GERAL

Um crime simbólico na guerra pelo poder

Delegado do coletivo Policiais Antifacismo fala sobre segurança, a intervenção militar no Rio e a execução da vereadora Marielle Franco
por Amilton Belmonte / Publicado em 10 de abril de 2018
"No mesmo ano da promulgação da Constituinte, os militares passaram a trabalhar na área de segurança e reprimindo o quê? O crime organizado? Não, reprimindo greve de trabalhador"

Foto: Agência Senado/ Divulgação

“No mesmo ano da promulgação da Constituinte, os militares passaram a trabalhar na área de segurança e reprimindo o quê? O crime organizado? Não, reprimindo greve de trabalhador”

Foto: Agência Senado/ Divulgação

Delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro há 18 anos, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), integrante da ONG Associação dos Agentes da Lei contra a Proibição (Leap) e do coletivo Policiais Antifascismo, Orlando Zaccone D´Elia Filho, 54 anos, é quem se pode definir como um policial fora da curva. Ativista dos direitos humanos e da legalização das drogas como ação essencial para estancar o crime derivado do tráfico, autor do livro Indignos de vida – A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro (Revan, 2015), no qual investiga o massacre sistêmico no regime prisional pelo Estado e o arquivamento de autos de resistência entre 2003 e 2009, Zaccone é também jornalista, skatista e hare krishna. Vê a subordinação da segurança aos militares antidemocrática e ilegítima, derivada de um mecanismo constitucional aprovado por lobby que garante a interferência das Forças Armadas no poder pós-ditadura. Uma semana depois da execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes na noite de 14 de março, no Rio de Janeiro, o delegado conversou por 45 minutos com o Extra Classe. Para ele, o tráfico não atua da forma como agiram os assassinos: “A morte de Marielle tem a ver com a reconfiguração da disputa política”.

Extra Classe – Qual é a sua opinião sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro?
Orlando Zaccone – Nesses moldes, é uma intervenção nas polícias do Rio de Janeiro. Querem descaracterizar do caráter militar, mas isso não é possível de ser omitido, eis que o interventor é um general e a intervenção é localizada na área de segurança, que, historicamente, os militares apontaram para dar continuidade à sua manutenção na estrutura de poder do Brasil pós-ditadura militar. No livro O que resta da Ditadura – A exceção brasileira (organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle, ed. Boitempo, 2010), há pelo menos dois artigos de estudiosos que se debruçaram sobre a Constituinte para ver o lobby das Forças Armadas para se manterem no poder, via área de segurança pública. Na época, era o Ricardo Fiúza, representante do Centrão, que exerceu essa função de lobista das Forças Armadas na Comissão de Segurança Pública. Perguntaram o que ele entendia de segurança pública e ele respondeu: a mesma coisa que entendia de motor de caminhão. Nada. E estava lá representando os militares, no sentido de disputar algumas pautas que foram importantes naquele momento para eles nesse movimento de continuidade e nas quais a gente não se ateve muito naquele momento da Constituinte.

EC – Que pautas?
Zaccone – Uma delas foi a manutenção da Polícia Militar como força de segurança. Até a Constituinte não havia essa definição constitucional. Isso começou em 1988. Até a ditadura militar, a PM era aquartelada, uma polícia que só era chamada às ruas para deter alguns movimentos mais graves, como tumultos maiores, revoltas. É como se fosse uma grande Choque. Isso mudou. A Polícia Civil, que fazia o policiamento nas ruas e tinha delegacias de ronda, foi substituída pela PM. Ora, a PM é uma força auxiliar do Exército, a patente vai só até Coronel, pois General tem que ser no Exército. É uma relação de subordinação. O que se tem aí é uma série de exigências, da relação de subordinação da PM com o Exército e não com o governador.

EC – Isso atinge a estrutura democrática?
Zaccone – Sim, porque se o povo elege o governador, para o bem ou para o mal, democraticamente se espera que as polícias estejam sob comando exclusivo do representante eleito. Mas não é o que acontece. Isso, em suma, foi o primeiro lote. O segundo lote foi o artigo 142, em vigor até hoje, que garante às Forças Armadas a intervenção na ordem interna para garantir o funcionamento dos poderes constituídos. Pera aí. Não são as Forças Armadas que têm que vir aqui garantir os poderes constituídos, mas os poderes constituídos que têm que garantir as Forças Armadas. É esse artigo 142 que dá ensejo a todos os decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O Rio já estava vivendo um decreto desses, assinado pela presidente Dilma e depois reeditado pelo presidente ilegítimo. Então, temos uma notícia que é pior do que tudo isso. Acho que a questão da PM vem muito da experiência do Sul, do Brizola. Os militares se assustaram muito com a resistência da Legalidade que o Brizola fez com as forças policiais do Rio Grande do Sul. A partir dessa experiência, eles não queriam mais que governadores tivessem as forças policiais ao seu comando exclusivamente.

EC – A prerrogativa de atuação a partir desse mecanismo na Constituinte foi sempre algo que interessou às Forças Armadas?
Zaccone – Bom, eu não posso afirmar isso, porque estamos falando de uma força, uma instituição dinâmica e que tem momentos históricos de embates internos pela disputa da narrativa. Mas a gente pode ver que na História, desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, não teve um governo que não se utilizou do dispositivo. A primeira vez que as Forças Armadas entraram na área da segurança, e pouca gente se lembra, foi na morte de dois operários em Volta Redonda, quando da greve da Companhia Siderúrgica Nacional, já em 1988. No mesmo ano da promulgação da Constituinte, os militares passaram a trabalhar na área de segurança e reprimindo o quê? O crime organizado? Não, reprimindo greve de trabalhador. E o discurso da segurança contempla também uma coisa maior, que está lá no artigo 140, chamado Ordem. De que ordem nós estamos falando? Não é só questão de ordem, do que diz respeito à chamada violência urbana, índices de criminalidade. Isso diz respeito também à ordem em se tratando de manifestações de rua, a greve dos trabalhadores. As Forças Armadas, recentemente, estiveram nos grandes eventos, trabalhando. A partir do dispositivo da segurança pública, da garantia da ordem para que os eventos ocorressem. Essa ordem contemplava inclusive uma constante preocupação com as manifestações. Então, é disso que estamos falando, da manutenção das Forças Armadas no que diz respeito à segurança interna, o que em países democráticos é repelido constantemente. Você tem nos Estados Unidos – e aí não estou fazendo um elogio à democracia formal – estruturas democráticas que mantêm as Forças Armadas muito limitadas na atuação no âmbito interno, até porque há muita resistência das próprias polícias. No Rio, estamos vendo o contrário, uma intervenção nas polícias e na qual o interventor é um general do Exército.

EC – E os riscos disso dentro do mito da solução militar?
Zaccone – É um perigo. Primeiro, temos que apontar que isso fere a estrutura democrática, independentemente de resultados. Está sendo vendido um discurso de que as polícias por si só, com a utilização do que nós temos hoje dentro do nosso aparato político, não estão dando conta do recado. Então, seria preciso que as Forças Armadas façam uma intervenção para que a ordem seja restabelecida. Esse é o discurso a ser vendido, evidentemente para legitimar a chegada das Forças Armadas. Mas elas não chegam agora, chegam nessa estrutura de segurança pública em 1988. E tem um detalhe que as pessoas também não vislumbram. Numa estrutura democrática, você pode cobrar do governador a atuação das polícias. No caso Amarildo, por exemplo, as ruas gritavam “Cabral, cadê o Amarildo?”. Foi um caso emblemático, é um ponto fora da curva, porque num momento você teve a população questionando um governante acerca de uma ação da polícia. E isso aconteceu aqui. Hoje isso não é possível, porque o governador Pezão não tem nenhuma gestão sobre as polícias. Inclusive na parte orçamentária, financeira, está tudo com o interventor.

"A morte da Marielle tem muito a ver com a disputa política no Brasil, em especial no Rio de Janeiro. E a chegada da intervenção traz uma reconfiguração dessa disputa"

Foto: Acervo Pessoal

Foto: Acervo Pessoal

“A morte da Marielle tem muito a ver com a disputa política no Brasil, em especial no Rio de Janeiro. E a chegada da intervenção traz uma reconfiguração dessa disputa”

EC – Ou seja, a intervenção é inconstitucional, antidemocrática e ilegítima?
Zaccone – A crítica que eu fiz anteriormente é dentro do que eu considero a intervenção violando uma estrutura democrática. Infelizmente, o que viola a própria estrutura democrática é o disposto no artigo 142, ou seja, temos um dispositivo constitucional que é de natureza antidemocrática. Aliás, isso é um tema muito importante, porque a Constituição de 1988 foi chamada de Constituição Cidadã, mas ela traz um dispositivo como esse. Agora, é lógico que, a partir do momento em que há a intervenção, qualquer sistema político e governo, legítimo ou ilegítimo, de certa forma precisa de relativa legitimidade que tem que ser constituída. Ou seja, os militares vieram com um discurso de que estariam restabelecendo uma ordem que havia sido perdida no Rio. Se essa ordem não é retomada, isso também traz muita dificuldade para a permanência deles, que está definida até 31 de dezembro. Mesmo com prazo, eles têm que buscar o mínimo de legitimidade dentro do seu próprio discurso, já que não existe a legalidade institucional.

EC – Como o assassinato da vereadora Marielle Franco confronta a intervenção militar no Rio?
Zaccone – Traz um grande problema no sentido de que é necessário que a resposta seja dada numa velocidade maior do que se espera de uma situação como essa. Todos os esforços estão sendo colocados pela Divisão de Homicídios do Rio. Há toda uma movimentação até agora para se chegar na motivação e autoria do crime. E a gente não tem bola de cristal para saber quais foram os motivos políticos que levaram a decisão por essa ação de extermínio tão brutal contra uma pessoa que defendia direitos humanos, que tinha origem na favela, que era negra. Isso tudo tem que estar no debate, sim.

EC – A investigação corre algum risco de ter apontados culpados que não sejam os verdadeiros autores do crime, como aconteceu no caso Amarildo?
Zaccone – Essa estratégia não é criada. Ela está no ambiente social. Quem começou a falar que traficantes estariam envolvidos na morte de Marielle não foi o relatório policial, não veio da boca de um delegado ou inspetor de polícia. Quem traz isso são as redes sociais e isso vai circulando. Acho que eles não teriam condição de promover algo nessa magnitude, seria uma coisa muito tosca. Poxa, você quer legitimar uma intervenção, principalmente reforçando a ideia do inimigo, e aí, sinceramente, nas imagens como elas são apresentadas, seria algo muito inédito enquanto uma ação do tráfico. Não pela agressividade, mas pela inteligência, pela forma articulada e “profissional” no exercício do mal. E o tráfico – não são todos que têm essa atuação violenta e eu já fiz essa crítica – a grande maioria que está presa no tráfico são pessoas que não têm conduta violenta. São mulheres, mulas, jovens olheiros que nem arma portam. Mas estamos falando de um setor violento menor, que existe, mas que não age com aquela sofisticação. Se a investigação apurar e esclarecer que houve essa atuação, vamos ter que entender primeiro o porquê.

EC – Seria um empoderamento singular do tráfico?
Zaccone – Mas agora repare, estamos falando do tráfico do Rio. Eu não sei também se com essas notícias de disputa de territórios nacionais, e os grupos estão se federalizando, a disputa hoje é por estados. Então pode ser que haja, para surpresa de todos, essa participação dentro de um novo contexto, fora do que a gente conhece. Mas, a princípio, está claro que é uma ação política. Quem usou desse mecanismo para eliminar a Marielle queria mandar um recado. Tem uma motivação política e precisamos descobrir que motivação é essa e que grupos são esses. A morte de Marielle tem a ver, muito a ver, com a nova reconfiguração da disputa política no Brasil, em especial aqui no Rio de Janeiro. E a mexida, de uma certa forma, a chegada da intervenção, traz uma reconfiguração da disputa política. É um fato político a intervenção, que modifica a normalidade do andamento das coisas.

"A regulamentação do comércio e consumo das drogas é o caminho para enfrentar a questão da violência no sentido econômico"

Foto: Acervo Pessoal

“A regulamentação do comércio e consumo das drogas é o caminho para enfrentar a questão da violência no sentido econômico”

Foto: Acervo Pessoal

EC – Por que o senhor defende a legalização das drogas?
Zaccone – A regulamentação do comércio e consumo das drogas é o caminho para enfrentar a questão da violência no sentido econômico. Parte da violência é criada inicialmente pelo mercado da proibição das drogas, que depois agrega outros negócios, como transporte alternativo, gato, cabonet. Estamos falando de um mercado que é colocado na ilegalidade pelas políticas proibicionistas. A legalização vai resolver uma boa parte, vai dar uma quebrada na perna desses grupos, que organizam muito e conseguem recrutar muitas pessoas com margem numa movimentação financeira. Trazer esse comércio para a legalidade vai gerar um enfrentamento real. Mas isso não vai resolver o problema da disputa territorial no Brasil.

EC – E a desmilitarização da polícia?
Zaccone – A tradição militar torna o policial militar quase que um subcidadão, porque o PM está impedido, entre outras coisas, de se sindicalizar, fazer greve, de se filiar a partido político. A desmilitarização é um ciclo importante no debate na perspectiva do trabalhador da segurança pública. Não podemos mais aceitar que policiais que estão atuando na rua, esse policial seja um soldado. Não queremos soldado, queremos um trabalhador da segurança com todos os seus direitos reconhecidos pela sociedade e pelo poder constituído.

EC – Como responde às críticas às suas posições políticas e a pré-candidatura a deputado no Rio pelo PSol?
Zaccone
– Defender o estado democrático de direito é um ato revolucionário. Não sou o primeiro. Na polícia, sempre teve policiais e militares de esquerda. Temos filmes, documentários, que mostram a participação desses militares na retirada da ditadura. Ou seja, a polícia, o Exército ou qualquer outra instituição do nosso país é um reflexo do ambiente social em que há a disputa hegemônica das narrativas políticas entre direita e esquerda. Isso também acontece dentro das polícias. Hoje, a narrativa da direita tem crescido por muitas falhas que a esquerda teve no debate da segurança.

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