EDUCAÇÃO

IES comunitárias se associam ao Grupo A para oferta de EaD

A expansão da EaD, associada ao avanço rápido dos grandes grupos privados com fins lucrativos sobre o ensino superior, já começou a gerar consequências entre instituições tradicionais do RS
Por Flavia Bemfica / Publicado em 11 de junho de 2018

 

IES comunitárias se associam ao Grupo A para oferta de EaD

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O Grupo A, antiga Artmed, atua no mercado editorial (os selos Artes Médicas, Artmed, Bookman, McGraw Hill e Penso) e em plataformas de distribuição de aprendizagem e informações. Seu braço para a educação superior é a Sagah, lançada em 2014 a partir de uma parceria com a Hoper Educação, e que oferece soluções educacionais integradas. Elas incluem o fornecimento de conteúdos (unidades de aprendizagem), metodologias e serviços como qualificação de docentes e sistemas de avaliação, e apoio a processos de credenciamento de EaDs junto ao Ministério da Educação (MEC). A promessa, para as instituições, é de diluição dos investimentos e minimização de riscos. Em seus materiais de divulgação, a empresa garante “A melhor experiência de aprendizado para seus alunos com maiores resultados para a sua instituição de ensino” e destaca sua crença em aprendizagem ativa, aprendizagem adaptativa, ensino híbrido e sala de aula invertida.

As tratativas para atuação em rede e com a parceria do Grupo A estão avançadas e a expectativa de algumas das universidades é de colocar pelo menos parte do projeto em curso ainda neste ano. “Possivelmente no segundo semestre de 2018 ofereceremos alguns cursos. E, em 2019, vamos entrar com outra realidade. Algumas comunitárias vão estar presentes no cenário do ensino a distância, com uma ação em rede. Não sei se conseguiremos integrar todos, mas os que quiserem vão estar vinculados para oferecer esse produto ao mercado. Pretendemos formatar o curso e replicar em várias unidades, utilizando nossas bases, e fazendo uma gestão colegiada. Esse é o desenho: temos uma forma de fazer a gestão mais centralizada e obter ganho em escala”, informa o presidente do Comung, José Carlos Carles de Souza.

Souza, que no final do primeiro semestre deste ano encerra seu mandato como reitor da Universidade de Passo Fundo (UPF), diz que as tratativas com o Grupo A ocorrem há cerca de um ano, várias rodadas de negociações já aconteceram e foi formada uma equipe de estudos nomeada pelo Comung para proceder a “costura” da operação, discutindo-a com reitores, vice-reitores de graduação e administrativos. Segundo ele, o papel do Grupo A será o de ‘amarrar’ a definição da ação conjunta das universidades. “O objetivo é que o Grupo A nos assessore: onde devemos fazer, como devemos fazer. Não se vende um curso a distância da mesma forma que se vende um presencial, que é nossa expertise. Então precisamos de alguém de fora, que venha com outra visão, que nos diga quais grupos influenciar e quais mercados buscar. Há um diferencial no qual não temos know-how e que precisamos aprender”.

Alguns pontos, como a questão do preço, ainda estão em discussão. E, de acordo com Souza, a questão da qualidade é uma preocupação. “Estamos definindo a questão da precificação, qual seria o valor ideal a cobrar, porque haverá partilha de valores, e não podemos oferecer um preço muito vil ao mercado, isso não nos interessa. Queremos vender qualidade. Isso tem feito com que as discussões sejam bem aprofundadas. Algumas instituições gostariam de oferecer EaD simplesmente para dizerem que estão no mercado, mas essa não é minha avaliação. Tem que ter um preço real pelo nosso trabalho e pelo compromisso que estamos assumindo”.

Outra das comunitárias envolvidas na operação é a Universidade da Região da Campanha (Urcamp). “Estamos nos adequando a nova realidade e já trabalhamos nos nossos ensinos presenciais com os 20% EaD permitidos, além de metodologias ativas e inversão da sala de aula, tudo para ficar mais atrativo”, elenca a reitora Lia Maria Herzer Quintana. Nos 20% EaD dos presenciais da Urcamp já há parceria com o Grupo A.

Assim como Souza, Quintana, que também integra a atual diretoria do Comung e a da Associação Brasileira das Universidades Comunitárias (Abruc), argumenta que as comunitárias podem se inserir melhor na EaD oferecendo qualidade superior e diluindo custos com a atuação em rede e associação a um grupo privado, ao mesmo tempo em que atenderiam a um público que não está no presencial por não possuir condições financeiras. “Quem contratar os nossos cursos não vai frequentar uma garagem, vai frequentar um ambiente universitário, porque nossa intenção não é expansão indiscriminada, é atuar em nossas próprias instalações e dentro das realidades regionais. Não adianta eu colocar um curso que funcionou lá em Ijuí, mas que aqui não tem demanda. E vice-versa. Por isso estamos fazendo um diagnóstico”, adianta.

Tema divide opiniões
Nas administrações e corpos técnicos das universidades, contudo, a questão não é pacífica. Há muitas dúvidas sobre se, por exemplo, ao invés de estarem adquirindo expertise, as instituições não acabariam na verdade repassando-a ao grupo privado. Os custos são outro ponto de embate porque parte dos gestores considera que as instituições correm o risco de ter perda financeira caso as parcerias se confirmem nos moldes propostos. A forma como as IES ficariam “amarradas” por um longo período ao grupo privado é apontada como um entrave ao seu desenvolvimento futuro. E os professores e equipes pedagógicas se preocupam com a questão dos conteúdos e difusão do conhecimento.

Tanto sobre a formação da rede como sobre a parceria com o Grupo A, a reitora da Urcamp admite as resistências. “Nossas instituições têm características democráticas em termos de conselhos que às vezes engessam os processos. Tudo são arestas que vamos arredondando. Ao desconhecido sempre há resistência, há situações que devemos administrar. Mas não podemos deixar o cavalo passar encilhado e depois dizermos que não tivemos chance”, justifica. No caso da Urcamp, ela argumenta que a preferência pelo Grupo A se dá não só pela parceria já existente como pelo que resume como ‘lado gaúcho’. “É um grupo gaúcho e que não tem trabalho com as mercantis, que possuem suas próprias unidades de aprendizagem, há redução de custos de investimentos, há toda uma lógica. Mas é óbvio que não vai se trabalhar com o valor de R$ 49,00 (nas mensalidades) porque esse valor aí é dumping, nem me sinto capacitada a comentar”.

Contratos com os estudantes serão indiretos
O Extra Classe teve acesso a um dos documentos que embasam as negociações entre as instituições comunitárias e o Grupo A. Em 22 páginas, a minuta do contrato de prestação de serviços estabelece que seu objeto é: “potencializar a prestação de serviços educacionais à distância e semipresencial da IES, através de soluções integradas de conteúdo, tecnologia e serviços de apoio do Grupo A, que abrangerão marketing digital, captação e suporte à retenção de alunos, teleatendimento, treinamento semipresencial do corpo acadêmico quanto à utilização de metodologias SAGAH e Blackboard, licenciamento do sistema acadêmico, telemarketing, apoio administrativo e cobrança nos casos previstos neste instrumento, para todos os cursos de graduação EaD ou semipresenciais da IES”.

Conforme fica claro na definição das atribuições entre as partes, o Grupo A responderá não apenas pela disponibilização de soluções integradas de conteúdo, como atuará na captação de novos alunos e encampará os serviços de cobrança. A IES, por sua vez, deve possuir no mínimo 15 cursos disponíveis na modalidade EaD (100% on-line ou semipresencial) até 31 de dezembro de 2018, sendo pelo menos cinco na modalidade semipresencial, independentemente da existência de alunos matriculados. Para 2019 é prevista ampliação, com oferecimento de um mínimo de 25 cursos EaD, sendo pelo menos dez na modalidade semipresencial.

A remuneração dos contratos, um dos pontos mais sensíveis para o fechamento dos negócios, segue sendo alvo de debates. A minuta prevê que o Grupo A fique com 50% dos valores brutos pagos à IES pelos alunos matriculados nos cursos inteiramente EaD e com 40% dos valores dos semipresenciais.

Os contratos têm prazo de vigência de dez anos, prorrogáveis por mais dez. O item ‘Exclusividade, Preferência e Não concorrência’ estipula ainda obrigações à instituição de ensino durante e após o término do negócio. Durante o período em que o contrato vigorar, a IES deverá respeitar o direito de preferência do Grupo A, não podendo celebrar com outras pessoas físicas ou jurídicas, nas regiões geográficas estabelecidas no documento, operações iguais ou similares. Se o contrato for extinto por denúncia imotivada da instituição de ensino, ou por denúncia motivada do Grupo A, decorrente de inadimplemento da Universidade, a obrigação de exclusividade da IES “permanecerá em vigor por 3 (três) anos a contar da extinção”.

Durante a vigência do contrato, e por um período de cinco anos após sua extinção, também é vedado à instituição de ensino concorrer direta ou indiretamente com o Grupo A, “desenvolvendo, perante terceiros, operações idênticas ou similares aos serviços prestados pelo Grupo A objetos deste contrato”. A IES poderá, após a extinção do negócio, ofertar seus próprios cursos EaD ou semipresenciais, mas não de terceiros.

O documento estabelece ainda que em virtude do modelo de negócio, que possui como premissa “conferir viabilidade econômica à operação através da diluição de investimentos e despesas entre os diversos conveniados com o Grupo A, e considerando o elevado investimento específico do Grupo A para a consecução dos objetivos”, o convênio só terá continuidade se o Grupo A obtiver “economia de escala suficiente” para o equilíbrio da operação. Em outras palavras, o negócio precisa ser lucrativo. A “verificação e informação” sobre estes dados caberá ao próprio grupo. Caso não ocorra o “atingimento” do equilíbrio, o contrato se tornará sem efeito.

Falta de debate interno
Marcos Fuhr, diretor do Sinpro/RS e coordenador do Fórum pela Gestão Democrática das IES Comunitárias afirma que o Sindicato vê com grande preocupação a parceria, por ter a percepção de que este tipo de contrato representa um avanço da mercantilização do ensino “por dentro das instituições comunitárias. É o que se deduz quando vemos universidades comunitárias tradicionais delegando a uma empresa com fins lucrativos a tarefa de elaborar projetos pedagógicos padronizados para oferta educação a distância. É a terceirização da atividade-fim de instituições  educacionais”.

Para o Sinpro/RS, estas instituições de reconhecidas trajetórias na formação profissional, com qualificados quadros docentes, certamente teriam condições de produzir as propostas sem recorrer a uma empresa externa. “É uma perda de oportunidades de trabalho e de aproveitamento do capital humano e intelectual disponível. Trata-se de uma lastimável perda de protagonismo na definição dos projetos pedagógicos e na relação contratual com os estudantes”, critica o diretor.

Sobre o fato de ficar a cargo da empresa parceira a cobrança de valores dos alunos, Fuhr assinala que a instituição está abrindo mão de uma relação direta com sua clientela. O diretor alerta ainda para a forma como os processos estão sendo encaminhados. “As instituições aparentemente estão arriscando sua credibilidade em uma parceria externa que, ao que tudo indica, tem pouca ou nenhuma discussão interna com as respectivas comunidades acadêmicas”.

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