OPINIÃO

Sobre o horror que viceja

Por Marcos Rolim / Publicado em 14 de novembro de 2017

Imagem: reprodução da obra de Debret

Imagem: reprodução da obra de Debret

O Brasil é um país com uma riqueza cultural imensa. Somos um caldo intrigante e paradoxal de tradições e vertentes que remontam à Europa medieval, ao continente africano e à história, em grande parte ainda desconhecida, das populações ameríndias que viviam aqui há milênios antes dos primeiros portugueses.

Fomos fecundados por centenas de povos e por sonhos de todo o tipo e temos virtudes e habilidades que encantam os estrangeiros que nos tocam. Sim, tudo isso é verdade. Ocorre que somos formados por pesadelos, também.

O mais apavorante deles, a escravidão, se prolongou por três séculos. Cantamos a miscigenação com ardor também para sufocar os gritos das negras e índias que derrubamos na Casa Grande e nas florestas. Homenageamos a paz e a vocação amável e hospitaleira de nosso povo enquanto demandamos armas de fogo e esperamos que o Estado mate “aquela gente toda” que nos importuna e ameaça.

Somos a esquerda que agride a cubana Yoani Sánchez por dissentir e a direita que agride os médicos cubanos por assentir. Diferentes e iguais, somos zagueiros açougueiros e armadores colibris. Somos um só, nos contam os Tribalistas, “somos democratas, somos os primatas, somos vira-latas, temos pedigree”.

Amamos Leblon e Ipanema, o que vale até encontrarmos a caravana do Irajá e o comboio da Penha ou os “muçulmanos do Jacarezinho”, de que nos falou Chico (sim, a culpa deve ser do sol). Somos cristãos, sem dúvida (raramente temos dúvidas, aliás, o que nos poupa o pensar) e nos agrada revigorar as maldições do Velho Testamento. Pestes e pragas de gafanhotos nos governam e há rios banhados de sangue por todo o Egito.

Só em 2016, foram mais de 61 mil os que sangraram até a morte. Nas periferias, as mães choram por seus primogênitos, mas dessa maldição não sabemos. Também não nos diz respeito a dor dos que procuram por seus familiares desde que os moeram a pau e os empalaram em nossa Pátria mãe gentil. Desde que os Ustras, os Malhães e seus parceiros patriotas penduravam corpos, arrancavam unhas e estupravam jovens comunistas.

E construímos bancadas de Deus e, sobre elas, fogueiras para todas as bruxas e para os degenerados da carne, invertidos, sodomitas, pecadores nefandos. Somos as chamas que ardem no rosto dos infiéis e a cura sagrada contra rabos e vaginas. Somos o detergente moral, o sermão da planície e os 66 livros com desconto no cartão.

Somos a redenção contra a nudez e o sexo bestial; somos os protetores das criancinhas que nunca serão viadas contra o demônio pedófilo que se infiltra nos museus, e na Filosofia e nas ciências, assim como nas danças negras e nos rituais de Baco. Ao mesmo tempo, construímos a maior festa pagã do planeta com Sodoma e Gomorra, subvertendo a rígida hierarquia social. Por alguns dias no ano, as sinhazinhas e os sinhozinhos aplaudem nossos desfiles. Depois, nos devolvem os baldes e as vassouras.

O Brasil é o ponto de encontro de todos os passados. Por aqui, sequer o passado passou. Ele se prolonga na fome, no analfabetismo e no desespero, mas, sobretudo, na covardia, no privilégio, na corrupção, na lei mais poderosa nunca escrita que assegura que os ricos não podem perder e nos gritos de – “Pega! Pega!” que ecoam nas madrugadas, por sobre a baba dos cães açulados pelos capitães do mato.

Para além do horror que escorre da história, há outro horror que viceja; que se insinua na plebe rude, que vai ali onde tudo parecia construção, mas já é ruína; que brota nos ladrilhos da varanda e que é algo que nem mesmo o passado viu. Somos Ianomâmis em desabalada carreira, para depois das fronteiras do pensamento, para a sobrevida da razão; para a improvável pergunta.

Agora, os Neanderthais caçam filósofas americanas, proíbem atrizes trans; impedem aulas nas universidades e atacam Caetano Veloso, Paulo Freire e tudo aquilo que se mova além dos domínios do novo horror.

Em “Fora da Ordem”, Caetano nos disse que “não espera pelo dia em que todos os homens concordem” e que apenas sabe “de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final”. Paulo Freire nos legou que “ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria”.

O Brasil é também feito de sonhos assim. Apenas esses sonhos poderão superar o horror. Que o futuro seja dos que procuram, dos que desejam conhecer, dos que não se recusam a amar. Que seja, especialmente, capaz de alargar o espaço para a alegria e a diferença.

 

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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