Das promessas do pré-sal à crise de abastecimento: breve roteiro de um desmonte
Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil
Em 2006, a Petrobras anunciou a descoberta de indícios de grandes reservas de petróleo na camada do pré-sal. Essas reservas, não só tornariam o país autossuficiente em petróleo como um exportador desse combustível. Um cenário de possibilidades extraordinárias se abriu para o desenvolvimento nacional e para a superação de problemas crônicos nas áreas da saúde, educação e infraestrutura. Pouco mais de dez anos depois desse anúncio, porém, essas promessas viraram pó e a Petrobras passou a frequentar o noticiário com uma agenda absolutamente negativa. A greve dos caminhoneiros, motivada pelo aumento do preço dos combustíveis, e a crise de desabastecimento que se seguiu a ela representam o capítulo mais recente da história do desmonte de um projeto que prometia catapultar o Brasil para outro patamar de desenvolvimento. Como isso foi possível em tão pouco tempo?
Apontado como o “pai do pré-sal”, Guilherme Estrella, ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras, vem denunciando esse processo de desmonte que, segundo ele, fizeram a Petrobras retroceder a 2002, quando a empresa estava na lista das privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso. Em várias entrevistas que concedeu nos últimos meses ele não tem dúvida em afirmar que a mudança do marco de exploração do pré-sal e da política da empresa estão entre os principais motivos da crise política que culminou no afastamento da presidente Dilma Rousseff, eleita em 2014. “Estão transferindo riquezas estratégicas do Brasil para empresas estrangeiras. Os beneficiários desses atos não são compradores, mas sim receptadores de roubo. Eles precisam ser enquadrados como receptadores”, defende Estrella.
Uma reportagem especial produzida pelas organizações não governamentais Amigos Da Terra Brasil e a Repórter Brasil mostram a cronologia e a forma de atuação da Shell e outras petroleiras e governos estrangeiros nas mudanças das regras do pré-sal brasileiro [1]. Com base na agenda oficial do próprio governo, a reportagem aponta uma sequência de reuniões e encontros, entre março e abril do ano passado, entre autoridades britânicas, altos executivos da Shell e altos cargos do governo brasileiro. A pauta desses encontros: a busca de vantagens na exploração do pré-sal. Mas o que isso tem a ver com a greve dos caminhoneiros?
Em nota oficial divulgada dia 23 de maio, a Associação dos Engenheiros da Petrobras afirma que a nova política de preços adotada pela nova direção da empresa a partir de outubro de 2016 só beneficiou “os produtores norte-americanos, os traders multinacionais, os importadores e distribuidores de capital privado no Brasil”. “Perderam os consumidores brasileiros, a Petrobras, a União e os estados federados com os impactos recessivos e na arrecadação”, acrescenta a entidade que batizou essa política de “America first!”, “Os Estados Unidos primeiro!”. A nota detalha do seguinte modo como isso aconteceu:
“A Petrobras adotou nova política de preços dos combustíveis, desde outubro de 2016, a partir de então foram praticados preços mais altos que viabilizaram a importação por concorrentes. A estatal perdeu mercado e a ociosidade de suas refinarias chegou a um quarto da capacidade instalada. A exportação de petróleo cru disparou, enquanto a importação de derivados bateu recordes. A importação de diesel se multiplicou por 1,8 desde 2015, dos EUA por 3,6. O diesel importado dos EUA que em 2015 respondia por 41% do total, em 2017 superou 80% do total importado pelo Brasil”.
Além disso, a Associação de Engenheiros da Petrobras define como uma falácia o discurso repetido na mídia de que a mudança da política de preços dos combustíveis ameaçaria a capacidade da empresa. “A mudança na política de preços, com a redução dos preços no mercado interno, tem o potencial de melhorar o desempenho corporativo, ou de ser neutra, caso a redução dos preços nas refinarias seja significativa, na medida em que a Petrobras pode recuperar o mercado entregue aos concorrentes por meio da atual política de preços”. Além disso, assinalam os engenheiros, o tamanho do mercado tende a se expandir porque a demanda se aquece com preços mais baixos.
Se, por um lado, a greve dos caminhoneiros não tem essa mudança de rumos estratégicos da Petrobras no centro de sua agenda, por outro, serve ao menos para expor didaticamente as consequências para a população dessa guinada que iniciou em 2016, com a chegada de Temer e seus aliados ao governo.