Fotos: (esq p dir.) Marcos Hermes (1 e 2) e Luiz Garrido (3)
Fotos: (esq p dir.) Marcos Hermes (1 e 2) e Luiz Garrido (3)
Paraibano da pequena Catolé do Rocha e um dos expoentes da denominada Música Popular Brasileira, Francisco César Gonçalves, o Chico César, 54 anos, está na estrada divulgando seu mais recente disco, Estado de Poesia, de 2015, e espetáculos como Camaradas – Fantasia para dueto, camerata, camarim, atentado e passeata. Neste, divide o palco e o protagonismo com a atriz Bárbara Santos, num conceito de nudez e erotismo que dão vazão ao amor do casal. Eles estão juntos desde que Chico iniciou o esboço das composições de Estado de Poesia, feito para Bárbara. Ex-secretário de Cultura da Paraíba, com quatro livros escritos e 13 discos lançados, Chico conversou com o Extra Classe poucos dias antes de apresentar Camaradas no Salão de Atos da Ufrgs, na programação do FestiPoa Literária 2018. Papo em que falou de música, rádio e literatura, mas também adentrou territórios mais tensos. Expôs suas impressões sobre o atual momento da democracia nacional, falou da prisão de Lula, do caso Marielle e da perda de direitos sociais dos trabalhadores. Sobre as eleições de outubro próximo, afirmou que não são tudo e que a democracia participativa, incluindo aí a desobediência civil, são partes importantes dentro do atual contexto.
Extra Classe – Fale um pouco do espetáculo Camaradas onde você divide o palco com a Bárbara Santos. A ideia conceitual surgiu quando e quais as descobertas de vocês nessa parceria?
Chico César – Recebemos um convite do Sesc São Paulo para participar da mostra Libertária que aconteceu no Carnaval desse ano. Bárbara já estudava meus poemas do livro Versos Pornográficos. Entendemos que ela performaria esses poemas e eu cantaria minhas canções que tematizam o amor erótico. Camaradas termina por ser um desdobramento natural do Estado de Poesia, em que a musa se torna parceira na arte. Sinto que as pessoas estão interessadas numa certa cotidianização da nudez, do erotismo preenchido de afeto, como algo subversivo e legítimo.
EC – Como se lida com a exposição íntima na teoria e na prática?
Chico César – A radicalidade de um artista é a intimidade. Mas desprovida de ego, não narcísica. É se colocar no mundo como um indivíduo na coletividade. Entendo que a força dos Versos está nisso, nessa nudez do íntimo de duas pessoas, de dois artistas atraídos pelo imã do amor e da liberdade. E isso chega nas pessoas não como opressão, mas estímulo. Cataliza e provoca a força do afeto.
EC – Essa experiência pode abrir espaço para novos projetos e parcerias ou isso já vem sendo feito por ti com outros artistas e noutros formatos?
Chico César – Tenho parcerias com vários outros artistas: Paulinho Moska, Vitor Ramil, Zeca Baleiro… Algo assim pra ir pra estrada demanda um tempo. E agora estamos concentrados em meu solo Preto Perto, no show com banda do Estado de Poesia e do Camaradas em si.
EC – No campo da literatura, mais precisamente a infanto-juvenil, participaste recentemente em uma série de nome Autores improváveis. O que achou?
Chico César – Gosto demais, muito mesmo, de literatura infantil. E isso é uma forma de resgatar a criança que vive em mim, o menino lá de Catolé do Rocha.
EC – E o quanto dessa criança ainda corre no pátio e no quintal do homem Chico e como isso se reflete na tua escrita?
Chico César – Da minha casa sou o caçula. Me criei na companhia das minhas irmãs, que me fizeram estar aberto às sensações da infância. Os meios foram muitas histórias e causos contados. Depois, vieram os meus sobrinhos, então meus enteados e também os filhos dos amigos. Daí, brotaram minhas próprias histórias, que invadiram a imaginação da meninada.
EC – Em teu texto parece haver um apuro singular, o da brincadeira com as palavras. É isso mesmo?
Chico César – Na verdade a literatura regional traz esse viés, aproxima para essa brincadeira, que é erudito-popular, plurivocal e evocativa.
EC – Da leitura na infância que autores mexeram contigo e trouxeram reflexos futuros no artista?
Chico César – Com oito ou nove anos o tema sexo era o que mais me interessava. E também assustava. Mas eu gostava de ler De Onde vem os Bebês e na sequência os livrinhos de catecismo e de José Lins do Rego. As histórias do folclore como Saci e Mula Sem Cabeça também me fascinavam. Assumo que essas referências desenvolveram em mim o gosto pelas palavras e me fizeram viajar pelo mundo, através das descrições arrebatadoras, das aventuras ali vividas.
EC – Ainda sobre livros, o que te estimula à leitura?
Chico César – Tenho apreço por poesia. E também por romances, biografias. Há pouco terminei de ler As areias do Imperador, de Mia Couto, Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves e PornoChic, de Hilda Hilst. Agora estou encantado com Ninguém na praia brava, de Ademir Assunção.
Foto: Marcos Hermes
Foto: Marcos Hermes
EC – Você recentemente participou do projeto Jah-Van, um disco em homenagem ao Djavan em versões reggae e com participação de artistas diversos. O que te motivou nessa releitura e como o próprio Djavan viu essa revisitação da sua obra?
Chico César – Fui convidado a participar pelo BiD, produtor do projeto e com quem eu já havia trabalhado no meu disco Francisco Forró y Frevo e também num projeto dele chamado Bambas 2. Não tive contato com Djavan, de quem sou fã confesso, mas me contaram que ele gostou de minha interpretação na música Nem um Dia e que isso acabou motivando para que a canção se tornasse o primeiro single do disco.
EC – Nesse sentido, da homenagem, qual artista brasileiro te motivaria a gravar um disco só com músicas dele?
Chico César – Sem dúvida alguma que o Luís Gonzaga.
EC – Há hoje uma diminuição de espaços em rádio para artistas de rock e MPB. A predominância é de estilos como o sertanejo e o funk carioca. Existe um clientelismo entre a mídia e alguns artistas e produtores? Ou um nivelamento cultural mais baixo do público em geral quanto aos conteúdos sonoros?
Chico César – Penso que há uma ampliação de espaço na internet. Desde seu surgimento as antigas companhias de disco estão perdidas, tentando acertar. Agora, como não vendem mais discos, se tornam sócias da carreira dos artistas e abocanham parte de seus cachês, do borderô, da bilheteria. Da parte delas, agora investem mais na promoção.
EC – Se fala também numa corrupção cultural enraizada no Brasil. Ela existe
Chico César – Acho que está tudo muito embolado: gravadora, produtor, artista, rádio, televisão, poder público. Virou um lance autofágico.
EC – O caminho para trabalhos musicais autorais é mesmo o Spotify e outras plataformas digitais similares? Ou existem possibilidades mais orgânicas para os artistas mostrarem e terem retorno da sua arte?
Chico César – Este é um tempo de vários caminhos: saraus, boca-a-boca, crowdfunding, internet, rifa, bingo…
EC – E o que você tem escutado, o que tem te motivado sonoramente?
Chico César – Isso é interessante. Quando estou em São Paulo gosto de andar pelas ruas da cidade de táxi ou de Uber e gosto de escutar a rádio da Universidade de São Paulo, a USP. Noutras cidades, como Porto Alegre, também peço para quem está dirigindo buscar a sintonia de uma rádio pública ou que, de preferência, toque música brasileira independente. Mas, quando estou em casa, prefiro escutar discos que me presenteiam pela estrada. Mas a TV me atrai mais.
EC – Em Estado de Poesia voltaste de um hiato musical de seis anos após aceitar a experiência como gestor cultural e também secretário da Cultura da Paraíba. O quanto essa vivência política melhorou o artista?
Chico César – Tudo é contágio. O militante cultural influenciou antes o artista, que influenciou o gestor e que foi influenciado por ele. Ter sido gestor público me deu um sentimento de urgência muito grande com relação à necessidade de poesia no mundo. Não podemos nos acostumar com a aridez das relações meramente institucionais. Temos de nos arriscar cada dia mais. E olhando no olho dessa experiência como gestor, a defino como maravilhosa. Na verdade, ela me permitiu enxergar o meu lugar de origem, justamente a partir do ponto de vista do gestor. Foram dois anos como diretor executivo da Fundação Cultural de João Pessoa e quatro à frente da Secretaria de Cultura estadual. Que eu criei e busquei imprimir uma forte presença do movimento cultural. Vivemos hoje uma destruição das políticas culturais implantadas com muito sacrifício nos últimos 15 anos. E a tendência, infelizmente, é a coisa toda piorar. O que também instiga a darmos a volta por cima, outra vez.
EC – Estado de Poesia pode ser definido como exatamente o quê?
Chico César – Penso que pode ser definido como o encontro do estado de espírito com o meu estado geopolítico de origem, a Paraíba. E aí a coisa toma corpo. Porque torna-se um espírito em estado de insubordinação poética, ética e política. Contra a rigidez e a falta de poesia do Estado em geral como instituição.
EC – E qual música desse álbum o define?
Chico César – Entendo que Estado de Poesia, canção que dá título ao disco, é a mais importante. Sintetiza o espírito do disco e meu próprio espírito ao fazê-lo e levá-lo pro palco.
EC – Por falar em palco, teus shows têm um apelo anímico muito forte, momentos até de catarses coletivas. Algum desses momentos de palco está tatuado, em especial, na tua memória e coração?
Chico César – O que posso dizer é que eles, os shows, essa interação com o público, vão se misturando na poeira da memória. Pensando nessa linha de singularidade, há um show que fiz na minha cidade, em Catolé do Rocha, logo depois de lançar o disco Cuscuz Clã. Eu tinha me tornado um artista conhecido nacionalmente, com bom espaço na televisão. Aconteceu que as pessoas queriam me ver de perto, saber se eu tinha mudado. Saber se eu parecia mais com a figura que aparecia na televisão ou com o menino que elas conheciam.
EC – Artistas têm rituais que alguns definem como manias antes de se apresentar. Nos fale dos teus.
Chico César – Eu não chamo nem de ritual e nem de mania. Na verdade, gosto mesmo é de sentar no camarim com a banda, os músicos, estar com todos que integram a minha equipe. E ficar ali de papo, dando uma bebericada, se acalorando na nossa cumplicidade. Isso fortalece, gera um ambiente integrador. E, por isso, busco evitar receber, antes do show, quem eu não conheça. Depois, no final do espetáculo, a coisa toda rola ao natural com o público, para abraços e fotos com os fãs. Mas também não é nada muito demorado.
EC – És um ótimo contador de histórias. Nos relate uma boa história de camarim, daquelas que invadem a lembrança espontaneamente?
Chico César – Tem uma que não canso de lembrar, até porque sempre arranca risos quando falamos delas. Um dia o Caetano Veloso visitou o camarim do meu show Cuscuz Clã, no Teatro Rival. Naquele jeito baiano de ser soltou a seguinte pérola a minha flautista, a Simone Julian: Menina, você é um bico-doce. Pronto, rimos muito e a partir daí a Simone virou Bico-doce, que é um pássaro nordestino muito bonito e muito cantador.
EC – Uma das bandeiras que também te mobiliza é a ambiental. Fale um pouco disso.
Chico César – Me identifico, sim, com a bandeira ecológica. Mas não a vejo separada das demais bandeiras sociais, como a de uma vida melhor para os excluídos, para os trabalhadores, os ribeirinhos, os índios.
EC – Falando em social, como tu vês o atual momento democrático do país, de polarização entre lulismo e antilulismo, de uma política cada vez mais judicializada, de redução de direitos trabalhistas e acirramento da luta de classes?
Chico César – Eu vejo um mundo muito mais rico de cores, tons e matizes do que esse. Há muitas brechas. Só de cinza há muitos tons (risos). Imagina quantos tons de rosa, de violeta, de verde. É um risco cômodo dividir o mundo assim. Me recuso.
EC – Especialistas afirmam que uma unidade para esse momento da política brasileira passa por um consenso. Que teria que vir da esquerda, assumindo erros ou mesmo descartando Lula. Há alguém na esquerda hoje que possa ser essa voz de consenso e é possível a esquerda se desconectar da figura de Lula e andar sem ele?
Chico César – Descartar Lula é uma fantasia fascista, né? A história contemporânea é maior que Lula, claro, mas ele é o personagem que reúne melhor as características de nosso tempo e suas contradições. Sem Lula nem converso.
EC – A perda e estrangulamento de direitos sociais, aliado a posturas antidemocráticas, podem receber uma resposta em outubro, nas urnas? Esta eleição sem Lula é uma farsa?
Chico César – A reação dos derrotados nas urnas na última eleição presidencial foi uma triste mostra de quão pouco republicanos eles são, ao inviabilizar o segundo mandato de Dilma, inviabilizando o próprio país. Aí começou a ladeira-abaixo em que nos metemos. A mídia liderou uma histeria reacionária sem tamanho da classe média e agora perde seu controle. Eleições são importantes, mas não são tudo. A democracia participativa, incluindo aí a desobediência civil, tem uma parte importante nisso tudo. É nas ruas, mas também nos micromovimentos, que acredito. Os encontros e a percepção de potência do indivíduo por si mesmo.
EC – E, por falar em mídia, tu és também jornalista. Como analisas o papel do jornalismo dentro desse atual momento nacional?
Chico César – A mídia de porta-voz chamou pra si um protagonismo descabido, partidarizado e polarizador. Em algum momento vão ter de arcar com as consequências disso.
EC – A intervenção militar no Rio é um projeto-piloto. O que pensas desse mito da solução militar?
Chico César – Soldados são sempre peças descartáveis de uma guerra que está sendo decidida em outro lugar. A intervenção, para além de um projeto de extermínio da juventude negra nas periferias do Brasil, é também um projeto midiático do governo golpista de Temer. Esse projeto deu errado. Eles mataram Marielle. E a percepção da crueldade e da inefetibilidade da intervenção ficou mais clara aos olhos do país.
EC – E o que te parece o fato e os desdobramentos do caso Marielle? Entendes como crime político?
Chico César – Todo crime perpetrado pelo Estado contra preto e pobre é político. A sociedade ainda espera por uma resposta e quer saber quem matou. E, principalmente, quem mandou matar Marielle, acertando Anderson pelo caminho.
EC – Os artistas brasileiros estão tendo a coragem de se posicionar sobre esse momento de retrocessos e ataques à democracia, estão conseguindo ser cidadãos políticos, ou podem mais?
Chico César – Cada um faz o que pode. Não se pode superestimar o papel dos artistas.