MOVIMENTO

Espaços públicos, porém não

Ocupação dos espaços públicos por iniciativas privadas cria zonas de exceção, onde os direitos dos cidadãos ficam suspensos em favor da defesa de interesses corporativos
Por Gilson Camargo / Publicado em 28 de novembro de 2012

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Truculência, inaptidão para lidar com situações de conflito, insubordinação. Para além das causas e resultados da desastrosa operação policial que reprimiu – a golpes de cassetete, balas de borracha e gás de efeito moral – uma manifestação inicialmente pacífica de jovens no centro de Porto Alegre, o episódio evidencia o confronto de duas concepções divergentes sobre o uso do espaço público.  Na noite de 4 de outubro, estudantes, artistas de rua, ativistas de movimentos sociais como o Defesa Pública da Alegria e Fora do Eixo e servidores públicos iniciaram um protesto contra a presença do mascote da Coca-Cola para a Copa do Mundo da Fifa, no Largo Glênio Peres, em frente à prefeitura, acompanhados de longe por 19 policiais militares e cerca de 20 guardas municipais. Antes de investir contra o boneco inflável, estilização de um Tatu-bola, os manifestantes denunciavam a ocupação do espaço público por uma empresa privada, dançavam e cantavam “por uma cidade mais alegre”.

Os protestos contra o que os movimentos denominam privatização do espaço público já haviam incendiado os ânimos na noite anterior, no auditório Araújo Vianna, durante o show do baiano Tom Zé, no encerramento do 19º Porto Alegre em Cena. Os manifestantes protestaram contra o cercamento do auditório, exibiram cartazes com a denúncia “Praças Vendidas” e atearam fogo ao um tótem inflável promocional de um dos patrocinadores da reforma.

No centro, a pancadaria começou quando manifestantes se aproximaram demais do mascote. Aos brigadianos e agentes civis que já guarneciam o local, se somaram mais guardas municipais e 60 soldados do Pelotão de Operações Especiais (POE), que invadiram a praça aos encontrões – quem registrava o ato com câmeras e celulares foi afastado a golpes de cassetetes. Os brigadianos permitiam que as pessoas pulassem a grade de contenção e depois partiam para a repressão, assinalou a reportagem do site Sul21.

A violência do POE, grupo de elite usado para a repressão a conflitos urbanos e rebeliões em presídios, foi mostrada sem edição nas redes sociais, provocando uma reprimenda pública do governo do estado à corporação. “Mesmo que, à primeira vista, o procedimento de um agente público não configure delito, uma atitude de prepotência e autoritarismo não pode ser aceita por qualquer governo democrático”, disse Tarso Genro em nota. Diante disso, o comandante do policiamento ostensivo, coronel Alfeu Freitas, apressou-se em anunciar um programa de reciclagem para os pelotões especiais, admitindo falta de “qualidade e tolerância”.

Espaços de exceção e poder punitivo 

Manifestante do movimento Defesa Pública da Alegria, após o confronto no dia 4 de outubro | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Manifestante do movimento Defesa
Pública da Alegria, após o confronto
no dia 4 de outubro

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para o professor da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles, Christopher Gaffney, casos como o de Porto Alegre são uma evidência de que os megaeventos estão provocando o surgimento de espaços de exceção nas cidades-sede. Nesses locais, alerta, as regras do Estado Democrático de Direito são violadas a pretexto de defender o bem comum, mas, na prática é a proteção do capital privado que prevalece. “As entidades esportivas internacionais, as empreiteiras, as empresas de marketing esportivo, dentre outros representantes do setor privado, formam um contínuo com o poder público, ao menos sua parte capturada pelos interesses privados, valendo-se deste discurso da excepcionalidade para impor sua agenda sobre os direitos das pessoas. Um povo que gostaria de ter a Copa do Mundo e a Olimpíada como momentos de alegria acaba vendo nesses eventos mais uma fonte de violações de direitos”, denuncia. A partir da postura que o poder público e o setor privado vêm, em conjunto, adotando ao impor à sociedade brasileira a lógica de subordinação ao capital transnacional, diz o pesquisador, é possível constatar que o legado dos megaeventos não será a promoção da igualdade nem a garantia das liberdades. “O resultado será a maior concentração do capital, o agravamento da segregação espacial e a promoção de violências reais e simbólicas, sobretudo contra as camadas sociais que já são o alvo preferencial deste poder punitivo e opressor”, constata Gaffney

O coordenador do projeto Metropolização e Megaeventos, do INCT, Orlando dos Santos Júnior, afirma que o contexto dos preparativos para os megaeventos vem acumulando inúmeras denúncias sobre violações de direitos, como remoções, gastos públicos excessivos, endividamento, sérios impactos sociais e ambientais, retrocessos legislativos e falta de transparência generalizada. Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da UFRJ, Orlando ressalva que os movimentos sociais se fortalecem ao denunciar o agravamento da exclusão social, segregação espacial, militarização e mercantilização do espaço público e apropriação privada de recursos públicos provocados pelos megaeventos. “A resistência coletiva, principalmente daqueles que sofrem estas violações, tem logrado alguns êxitos, ainda que tímidos, como a constituição de uma plataforma nacional de comitês populares para a Copa e Olimpíadas”.

Reflexo do abandono

Manifestante ferido pela BM no confronto é atendido pela Samu | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Manifestante ferido pela BM
no confronto é atendido pela Samu

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

A professora da Fundação do MP e do Direito Público da PUCRS, cientista política Betânia de Moraes Alfonsin, alerta que espaços públicos vêm sendo privatizados em diversas cidades brasileiras não como um fenômeno isolado, “mas dentro de um movimento internacional, que ocorre em várias cidades do mundo globalizado. Trata-se de uma tendência generalizada a “naturalizar” o que não tem nada de natural e é social, econômica, cultural e politicamente produzido”. No Brasil, contribuem para esse fenômeno, em muitos casos, o abandono do espaço público pelo próprio poder público, que deixa de fazer a limpeza e capina de locais como praças da forma como deveria, ou deixa de repor lâmpadas queimadas em uma passagem de pedestres, por exemplo. Essas áreas acabam sendo percebidas como “terra de ninguém”, ao invés de serem reconhecidas como “bens de uso comum do povo”, como as caracteriza o Código Civil. “Os exemplos são muitos e podemos citar o mais óbvio: o fechamento de ruas, becos e passagens de pedestres com cancelas por moradores destas áreas, como se as áreas fossem privadas, ou o cercamento de áreas afetadas como praças. Em Porto Alegre acompanhei com um grupo de Pesquisa em Direito Urbanístico a alienação de uma passagem de pedestres em que as razões alegadas pela municipalidade foram a ‘segurança’ do local. Ora, se uma passagem de pedestres está insegura, a solução é revitalizá-la, iluminar melhor o espaço, garantir função social para o local e é óbvio que alienar o bem não oferece solução para o problema”, alerta.

Betânia, que também é professora de EaD no Curso de Dimensiones Jurídicas de la Política Urbana e no Programa para America Latina y el Caribe, do Lincoln Institute of Land Policy (EUA), considera que o fenômeno da privatização dos locais públicos é altamente negativo e fragiliza as noções jurídicas de “bem de uso comum do povo” pertencentes à coletividade e que devem ser usados em igualdade de condições, bem como implica a fragilização do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. “A coletividade perde com a privatização dos espaços públicos e basta pensar na privatização das praias marítimas, por exemplo, por hotéis, resorts e condomínios fechados para perceber os malefícios desta prática. Pelo ordenamento jurídico brasileiro, as “praias marítimas” pertencem à União, mas são bens de uso comum do povo, o que significa que podem ser usadas por todos em igualdade de condições. Quando um empreendimento como um resort “fecha” os acessos a uma praia, privatiza não apenas a praia, mas a paisagem e o meio ambiente, que devem ser desfrutados por todos”, repara a especialista.

Para a professora colaboradora da Pós-graduação em Ciência Política da Ufrgs, Vanessa Marx, a cessão de espaços públicos à iniciativa privada, mesmo que regrada por contratos, torna menos democráticos territórios historicamente ocupados pelos movimentos sociais. “Os espaços públicos são abertos ao acesso e à livre manifestação de todos. A privatização, normalmente atrelada ao jogo de interesses, define quem tem e quem não tem acesso”, compara.

Privatização e segregação social 

Fernanda Quevedo, da Rede Fora do Eixo, diz que a privatização dos espaços públicos é evidente e vai de encontro à democratização dos bens culturais, principal bandeira dos movimentos sociais. “Também contraria a preservação ambiental e deixa a estrutura das cidades ainda mais excludente. As evidências são praças que serviam de espaço para fruição cultural de gaiteiros e artesãos que foram entregues aos cuidados de uma empresa, um boneco de plástico cercado com grade e proteção de policiais fortemente armados, auditório cultural sendo gerido por uma empresa, o que dificulta o acesso de quem não pode pagar”, diz. Depois da privatização, diz, vem a segregação social, historicamente combatida pelos movimentos sociais de diferentes segmentos. “Para aqueles que podem pagar são oferecidos ótimos espaços, conforto e segurança, o que é o contrário de desenvolvimento social. Outro aspecto é a perda do patrimônio cultural conquistado, o que faz com que as empresas ditem as regras de espaços, dificultando qualquer diálogo e democratização de bens culturais”, alerta.

“Os espaços culturais de Porto Alegre estão sendo submetidos ao toque de recolher da prefeitura e de seus agentes financiadores”, resume Rodrigo ‘Briza’ Brizolla, do coletivo Defesa Pública da Alegria. A violência do Estado, diz, é um recurso usado para manter as regras do jogo. “Uma nova ordem constitucional está se criando no país e no mundo para garantir a “segurança” dos investimentos dos grupos econômicos como Fifa, Banco Mundial, BNDES, empreiteiras, Coca-Cola e outros. “É um estado de exceção que, através da Lei Geral da Copa, avança sobre direitos e leis constitucionais do país. Proíbem as greves, ameaçam a soberania, cerceam o direito de ir e vir nos territórios Fifa/Copa, promovem o despejo de milhares de famílias, privatizam os espaços públicos”, aponta Brizolla.

Para ele, o poder público abandona os espaços de forma estratégica para justificar a privatização. “Sem investimentos, o espaço é sucateado e abandonado. Depois vem a empresa prestativa que, através de uma adoção, promove a reforma e a revitalização, utilizando para isso recursos públicos através de renúncia fiscal, ou projetos. A partir daí, assumem para si o espaço, com suas marcas e regras. Os governantes fecham seus acordos com grandes empresas, não dão transparência de seus atos e depois usam a polícia, guarda municipal, políticas proibicionistas para reprimir quem se manifesta em contrário e garantir seus acordos”, aponta.

FACILITAÇÃO – “Nos últimos anos, a prefeitura de Porto Alegre tem dado exemplos claros de sua política de facilitar a apropriação privada dos espaços públicos, sendo a prática recorrente a de sucatear e abandonar o “bem” público para depois privatizar”, concorda a vereadora Fernanda Melchiona (PSOL). Ela cita a Orla do Guaíba, que prevê a construção de prédios comerciais à margens do Lago, mesmo depois que a população se posicionou contra a construção de “espigões” na orla. Além do Largo Glênio Peres, “transformado em um enorme espaço publicitário da empresa Vonpar; e o Araújo Vianna, “que ficou sete anos fechado e foi privatizado para 75% das suas datas servirem à empresa Opus”. “Ainda houve a tentativa de entregar a Cidade Baixa à especulação imobiliária e acabar com o caráter cultural do bairro. Felizmente, muitas pessoas que não aceitam essa lógica têm resistido e se organizado”, assinala a parlamentar. Com o vereador Pedro Ruas, seu colega de bancada na Câmara da capital, apresentou projeto que pede a revogação da Lei 470 – que libera a construção de prédios comerciais na orla. Outra proposta pede a revogação da lei que restringiu a utilização do Largo. “Para mudar essa lógica é necessário aumentar a participação da população e o fortalecimento dos movimentos sociais que defendem uma cidade mais humana e sustentável”, sinaliza.

VIOLÊNCIA POLICIAL – De acordo com a professora de Direito Público da Ufrgs, o Estado detém “poder de polícia administrativa” para reprimir o exercício abusivo de um direito individual pelos cidadãos, um poder legítimo porque tem em atenção os direitos difusos da população e o interesse coletivo na preservação do meio ambiente. “É claro que há limites para o uso desse poder. Há situações, no entanto, em que é necessário usar de ponderação para avaliar o caso concreto. Como exemplo, pensemos no que ocorreu no Largo Glênio Peres na ocasião em que o tatu-bola, símbolo da copa, foi teoricamente “protegido” pelos policiais. Houve um conflito entre cidadãos e Brigada Militar, como se sabe, em uma atuação bastante questionável. Além do mais, os cidadãos defendiam justamente o uso público de um bem de uso comum do povo, e houve forte repressão para defender um boneco de plástico da Coca-Cola, patrocinadora da copa. É evidente, em uma primeira análise, que houve de abuso de poder”, analisa Betânia Alfonsin.

Empresas não detêm poder de gestão

POE protege o Tatu da Copa de 2014 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

POE protege o
Tatu da Copa de 2014

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“A prefeitura trabalha para qualificar os espaços públicos, modernizando as instalações para que os moradores e visitantes possam aproveitá-las em segurança e com a devida infraestrutura”, argumenta o secretário de Gestão e Acompanhamento Estratégico e secretário municipal da Copa, Urbano Schmitt. As parcerias com a iniciativa privada, sublinha, permitem a execução, em menor prazo, de investimentos que seriam adiados ou até inviabilizados se dependessem só de recursos públicos. “Os contratos asseguram às empresas a recuperação do investimento feito no espaço público, sempre mantendo o caráter público do espaço”, acrescenta.

O município tem 47 praças e três parques adotados por empresas parceiras no projeto Adote uma Praça, que existe desde os anos 80. Schmitt sustenta que a parceria com a Vonpar está revitalizando o Largo Glênio Peres e exalta o caso do auditório Araújo Vianna, que passou por uma restauração iniciada em abril de 2010, com a antiga lona sendo substituída por uma estrutura de aço que sustenta o novo teto fixo. Orçado em mais de R$ 18 milhões, o local é administrado pela Secretaria da Cultura, que dispõe de 91 dias por ano para eventos, e pela Opus Promoções. “Esse período é mais de três vezes superior à média histórica recente de ocupação do auditório”, compara.

O acesso da população aos locais públicos, completa, não sofre restrições com as parcerias. “Os contratos com as empresas preveem contrapartidas em investimentos nesses locais públicos, cuja gestão cabe exclusivamente ao poder público. No caso do Largo Glênio Peres, a empresa parceira não detém direitos sobre a gestão do espaço, que segue sendo regida por lei municipal. São normas que foram discutidas e aprov adas pela sociedade e não pelas empresas. A prefeitura cumpre essas determinações em eventos culturais, políticos e de outras naturezas”, sustenta.

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