OPINIÃO

50 anos ontem

Por Marcos Rolim* / Publicado em 1 de março de 2014

Março de 2014 está vocacionado à lembrança. O final do mês assinala 50 anos do golpe militar de 1964. Para as novas gerações, tudo parecerá uma referência remota; excessivamente longínqua para ser significante; demasiado abstrata para ser sentida. Uma parte importante dos problemas brasileiros, entretanto, deriva do fato de não termos sido capazes, como nação, de produzir um acerto de contas com a ditadura. Tudo se passa como se o Brasil tivesse escolhido não saber e, portanto, fosse incapaz de se apartar do mal produzido, do inaceitável e do absurdo.

A ditadura não pode ser lembrada pelos que não a viveram; espanta, entretanto, que a grande maioria da população não tenha, ainda hoje, as informações elementares a respeito daquele  período e que nossas crianças não recebam nas escolas uma formação qualificada que valorize a democracia e que abomine toda e qualquer forma ditatorial de governo. Por estas e outras razões, o golpe militar que depôs um governo eleito democraticamente diz respeito a uma experiência ainda muito próxima de todos nós, dolorosamente próxima. Para todos os efeitos, a barbárie foi ontem.

O fato de não termos responsabilizado os que torturaram, os que mataram pessoas sob a guarda do Estado, os que estupraram prisioneiras, os que sumiram com cadáveres, negando às famílias o direito de sepultá-los, entre muitos outros crimes, é uma das razões pelas quais, ainda hoje, a tortura e outras práticas abusivas são tão frequentes por parte dos agentes do Estado.

Arte: Pedro Alice

O fato de não termos responsabilizado os que torturaram,
os que mataram pessoas sob a guarda do Estado, os que
estupraram prisioneiras, os que sumiram com cadáveres,
negando às famílias o direito de sepultá-los, entre muitos outros
crimes, é uma das razões pelas quais, ainda hoje, a tortura
e outras práticas abusivas são tão frequentes por parte dos agentes do Estado.

Arte: Pedro Alice

A grande maioria dos países onde se viveu a experiência de regimes ditatoriais foi capaz de realizar um balanço efetivo e produzir uma verdade jurídica sobre as violações e crimes praticados pelos usurpadores. Nem sempre este acerto de contas implicou penas de prisão ou outras punições. Lembrando a experiência de alguns de nossos vizinhos, Argentina, Uruguai e Chile já possuem vários casos de condenação de torturadores, assassinos e mandantes de crimes de lesa-humanidade. Em outras experiências históricas, como na África do Sul, a transição à democracia foi realizada com base em anistia, mas de forma substancialmente diversa daquela realizada no Brasil.

Desde a morte de Nelson Mandela, muitos foram os que se dedicaram a elogiar sua trajetória para reduzi-la à capacidade do perdão. Em tal conversa, tão autêntica quanto uma nota de 3 reais, os súbitos novos admiradores não mencionam o fato de Mandela ter sido considerado por muito tempo um “terrorista” por ter liderado a luta armada contra o regime do apartheid. Escondem, também, que a anistia construída por Mandela foi estruturada pela chamada “Comissão de Verdade e Reconciliação”, que concedeu o perdão, mas sob a condição de que os pretendentes relatassem seus crimes em sessão pública.

A anistia de Mandela, então, foi concebida e antecedida pela verdade. No Brasil, a ditadura se autoconcedeu uma anistia para assegurar exatamente o contrário. O principal, desde a ótica dos violadores, foi impedir que a verdade fosse conhecida. A meta foi facilitada, primeiramente, pela omissão histórica do Judiciário; conduta renovada, em 2010, pelo STF, quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), em que a Corte rejeitou o pedido da OAB para a responsabilização dos torturadores.

A manipulação sistemática produzida por grande parte dos órgãos de imprensa, entusiásticos apoiadores do golpe e sócios da ditadura, encarregou-se do resto. Em alguns casos, como fartamente documentado, órgãos da imprensa se somaram às tarefas da repressão clandestina, como a Folha de São Paulo, que emprestou viaturas ao DOI-Codi, para que os agentes as usassem em “campanas”. Por este particular processo, seguimos diante de uma história mergulhada na opacidade. Lembrando Faulkner, penso que nosso passado, blindado oficialmente pela conveniência política e pela covardia, ainda sequer é passado. Tudo aquilo que há de triste e revoltante nesta história, entretanto, precisará ser revirado escrupulosamente se desejarmos que os fatos não sejam mais sombras e digam respeito, finalmente, ao que nunca mais será.

O fato de não termos responsabilizado os que torturaram, os que mataram pessoas sob a guarda do Estado, os que estupraram prisioneiras, os que sumiram com cadáveres, negando às famílias o direito de sepultá-los, entre muitos outros crimes, é uma das razões pelas quais, ainda hoje, a tortura e outras práticas abusivas são tão frequentes por parte dos agentes do Estado. Pela mesma razão, os que apoiaram a ditadura, assim como aqueles que enriqueceram com o regime liberticida – falam hoje em “democracia” sem qualquer vergonha. Seria até cômico, não fosse tudo isso expressão de uma ameaça que se torna mais real a cada vez que a ignorância e a estupidez – independentemente de filiação ideológica – depreciam o debate, desconsideram o interesse público, saúdam a intolerância e imaginam que a violência seja uma resposta, e não o apreço pela incapacidade de formular respostas.

* Jornalista, sociólogo e professor do IPA.

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