Esses grupos são formados por jovens pobres e semialfabetizados que se armam para garantir o monopólio da venda, impedindo, assim, que seus “contra”, outros jovens pobres e armados, os desalojem do mercado
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
A última notícia que tive da intervenção federal no Rio de Janeiro relatou a ação dos soldados fotografando moradores da periferia que exibiam sua carteira de identidade. Ninguém no Brasil é obrigado a portar RG e ninguém deve ser abordado por agente encarregado de fazer cumprir a lei fora de uma situação específica de suspeição.
Não há, por outro lado, lei que autorize agente público a “fichar” moradores à margem de um processo criminal. Antes disso, se cogitou de mandados coletivos de busca e apreensão. Ou seja, mandados sem endereço certo, válidos para “regiões hostis”. Soldados e policiais entrando de casa em casa, de casebre em casebre, revirando tudo, pedindo notas fiscais de eletrodomésticos, apontando suas armas para os moradores – potenciais “inimigos”. Será este o plano?
As parcas garantias que temos vedam condutas do tipo. Alguém as classificará, claro, de “filigranas jurídicas”. Para perceber que não se trata disso, basta imaginar o que ocorreria se as mesmas tropas fotografassem moradores do Leblon e passassem a entrar em todos os apartamentos e casas do bairro em busca de usuários ou de traficantes de drogas sintéticas. Em 1994, em outra operação militar no Rio, soldados revistaram mochilas de assustadas crianças que se deslocavam em direção à escola.
O “inimigo” é solerte e pode usar até bebês, claro. A vergonhosa foto, que foi capa do jornal O Globo, foi postada agora nas redes sociais como se fosse atual e compartilhada milhares de vezes. Nesse contexto, ela é verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
A primeira dificuldade quando lidamos com segurança pública é separar a realidade da ficção. Há informações falsas que rapidamente são aceitas e há informações verdadeiras que são rejeitadas por grande parte das pessoas. Há também realidades que mais parecem sair da literatura fantástica, com histórias inacreditáveis que, não obstante, são lamentavelmente reais.
Para compreender a crise da Segurança no Rio de Janeiro, é preciso saber, primeiro, que o crime organizado não reside em favelas. Graças a uma história criminosa de abandono social que remonta à escravidão, e por conta da topografia particular da cidade há centenas de aglomerados urbanos de difícil acesso onde pequenos grupos armados operam o varejo do tráfico.
Esses grupos são formados por jovens pobres e semialfabetizados que se armam para garantir o monopólio da venda, impedindo, assim, que seus “contra”, outros jovens pobres e armados, os desalojem do mercado. Grande parte das armas que possuem são de fabricação nacional e são obtidas por diferentes formas de desvio – o que inclui a venda realizada também por bandidos, policiais e militares. Identificar as rotas e os responsáveis pelo tráfico de armas é uma providência básica que exige recursos de inteligência, não de força.
O verdadeiro crime organizado do Rio sofreu um baque com a Lava Jato e lideranças políticas fluminenses, a começar pelo ex-governador Sérgio Cabral e pelo presidente da Assembleia, Jorge Picciani, foram presas. Outras estão sendo investigadas – como o assessor da confiança de Temer, ministro Moreira Franco, também conhecido como “Angorá” pelos empreiteiros mais íntimos.
O banditismo no Rio prosperou também pela manipulação dos demais poderes e órgãos de controle, a partir de indicações políticas, do nepotismo e da troca de favores. Essa mesma dinâmica atingiu em cheio as polícias estaduais onde posições de comando passaram a ser preenchidas por indicações de deputados e vereadores. Ao mesmo tempo, policiais corruptos organizaram milícias para extorquir a população mais pobre.
Esses grupos controlam regiões inteiras e se transformaram em forças políticas capazes de eleger representantes e de impedir que candidatos com outros compromissos entrem em seus “domínios”. Na última campanha à prefeitura, as milícias jogaram seu peso na eleição de Crivella – um político medíocre, religioso e profundamente reacionário, para evitar que Freixo, do PSOL, que liderou a CPI das milícias na Alerj, vencesse as eleições. O tráfico de drogas no Rio nunca chegou a esse nível de organização.
Os bons policiais do Rio, que não aceitam propina, que não se associam à máfia, e que arriscam diariamente suas vidas estão com seus salários atrasados e suas condições de trabalho são as piores possíveis. Algo que o interventor poderia fazer seria colocar os salários dos policiais em dia, garantir-lhes coletes, armas e viaturas novas e, ao mesmo tempo, dar início a um processo de depuração nas polícias.
Não é possível fazê-lo de forma consistente, entretanto, sem mudanças institucionais como, por exemplo, uma Corregedoria autônoma, com quadro de corregedores concursados e de alta qualidade. No plano nacional, a mesma preocupação deveria dar origem à Inspetoria Nacional das Polícias.
Pelo que estamos vendo, entretanto, nada disso foi pensado. O único planejamento do governo, aliás, apareceu logo ao início da intervenção na forma de uma propaganda no Jornal O Globo onde se lê: “O governo que está tirando o país da maior recessão de sua história, agora vai tirar o Rio de Janeiro das mãos da violência”.
Uma iniciativa que, como se percebe, nada tem a ver com os preceitos constitucionais que exigem que peças publicitárias dos governos sejam de “utilidade pública, caráter educativo e de orientação social” (art.37 C.F.). Alguém pode pensar que se trata de uma “filigrana jurídica”. Não é.
A intervenção federal é um dos maiores truques políticos da nossa história. Nesse sentido, é real e falsa ao mesmo tempo. Pode produzir danos de monta para além da humilhação dos pobres; irá custar uma fortuna ao Brasil e a maior probabilidade é que não resolva problema algum. Terá assegurado fôlego político, entretanto, ao mais impopular governo da República. Ilusionismo profissional é o nome dela.
* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe