Ilustração: Rafael Sica
Ilustração: Rafael Sica
Há abusos que miram o espírito. Tão abusado, mal pressente, nem se ressente. Nem todos os abusadores são pessoas físicas – as jurídicas abusam em vários ãos: cidadão, multidão, população.
O abuso beira o despudor: sutis imposições à nossa atenção. Pros abusados vale eventos e espetáculos. Pros abusadores vale a audiência. Marcas se acham mais relevantes que aqueles sem os quais não há cinema, show, teatro, conhecimento – cultura.
Espécie de carcarás, sempre em sobrevoo interesseiro em volta das realizações culturais. Patrocinadores, promotores, apoiadores – a cada um sua cota de “aposta” no mercado, a mesma ânsia de retorno de imagem.
Pra eles, a sanha midiática justifica a prepotência. Tão discreta que até parece que tudo se deve a eles, sem eles a vida cultural não existiria. Parece que o money vem da generosidade do próprio cofre, e não da renúncia fiscal, vulgo dinheiro do contribuinte.
Aqui não se citam marcas – já faturam o suficiente com a pose de benfeitores. Importa reconhecer a volúpia da ganância, que abocanha olhares onde quer que você busque cultura, diversão, lazer.
Você assiste ao Fronteiras do Pensamento: palestrantes com trajetórias e reputações construídas com talentos ímpares. Auditório lotado, no palco a figura catalisadora. Na penumbra, a voz domina o ar. E quanto mais você se fixa no destaque da noite, mais se incomoda com a indelicadeza no púlpito: não é o nome do ilustre convidado. É o do patrocinador, ou seja lá que título use. Um abuso, a sugar a atenção geral, a subtrair a importância do visitante.
Rumo à cinemateca Capitólio, patrimônio recuperado. Antes de entrar e se deleitar, você admira a fachada, que resiste bem às intempéries. Aí novo abuso assoma: não é a palavra Cinemateca que acompanha o nome do cinema. É o logo da estatal petroleira. Sei, o dinheiro compra tudo. Só que nesse caso é apropriação imerecida do espaço.
Agora a atração é um filme brasileiro. Você já sabe: antes dos créditos artísticos vem um curta-metragem de marcas. Um abuso constrangedor, desrespeito à criação e à capacidade realizadora.
No Theatro São Pedro, as locuções comerciais soam donas do campinho.
E assim foram e têm sido os festivais de música, onde distribuidoras de combustível e telefonias forçam suas marcas. Denominados sob pressão, os prêmios entram para a história, ganho eterno pro “patrocinador”.
Etc. A lista é imensa e dispersa, você nem nota.
Quem permite tais abusos? Por que o dinheiro público sustenta tamanha ganância? Perguntas sem patrocinador.