Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Em meio ao tumulto que marca o processo eleitoral deste ano, um debate se coloca o tempo todo e, mesmo que a maior parte dos eleitores nem sempre o note, é decisivo para o país. Trata-se da discussão sobre o papel do Estado, sobre quais são suas atribuições e sobre os motivos que levam o Brasil a retomar a apresentação de propostas que foram moda há três décadas ou mais, mas que, hoje, não estão em exame nos países desenvolvidos. Na campanha, essa discussão vem sendo resumida por um questionamento simples: o fato de o Estado atuar em diversos setores, como energia, transportes, infraestrutura e sistema financeiro, o impede de investir adequadamente em saúde, segurança e educação, as três áreas identificadas como prioridade no atendimento aos cidadãos?
Na corrida presidencial, sob o argumento de que a atuação em outros setores prejudica investimentos nas três áreas essenciais, uma profusão de candidatos que se autodenominam de centro ou de direita defende um amplo programa de privatizações que sempre inclui a Petrobras (partes ou totalidade). E que propõe, na hipótese mais tímida, a venda de pelo menos dois terços das estatais e, na mais ousada, a de todas as empresas hoje sob controle do Estado. Entre os candidatos mais conhecidos, integram este campo Geraldo Alckmin (PSDB), Henrique Meirelles (MDB), Jair Bolsonaro (PSL) e João Amoêdo (Novo).
Foto: Unicamp/ Divulgação
Na disputa estadual, o governador José Ivo Sartori, candidato à reeleição pelo MDB, além de Eduardo Leite (PSDB) e Mateus Bandeira (Novo), também argumentam em favor das privatizações. O governador, que tentou, sem sucesso, obter autorização para vender as três estatais da área energética, as anuncia como uma de suas prioridades em um eventual segundo mandato. Leite, também favorável à transferência das companhias ao controle privado, defende ainda a implantação de um amplo programa de concessão de rodovias e de parcerias público-privadas nas áreas em que isso for possível. Bandeira divulga a inclusão do Banrisul no pacote de venda das estatais.
Os que preconizam as privatizações embasam sua defesa em quatro pontos. Que estatais, via de regra, são estruturas ineficientes que funcionariam como moeda na ocupação de espaços negociados pelo Executivo em troca de apoio político. Que a venda à iniciativa privada aumentaria a concorrência nos setores em que as empresas atuam, diminuindo assim os preços pelos produtos ou serviços ofertados. Que o Estado não tem os recursos e nem tecnologia suficientes para mantê-las de forma a que permaneçam competitivas no mercado. Que, se vendê-las, obterá dinheiro para investir nas áreas essenciais, dedicando-se assim “ao que de fato interessa.” Nesta discussão, outras áreas relacionadas ao atendimento básico da população, como o saneamento, não são incluídas entre as três essenciais e, portanto, também deveriam ser repassadas à iniciativa privada.
Candidatos e setores com um discurso ou contrário ou que defende outros modelos de venda de ativos estatais, como os presidenciáveis Ciro Gomes (PDT), Luiz Inácio Lula da Silva/Fernando Haddad (PT), Guilherme Boulos (PSol) e, na corrida estadual, Miguel Rossetto (PT), Jairo Jorge (PDT), Roberto Robaina (PSol) e Júlio Flores (PSTU) têm argumentos diferentes. Por eles, na prática, a venda de estatais não resolve o problema das contas, porque os déficits não são causados pelos investimentos, mas sim por itens como a rolagem das dívidas e um poder público no qual se sobrepõem privilégios, dois pontos intocados pelas políticas de ajuste fiscal às quais as privatizações são associadas. A venda também não acaba com a barganha política. E a questão da concorrência cai por terra a partir de situações reais, como a do saneamento em uma série de países ou a da telefonia no Brasil. Ou, ainda, a formação de cartéis privados em áreas nas quais o Estado não atua. Por fim, além de estratégicas, várias das estatais são lucrativas, caso da Petrobras e da Sulgás, no RS.
“A discussão que deveria ser posta é: se são empresas que atuam em áreas estratégicas, qual seu papel na construção do Estado? Mas a esse debate, fundamental, acabam se sobrepondo dois fantasmas: o da ineficiência e o da corrupção. Ora, se são áreas estratégicas, o que deve se fazer é o debate de como os governantes devem atuar para que essas empresas sejam eficientes e livres de corrupção, e não a alternativa simplista da venda. No mundo inteiro temos empresas eficientes compostas majoritariamente por capital estatal”, destaca o professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, Wagner Romão.
O discurso privatizante oculta a desnacionalização
Foto: Tomaz Silva/ ABr
Em sua argumentação, os que propagandeiam que o poder público deve fazer uma opção asseguram que um Estado atuante em diferentes áreas, mesmo que parte delas seja estratégica, casos da energia e combustíveis, é pesado e atrasado, enquanto que aquele que se dedica apenas às três áreas essenciais, com a possibilidade de, nestas inclusive, fazer parcerias com a iniciativa privada, é moderno e eficaz. Apesar de alguns candidatos sustentarem que as privatizações são uma forma de o Brasil atrair investimentos externos – sem detalhes sobre benefícios desta forma de atração – em geral fica de fora da argumentação o fato de que essas privatizações aqui são processos que, no passado ou nos dias atuais, estão fortemente atrelados à desnacionalização, uma vez que consórcios de grupos estrangeiros, às vezes associados a grupos nacionais (em participação minoritária) são os com maior capacidade financeira.
A Eletrobrás, cuja privatização o governo Michel Temer (MDB) tentou levar a cabo, tem, entre os principais interessados, grupos chineses, fundos de pensão internacionais, a francesa EDF e a italiana Enel. A gigante norte-americana Boeing foi a compradora no processo de venda da Embraer, aparentemente equilibrado, mas que embute pontos nebulosos sobre área estratégica.
Em junho passado, quando o governo leiloou três dos quatro blocos do pré-sal, as petrolíferas internacionais saíram vencedoras. Foi o terceiro leilão após a alteração da Lei da Partilha, sancionada por Temer em 2016, a partir de projeto original do senador José Serra (PSDB), e pela qual a Petrobras perdeu a exclusividade na operação do pré-sal. Além da Petrobras, os consórcios vencedores são formados pela Statoil (Noruega), ExxonMobil (Estados Unidos), Petrogal (Portugal), BP Energy (Reino Unido), Shell (Reino Unido) e Chevron (Estados Unidos). A estatal norueguesa Statoil, que obteve participações estratégicas nos blocos de Uirapuru e Dois Irmãos, e foi apontada como a grande vencedora do leilão, é um exemplo da política do governo norueguês que vai no sentido inverso ao que é preconizado pelos defensores das privatizações no Brasil.
Nos anos 1990, em função de fatores como seu ingresso no então Mercado Comum Europeu, a Noruega foi obrigada a alterar sua forte política protecionista no setor do petróleo. Mas, ao invés de incentivar a venda de ativos, o Estado fez o contrário: comprou. Passou a coordenar uma reorganização com o objetivo de estimular investimentos no mercado internacional, o que resultou na lucrativa internacionalização da Statoil, hoje a segunda maior estrangeira no setor de petróleo no Brasil.
Foto: Foto: José Cruz/ABr
SANEAMENTO – No saneamento, as tentativas de privatização postas em curso pela gestão Temer também despertam o interesse de grupos internacionais. Primeiro, o governo lançou, em 2016, um agressivo programa de privatização, ao qual aderiram inicialmente 18 estados. Mas os questionamentos legais (saneamento é atribuição dos municípios), a controvérsia sobre a concessão de serviços básicos e a proximidade das eleições derrubaram o programa: quase todos os estados desistiram. Próximo do fim, o governo então mudou a estratégia: em julho passado publicou a Medida Provisória (MP) 844/2018, sob a argumentação de atualizar o marco legal do saneamento básico e atrair investimentos. Suas principais mudanças: tornar a Agência Nacional de Águas (ANA) uma agência reguladora dos serviços públicos de saneamento básico, atribuição que é do Ministério das Cidades. E obrigar a abertura de licitação quando uma prefeitura desejar realizar obras de água e esgoto. Hoje a concorrência só é necessária quando a administração municipal deseja contratar uma empresa privada.
A MP também é alvo de questionamentos jurídicos e polêmica. E, de novo, o Brasil vai no sentido inverso. Nos últimos 18 anos, conforme estudo levado a cabo por 11 organismos internacionais, como Unidade Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos (PSIRU), Instituto Transnacional (TNI) e Observatório Multinacional, e divulgado no ano passado, há uma tendência global de remunicipalização dos serviços de água e saneamento. Foram 267 casos do ano 2000 em diante, incluindo cidades como Paris e Berlim. Entre os principais motivos da reestatização estão, principalmente, a falta de investimentos em infraestrutura, aumento das tarifas e danos ambientais por parte dos controladores privados.
Financiamento de bancos públicos
Foto: Igor Sperotto
A tentativa de liquidação da área do saneamento traz à tona outra diretriz das iniciativas de privatização brasileiras que, em geral, ficam em segundo plano nos discursos de seus apoiadores. A de que, para comprar, os grupos privados, não raro, buscam financiamento junto a bancos públicos, com destaque para o BNDES. O banco público está à frente do Programa Nacional de Desestatização e do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), ao qual pertence a tentativa de privatização do saneamento que agora faz água. Nela, o BNDES financia até 80% dos projetos, com taxa de juros de longo prazo (TJLP) e prazos de até 20 anos. Não chega a ser novidade. O banco foi o grande financiador do também contestado programa de liquidação de ativos de estatais posto em curso nos governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o maior já realizado, e no qual se destacam o setor de telecomunicações e a Vale do Rio Doce.
Conforme o professor do programa de Pós-graduação em Ciência Política da Ufrgs, Rodrigo González, privatizações não precisam ser necessariamente entrega de áreas estratégicas ou lucrativas ou ambos a grandes grupos privados ou internacionais. Existem as modelagens das golden shares (ações de classe especial) ou a formação de joint-ventures. Em ambas, os governos mantêm o controle. “E é possível privatizar ampliando o poder dos cidadãos, como, por exemplo, no modelo de venda de ações. No modelo com financiamento do BNDES, ao contrário, quem paga a compra é a população. É uma espécie de perda dupla. O modelo aplicado no Brasil é aquele em que acaba o patrimônio e a dívida aumenta. E privatizações são processos de alto risco, porque não têm volta. Não que o tema não deva ser discutido. Mas é preciso haver transparência sobre os objetivos”, elenca.
No mundo
Um dos grandes argumentos em defesa da venda de estatais é o de que ao repassar empresas de diferentes setores à iniciativa privada, o Brasil estará seguindo o exemplo de países desenvolvidos. Na verdade, a discussão já foi superada em países da Europa, nos Estados Unidos, Canadá e Austrália.
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