorra do século 21. As imagens inéditas de homens apinhados em condições de higiene extremamente precárias vivendo sob o domínio do medo são chocantes. O filme foi inspirado no livro Falange Gaúcha – a história do Crime Organizado no RS, de Renato Dorneles, que co-dirige o documentário. O tema já havia sido abordado por Tatiana no curta O poder entre as grades, de 2014, que tratou da história do crime organizado no Rio Grande do Sul e do surgimento da organização que liderou o crime no estado por duas décadas.
As imagens do Central são intercaladas com depoimentos dos presos e seus familiares e entrevistas colhidas com policiais militares e autoridades como o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, o promotor de Justiça Gilmar Bortolotto, e o sociólogo Marcos Rolim. O filme apresenta opiniões divergentes sobre a crise carcerária que está no centro de uma das questões mais urgentes para grande parte de brasileiros: a da segurança pública. “Está provado no filme que as facções comandam o presídio gerenciando as galerias e a vida dos detentos com a completa conivência do Estado”, afirma Tatiana. O documentário denuncia a situação de calamidade e as condições subumanas sob as quais vivem os presos e mostra como a crise prisional brasileira é um problema que extrapola os muros e grades e atinge toda a sociedade. Mas o motor principal dessa violência, o tráfico de drogas e a guerra contra ele que aprisiona e mata milhares de jovens negros no país, não é um tema explorado no filme. “O Central é feito de negros e de pobres, 70% dos presos estão lá por causa do tráfico”, considera Tatiana. Ela acredita que se houvesse a descriminalização das drogas as condições nas prisões brasileiras seriam mais humanas: “Sou a favor da descriminalização, mas o Renato não é da mesma opinião, por isso o filme não toma um partido nesta questão”.
No Brasil gigante de contradições, o Estado não exerce o poder dentro do local criado por ele próprio para punir aqueles que cometeram os crimes que ele também julgou. A separação das galerias entre facções, segundo as autoridades carcerárias, serve para reduzir danos, diminuindo as mortes (atualmente 89% das mortes na Cadeia Pública ocorrem por doenças). Mas o sistema acaba por ajudar na organização do crime, alimentando suas fileiras. A cineasta revela: “Cada galeria tem seu prefeito e nada acontece sem autorização do chefe. Tivemos que negociar com as lideranças para colocar as câmeras dentro da prisão”. Ironicamente, os líderes das facções do Central também co-dirigiram o filme de Tatiana.
Desde que foi finalizado, há dois anos, o documentário tem sido exibido em sessões semanais na Fase. Tatiana acredita que as exibições têm mudado a percepção glamourizada que alguns jovens têm sobre o presídio. Segundo ela, o diretor da instituição e os monitores veem como positivas as sessões. Tatiana também dá palestras em escolas de Direito e Jornalismo do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, promovendo não apenas o filme, mas o importante debate sobre a questão da segurança. Enquanto era exibido na Fase, Central também cumpria o roteiro de festivais. Recebeu os prêmios de Melhor Documentário de Língua Portuguesa no FESTin – Portugal (2016) e de Melhor Documentário no 33° Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo (2016), no RS. Imagens captadas que não foram usadas no documentário serão incluídas em Retratos do Cárcere, série dirigida por Tatiana e Renato, que pretende desenhar um retrato do sistema prisional brasileiro e está em fase de produção. Os 13 capítulos da série irão abordar temas como religião, menores infratores e ressocialização. Há também um capítulo que será dedicado aos piores presídios do país. Por causa da guerra entre as duas principais facções que comandam o tráfico no país, o PCC e o Comando Vermelho, o ano de 2017 iniciou com chacinas em presídios em Manaus, Boa Vista e Natal. Até o dia 16, o número de mortos já chegava a 134, média de quase oito pessoas por dia.
Em três semanas de exibição, Central foi visto por 10 mil pessoas, sendo o filme nacional de maior bilheteria no país durante o período, façanha para um documentário. Tatiana não descansa: “Não é somente por divulgação que fazemos as sessões nas universidades, estamos tentando discutir maneiras de enfrentarmos o grave problema da criminalidade. É uma forma de ativismo”. Em 19 de abril ela teve uma reunião com o secretário de Segurança Cezar Schirmer, a quem fez um convite para que assistisse ao filme. Tatiana também solicitou autorização para exibi-lo dentro da Cadeia Pública. Segundo a cineasta-ativista, Schirmer comprometeu-se em atender o seu pedido.