Privatização da água em debate
Foto: Valter Campanato / Agencia Brasil
Começa neste sábado, 17, a programação do 8º Fórum Mundial da Água, em Brasília. Pela primeira vez, o mais importante encontro para discutir o uso dos recursos hídricos no planeta acontece no Hemisfério Sul. Cerca de 40 mil pessoas são esperadas na capital federal. A abertura oficial está programada para ocorrer no dia 18 e o evento se estende até 23 de março.
De acordo o governo do Distrito Federal, dez chefes de estado confirmaram presença, além do presidente da Associação Geral da ONU, Miroslav Lajčák, e da diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay. Se inscreveram brasileiros de várias regiões e estrangeiros de 150 países. O Fórum terá programação gratuita. Na Vila Cidadã, montada na área externa do estádio Nacional Mané Garrincha, mais de 350 atrações estarão disponíveis para turistas, moradores do DF e estudantes. Saiba mais http://www.worldwaterforum8.org/.
Paralelo ao evento oficial, acontece o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama 2018), entre os dias 17 e 22 de março. Nos dias 17, 18 e 19 as atividades acontecerão na Universidade de Brasília (UnB) e, entre os dias 20 e 22, serão descentralizadas. O Fama é um evento internacional que acontece paralelamente ao Fórum Mundial da Água e tem o objetivo de reunir organizações e movimentos sociais que lutam em defesa da água como direito elementar à vida. Várias entidades brasileiras e internacionais se reuniram e decidiram impulsionar este evento, como continuidade de Fóruns Alternativos anteriores, como os realizados em Daegu, na Coreia do Sul, e em Marselha, na França. Saiba mais http://fama2018.org/
Foto: Raylton Alves / Banco de Imagens ANA
Um dos principais responsáveis pelo Brasil sediar o próximo Fórum Mundial da Água, Vicente Andreu Guillo, foi substituído na Direção da Agência Nacional da Água (ANA) às vésperas do Fórum, em 25 de janeiro deste ano por uma pessoa desconhecida no setor ambiental, a advogada Christianne Dias Ferreira, porém ela é bastante conhecida dos noticiários por ser a ex-advogada de Eduardo Cunha, preso em Curitiba, e de Marcela Temer, no caso de hackers que invadiram seu celular.
Guillo, após ter sido Secretário Nacional de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente (MMA), sob a gestão da então ministra Marina Silva, esteve à frente da Agência Nacional da Água (ANA) por dois mandatos durante o governo de Dilma Rousseff. Estatístico, com passagem pelo setor elétrico, Andreu ainda presidiu a Sociedade de Abastecimento de Água (Sanasa) e Secretário Municipal de Planejamento, Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente de Campinas, em São Paulo. Em entrevista exclusiva ao Extra Classe, o ex-diretor da ANA antecipa os debates dos próximos dias.
Extra Classe – O senhor, quando diretor-geral da ANA, foi um dos principais protagonistas na articulação que trouxe para o Brasil o 8º Fórum Mundial da Água. Na ocasião, ainda no governo Dilma afirmou que tinha uma imensa expectativa de que esse fórum poderia produzir um legado robusto para a gestão de recursos hídricos no país. Essa expectativa positiva com a mudança brusca de linha governamental após o impeachment permanece?
Vicente Andreu – Pensamos trazer o Fórum Mundial da Água para o Brasil com estratégias nos planos internacional e nacional. Esta lógica não se alterou em razão do impedimento da presidenta Dilma. Evidentemente que o quadro político geral mudou, mas acredito que temos que perseverar sobre estes pontos. Em nível internacional, a ideia é fortalecer a participação social nos Fóruns Mundiais da Água, trazer o tema da sustentabilidade e dentro dele o tema das mudanças climáticas e seus impactos sobre os recursos hídricos e ampliar os espaços de cooperação internacional sobre água, abrigado no tema geral do Fórum, que é Compartilhando Águas.
EC – Alguma novidade nesse sentido deverá marcar esse fórum?
Andreu – Como organizadores, criamos pela primeira vez o Fórum Cidadão, que deve ficar como etapa permanente para os demais fóruns; clima está no centro do temário do evento e acreditamos que, no mínimo, sairemos com algum instrumento novo de cooperação sobre água no continente sul-americano. Desejamos também criar as bases políticas para um organismo internacional especifico sobre água no âmbito da ONU, que, acredite, não existe até hoje, mas parece que este item não terá grandes avanços.
EC – Retornando ao seu raciocínio, e no plano nacional, qual é a expectativa ?
Andreu – No plano nacional a estratégia é fortalecer a agenda da água na agenda política do país. Água é um tema secundário, só aparece como tragédia e sempre vinculada com algum dos seus usos, como saneamento, energia, irrigação, etc. É bom lembrar que em 2018 haverá eleições gerais no país e a ideia é fazer com que propostas do fórum estejam na agenda política deste ano, com reflexos positivos permanentes. Além de aproveitar para potencializar propostas de atualização da legislação brasileira sobre água, que é muito avançada, mas que precisa de aprimoramentos pontuais. Creio que teremos algum sucesso nestes dois pontos.
Foto: Raylton Alves / Banco de Imagens ANA
Foto: Raylton Alves / Banco de Imagens ANA
EC – Tradicionalmente, paralelo ao Fórum Mundial da Água, acontece o Fórum Mundial Alternativo da Água (Fama). Os organizadores deixam claro que o Fama será um contraponto. Estão chamando, inclusive, o 8º Fórum Mundial da Água de feira de negócios, porque reunirá empresários, corporações e governantes em uma vitrine internacional para a venda de nossa água e outros bens naturais, como o petróleo e energia, visando apenas o lucro. Esse contraponto também é tradicional, como o caso do Fórum Social Mundial e o Fórum Econômico de Davos ou está agravado pela atual conjuntura nacional?
Andreu – Em praticamente todos os fóruns já realizados, organizações da sociedade civil realizam fóruns paralelos ou alternativos, como são chamados agora. Acho isso ótimo, amplia a agenda da discussão, tensiona os governos. Isso é muito bom. Evidentemente que os fóruns alternativos são até mais carregados ideologicamente do que o Fórum Mundial da Água, principalmente a partir do Fórum de Kyoto, em 2003, quando a agenda da privatização do saneamento deixou de ser o central. A partir dos impactos negativos das privatizações de água mundo afora, especialmente na América do Sul através de empresas europeias, a estratégia passou ser a de adoção de modelos de Parceiras Público Privadas-PPP, e não só para a área de saneamento, pois esse modelo tem como prioridade o retorno do capital. Depois, até isto deixou de ter importância no Fórum, que ganhou mais a característica de ser um espaço de debate de políticas públicas, até mais do que um fórum técnico-cientifico. Claro que no Fórum tem quem defenda a privatização, tem empresas e negócios, mas tem movimento social, como comitês de bacia hidrográfica, universidades, intelectuais do mundo todo, que são abertamente contra a privatização. Há uma proposta construída através do chamado projeto Legado – uma iniciativa pra organizar as propostas de aprimoramento da legislação de água no Brasil – que define a estratégia para incluir na Constituição Federal a água e o saneamento como direitos sociais. Todos sabem que o Brasil votou a favor desta proposta na ONU, mas não fez qualquer iniciativa para incluir a decisão na nossa Constituição. Isto tudo estará no Fórum.
EC – As contrapartidas exigidas pelo governo Temer para o socorro dos Estados, como a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) não colabora para o entendimento privatista?
Andreu – A Constituição Federal define o saneamento como serviço de titularidade municipal, que pode ser prestado estadual ou regionalmente por agente público ou privado. Porém, a base é sempre o município, mesmo que o serviço seja prestado por uma empresa estadual pública, como a Corsan, por exemplo. Já houve tentativas de rever essa condição de titularidade do município, principalmente nas regiões metropolitanas, transferindo a titularidade do município para o Estado nestes casos. Não conseguiram. Outro mecanismo é o sucateamento dos serviços, tentando criar na população um sentido de “não dá mais, tem que privatizar”. E ainda os mecanismos de pressão financeira, sobre estados ou municípios, que já foram usados da mesma maneira pelo governo Fernando Henrique, que, acredito, só reforçam na opinião pública o receio da participação de capital privado nos serviços de saneamento. Lembro, porém, que saneamento é apenas um dos usos da água, mesmo que prioritário. Não é o único, e essa é uma confusão que acaba acontecendo no mundo inteiro: água é igual saneamento. E Não é.
EC – Por exemplo?
Andreu – Há água em muitos outros usos, na energia, na irrigação, na navegação, no turismo, na indústria, etc. Privatizar a água, para a população é visto como privatizar as empresas de saneamento. Para quem é do sistema de recursos hídricos, não. No caso brasileiro a água é um bem público, não existem águas privadas. Mas reconheço que no sentido político, a discussão central acaba sendo a da privatização das empresas de saneamento, que neste momento ganha força por conta do retorno de várias dessas iniciativas no governo Temer.
EC – Por falar em privatização de empresas de saneamento, porque enquanto o Brasil está estimulando esse processo, Paris, Berlim, Buenos Aires e mais de 260 cidades no mundo reestatizaram o seu saneamento?
Andreu – Esse é um fenômeno interessante. Tem a ver com as tarifas, com a transparência e controle social das empresas, com os investimentos necessários para manter ou ampliar a qualidade dos serviços. É interessante, porque é exatamente o que se utiliza para defender a privatização das empresas de saneamento. Agora, sendo muito sincero, o simples fato de que a empresa é estatal não têm produzido, por si só, benefícios visíveis para a maioria da população, nem que ela seja de fato pública. O saneamento no Brasil – e no mundo – é predominantemente público e não é nenhuma maravilha. Aliás, no caso de tratamento de esgoto, é uma vergonha. Há muitos abusos, o que, por sua vez, fortalece o discurso da privatização. Acho até que reforçar a polarização com a privatização favorece que se mantenham serviços públicos ineficientes. Não é assunto simples e a polarização retira muita capacidade de análise. Ainda mais no momento político do país. Defendo que esses serviços sejam prestados por empresas públicas, mas isso não esgota a discussão.
EC – Desde que Peter Brabeck-Letmathe, presidente do grupo Nestlé, afirmou em 2005 que defende a ideia de uma cobrança maior pelo uso da água para que seja reduzido o desperdício, um certo temor tomou conta do país: o de que grandes corporações estariam se preparando para lucrar em cima de nossas reservas hídricas. A história do Aquífero Guarani, etc. Até que ponto isso é realidade ou teoria da conspiração?
Andreu – O atual clima político no país favorece o fortalecimento dessas teorias. Como teorias de navios que vêm ao Brasil levar água da Amazônia, que o Brasil exporta sua água através da exportação de produtos agrícolas ou pecuários. Teorias sem qualquer consistência, mas que colam com facilidade. Na essência, o discurso do presidente da Nestlé está, ao meu ver, correto. Vou dizer uma coisa que sei que é polêmica: na minha opinião água tem que ser cara, para evitar o desperdício e garantir os recursos necessários para ampliação dos serviços e com políticas públicas que garantam o acesso universal com qualidade. Isso não é nenhuma novidade, e penso que uma política tarifária adequada, com subsídios cruzados, cobrando mais de quem tem mais renda é mais benéfica inclusive para os que tem renda menor. O Brasil tem cerca de 60 milhões de pessoas com renda equivalente ao de países de primeiro mundo. Não têm porque pagar tarifas que muitas vezes nem cobrem o custo. Agora, a maioria da população não pode ser excluída do acesso digno à agua por conta de tarifas elevadas. Precisamos de melhores políticas públicas. Como elas são raras, todo mundo acaba achando mais seguro ficar com tarifa baixas, irreais, o que acaba tendo também suas consequências.
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EC – Ironicamente, ao contrário da lógica do executivo da Nestlé, a Agência Reguladora de Saneamento e Energia de São Paulo (Arsesp) ensaiou em aprovar uma proposta oriunda da Sabesp de criar um “gatilho” para reajustar as tarifas sempre que houver uma “variação anormal” do consumo médio. Ou seja, caso também houver redução de consumo, haverá majoração na tarifa. Qual a sua opinião sobre isso?
Andreu – Soube que a proposta foi retirada. Na minha opinião, foi retirada por conta do impacto negativo na campanha eleitoral que se aproxima. A discussão de água em São Paulo é totalmente partidarizada; os tucanos se habituaram, com a ajuda da mídia, a atirar nos outros seus próprios atributos. É uma barbaridade o simples fato de ter sido cogitada. Garantir o lucro exorbitante – travestido de “equilíbrio econômico financeiro” – em detrimento do uso e consumo racionais da água é algo revoltante. Agora, a empresa é estatal – claro que não é pública – e existe agência reguladora de saneamento.
EC – Chama a atenção a agência reguladora paulista simplesmente tocar para a frente uma proposta de quem ela tem que regular, não?
Andreu – Esse é outro tema fundamental: a qualidade da regulação. O setor de saneamento sempre foi autorregulado. A adesão da empresa de saneamento à agencia reguladora é voluntária, ou seja, se a empresa quiser, sai da agência quando quiser e deixa de pagar sua cota, com consequências nos salários e empregos dessa agência. Muitas vezes as agências recebem para serem apenas a face visível de medidas impopulares, preservando prefeitos e governadores, e recebendo por isso. Há muitos bons exemplos de regulação, defendo a regulação, mas esse caso em São Paulo é algo que supera todos os limites.
EC – Em sua opinião, qual é hoje o principal desafio no que tange ao abastecimento de água e o saneamento ideal não só no Brasil, mas no mundo?
Andreu – Não dá para generalizar num mundo tão complexo e desigual. Cada um com seu problema. Mas para não deixar de responder a pergunta, eu lembro que há mais de dois bilhões de pessoas sem acesso digno à água e ao saneamento. Penso que essas são as prioridades.