O louco, a sinfonia e dois talentos unidos pela arte
Foto: Igor Sperotto e Arquivo Pessoal
O rosto de Maria Roswitha Wingen é um misto de delicadeza e força sustentado pelo corpo encurvado pela velhice que ela ostenta com elegância e dignidade. Roswitha Bitterlich, como é conhecida no meio artístico, é uma senhora de olhos claros, fala mansa e humilde, que, aos 94 anos de idade, transforma espiritualidade e sentimentos em obras de arte. Ela vive em uma casa simples na zona Sul de Porto Alegre. Com as guerras, amores e uma história dividida entre duas pátrias, aprendeu a escolher as palavras na hora de falar. Nos anos 1930, Roswitha ficou conhecida na Áustria como a “menina prodígio” que pintava magistralmente. “Nunca gostei de ser prodígio”, diz, e talvez por isso agora prefira a discrição e o silêncio sobre seu passado, ainda que a grandeza de seus traços tenha ultrapassado fronteiras. A obra da menina Roswitha inspirou uma sinfonia.
Nascida na Áustria, em 24 de abril de 1920, teve uma infância povoada por personagens de contos e histórias que lia e ouvia. O pai, Hans Maria Bitterlich, pintava e esculpia em madeira anões e figuras de trabalhadores. Formado em Direito por pressão familiar, Hans foi secretário de Estado, mas, achando monótona a função, mudou-se com mulher e filhos para a Bohemia, na antiga Tchecoslováquia, onde os parentes tinham uma indústria e ele assumiu como subgerente. Ficaram lá durante sete anos, tempo de harmonia e paz para Roswitha. “Brincava junto à natureza, em meio a flores, um lago e esconderijos”, recorda.
A mãe, Gabriele Bitterlich, tinha uma espiritualidade profunda, relata. Tornou-se referência da Obra dos Santos Anjos (Opus Angelorum). “A Obra fala da ênfase do papel dos anjos na vida das pessoas, na santificação e recondução a Deus”, observou o padre André Wingen, filho de Roswitha, que mora na Áustria, e falou ao ExtraClasse durante uma visita a Porto Alegre. As revelações de Gabriele marcaram fiéis e a própria Roswitha. “Pintei sempre para a honra de Deus, para fazer conhecer os Santos Anjos, e esse é meu objetivo ainda hoje”, revela a artista.
Mesmo durante a guerra, quando faltava papel e não podia imprimir em cores, Roswitha continuou desenhando e pintando. Estudou na Faculdade de Belas Artes de Stuttgart até 1943, e em Berlim, até meados de 1944, quando os bombardeios se intensificaram e a levaram de volta a Innsbruk, na Áustria. Em seus quadros, uma Nossa Senhora triste reflete os horrores da guerra e um anjo retrata a história do noivo, Michael Brink, membro da resistência, que sobreviveu ao campo de concentração na Alemanha. Roswitha casou-se com Brink em 1945, na Áustria, e teve uma filha.
Brink faleceu dois anos depois. Viúva, Roswitha foi para Buenos Aires em 1955 e, depois, para o Brasil, ao encontro do amigo Hubert Wingen, com quem se correspondia havia muitos anos. Em solo tropical, casou-se com Wingen e teve mais três filhos. No Rio Grande do Sul, pintou esgrafitos e vitrais em igrejas, fachadas de mosteiros e altares. Um conhecido a indicou para ilustrar livros de contos da Editora Globo. Hoje, mesmo com as dificuldades inerentes à idade, continua pintando, sentada junto a uma larga mesa, rodeada de arte, histórias e lembranças.
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Eric(h) Zeisl: o compositor
Em 1935, o compositor Eric(h) Zeisl visitou a exposição de quadros da jovem prodígio de 14 anos, cujas obras causavam alvoroço na Áustria. Ao deparar com quatro telas pintadas por Roswitha Bitterlich, Zeisl compôs aquela que seria sua sinfonia mais conhecida nos Estados Unidos, país que o acolheu quando ele fugia da perseguição nazista. Zeisl tirou o h do nome ao se estabelecer em território norte-americano. Embora sua obra tenha se tornado mais conhecida nesse país, a carreira artística começou muito antes, ainda em Viena, onde nasceu em 18 de maio de 1905. Zeisl produziu uma vasta obra de sonatas, solos, óperas, canções, músicas para coro e orquestra, piano e violino.
Foto: Arquivo Pessoal
Em Nova Iorque, seus trabalhos orquestrados foram apresentados em rádios. Em Los Angeles, compôs músicas para filmes da MGM. Em 1944, soube que os pais, que haviam permanecido na Áustria, foram levados para um campo de concentração, onde morreram. Zeisl compôs então o Réquiem Ebraico, em homenagem aos mortos no Holocausto. O compositor faleceu aos 53 anos de idade, em 18 de fevereiro de 1959. Recentemente, em 2012, o diretor Herbert Krill recuperou a extraordinária trajetória do compositor no documentário Eric(h) Zeisl, uma vida inacabada, e relatou, entre outras histórias, como as obras de Roswitha o inspiraram a escrever uma sinfonia.
O documentário foi apresentado em canais de televisão pública da Alemanha e da Áustria, participou do Festival de Cinema Judaico de Viena e do Festival de Música na TV de Praga, e foi comprado pelo Ministério da Educação austríaco para ser exibido em escolas. Em 2013, a foto de O Louco estampou a capa do CD com uma gravação da Pequena Sinfonia a partir das pinturas de Roswitha Bitterlich interpretada pela Ucla Philarmonia, sob a direção do maestro Neal Stulberg (gravadora Yarlung Records).
Foto: Reprodução de Nico Esteves
Foto: Reprodução de Nico Esteves
A sinfonia de Zeisl inspirou-se em mais três obras de Roswitha. Ela vasculha a memória para contar como criou cada uma. Pobres Almas remete à educação religiosa herdada da mãe: “A gente rezava para as pobres almas e ouvia falar de pessoas que tiveram contato com elas, de maneira que se formou essa ansiedade das almas no purgatório para chegar a Deus”. Sobre O Velório, ela ri e explica: “É uma caricatura”. Aprendeu com o pai. “Era uma pessoa com muito bom humor”. A Fuga dos Santos era o título de um livro que a fascinou.
Informações sobre o CD da Ucla Philarmonia interpretando a Pequena Sinfonia a partir das pinturas de Roswitha Bitterlich de Erich Zeisl podem ser obtidas em www.yarlungrecords.com Informações sobre a vida, obra e histórias de Eric Zeisl estão no site http://www.zeisl.com coordenado por seu neto, Eric Randol Schoemberg. Obs: Todas as ilustrações são de Roswitha Bitterlich