SAÚDE

Acolhimento que salva vidas

Por Cristina Ávila / Publicado em 17 de setembro de 2018

Foto: Rodrigo Waschburger

Foto: Rodrigo Waschburger

O projeto Cultura Doadora, da Fundação Ecarta, une-se ao Hospital Montenegro 100% SUS e impulsiona as doações de órgãos para transplantes no maior município do Vale do Caí. Nos primeiros seis meses deste ano, o índice de doações de órgãos para transplantes evoluiu de zero para 62,5%, salvando a vida de 16 pessoas – uma boa notícia neste mês em que se comemora o Dia Nacional de Doação de Órgãos.

Em Montenegro, no ano passado, de todas as famílias que tiveram parentes mortos em condições de doações de órgãos, nenhuma cedeu ao apelo de salvar vidas. Foram 100% de negativas. Mas, nessa pequena cidade gaúcha de 70 mil habitantes, distante 60 quilômetros de Porto Alegre, a realidade mudou completamente nos primeiros meses de 2018. De janeiro a julho, morreram oito potenciais doadores, cinco tiveram a remoção de órgãos autorizada pelos parentes, beneficiando 16 pessoas. O primeiro doador – um adolescente de 17 anos, morto em acidente de motocicleta – teve coração, pulmões, rins e fígado transplantados em sete pessoas (o fígado foi dividido em dois, pois se regenera).

Assim, as doações que eram zero passaram para 62,5%. Os números são significativos, pois a captação de órgãos somente é possível em casos de mortes encefálicas, que representam 1% das mortes ocorridas em hospitais. São mortes por traumatismo craniano ou acidente vascular cerebral (AVC), em que o cérebro para de funcionar, o que se constata por diversos exames e por vários médicos, cumprindo as exigências da legislação brasileira. “Para que não restem dúvidas de que morte encefálica significa morte, ou seja, é irreversível, e isso de fato ocorreu com seu familiar”, ressalta Tatiana Michelon, nefrologista do Hospital Montenegro.

A partir da morte encefálica, não há possibilidade de sobrevivência. A situação é muito difícil para os familiares, pois o corpo ainda está quente e aparentemente respira. Na realidade, o coração funciona por estímulo de equipamentos e medicamentos, procedimento que visa evitar a decomposição dos órgãos a serem transplantados. No entanto, em poucas horas os órgãos inevitavelmente também estarão paralisados.

A mudança radical de comportamento dos montenegrinos tem explicação simples. “Tudo começou no início deste ano, no município de Portão, a 27 quilômetros de Montenegro. Estávamos em uma palestra com pessoas transplantadas, famílias doadoras, cirurgiões, autoridades locais e comunidade, sobre doações de órgãos para transplantes. Em meio às falas, foram citadas as negativas de 100% em Montenegro, o que provocou a aproximação entre mim e a médica Tatiana Michelon, que estava ali como visitante”, conta Glaci Borges, produtora do Cultura Doadora – projeto permanente da Fundação Cultural e Assistencial Ecarta, mantida pelo Sinpro/RS, com o objetivo de transformar o ato de doação de órgãos em cultura cidadã. A iniciativa foi lançada em 2012 e já atingiu mais de 15 mil pessoas com palestras e outras ações de conscientização.

Tatiana é coordenadora da Comissão Intra-hospitalar de Diagnóstico de Órgãos e Tecidos para Transplantes (Cidott) do Hospital Montenegro, criada recentemente. A parceria, que tem o apoio do jornal Ibiá, de Montenegro foi ganhando outros aliados, com ações em praças, escolas de ensino fundamental, universidades, palestras para profissionais da área médica, espetáculos musicais e teatrais, encontros em feiras, em zonas rurais, em instituições tradicionais de aprendizado de trabalhadores como o Senai e em escolas especializadas na formação de profissionais da Saúde, em igrejas, órgãos públicos e empresas privadas.

Foto: Rodrigo Waschburger

Glaci Borges, produtora do projeto Cultura Doadora, da Fundação Ecarta

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O tema foi levado a crianças, jovens, adultos, homens, mulheres e idosos. E sensibilizou novas parcerias na imprensa local. Há poucos dias, a Rádio América e a equipe de televisão da Fundação Municipal de Artes de Montenegro (Fundarte) também se ofereceram para contribuir com materiais de divulgação. “A receptividade ao tema pela população é muito boa. É comum, após uma palestra, recebermos manifestações de pessoas não só apoiando a iniciativa, mas se declarando doadora a partir daquele momento”, revela Glaci.

“Este é um ano de muita alegria”, comemora Marcos Fuhr, presidente da Fundação Ecarta e idealizador do projeto Cultura Doadora, em um dos encontros de mobilização com a comunidade luterana em Montenegro. “É motivador perceber o envolvimento das pessoas no projeto e sua decisão pela doação, pois chegam a milhares as pessoas que estão na lista de espera de órgãos no país”. Ele enfatizou o papel decisivo da comunidade na disseminação da importância das doações e explicou que o Cultura Doadora faz parte das políticas cidadãs permanentes do Sindicato, que vão além dos interesses específicos da categoria. As ações do projeto contam continuamente com a colaboração do trabalho voluntário de médicos e profissionais da área médica que ministram oficinas e palestras em várias cidades do estado.

Determinação para salvar vidas
O Hospital Montenegro está muito bem-estruturado para realizar transplantes de órgãos, o que explica o êxito da parceria com a Fundação Ecarta. Em 2013, o hospital passou a ser uma unidade médica de atendimento 100% SUS. Em 2017 ganhou a credencial de Hospital da Rede Brasil AVC. Antes disso, pacientes com traumatismo craniano ou acidente vascular cerebral eram levados para Canoas, ou seja, a unidade não era referência nos casos que poderiam ter como consequências mortes encefálicas. “Temos UTI de excelência, padrão 10, e uma equipe com gás, para atendimento emergencial 24 horas todos os dias”, relata Tatiana Michelon. A UTI tem dez leitos, entre os 150 do hospital, que conta com 128 médicos, 39 enfermeiros, 139 técnicos de Enfermagem e cinco psicólogos, num total de 468 funcionários.

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A médica Tatiana Michelon coordena a Comissão de diagnóstico de órgãos e tecidos: UTI de excelência e plantão 24 horas

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Mas nada disso traria resultados tão importantes se todo o conjunto não funcionasse em harmonia. “As campanhas passam, a cultura fica”, explica Fuhr. A cultura dos cidadãos sobre doação de órgãos para transplante é fundamental, pois raramente uma família será doadora se nunca antes tiver conversado sobre o assunto. Por isso a importância de a Fundação Ecarta ter levado o tema para palestras a quase 3 mil pessoas somente neste primeiro semestre do ano. A maioria no Vale do Caí, que congrega 19 municípios e população de aproximadamente 170 mil habitantes de acordo com o último censo do IBGE. Semestralmente, esse conhecimento chega inclusive às salas de aula, a convite da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), única faculdade gaúcha que tem disciplina (não obrigatória) sobre doação e transplantes. O objetivo do Hospital Montenegro é salvar e melhorar a qualidade de vida de pacientes e famílias que chegam em busca de socorro.

“Queremos ser um Vale doador”, enfatiza o diretor administrativo do Hospital Montenegro, Carlos Batista. Para alcançar o objetivo, a equipe trabalha com uma palavra-chave: “acolhimento” a todos os pacientes que chegam em busca de saúde e qualidade de vida. “O ato generoso de doar das famílias só é possível quando elas confiam nos profissionais. Desde o atendente da portaria até o médico da UTI, todos precisam oferecer atenção, respeito, competência e informações corretas”, ressalta.

O Hospital Montenegro tem 87 anos. É gerido pela Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (Oase), departamento da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, que atua há 107 anos no município. Na prática, o estabelecimento pertence a 13 mulheres que dirigem a instituição e tem mais de cem associadas da ordem religiosa presidida por Eliane Leser Daudt. Elas trabalham como voluntárias, não recebem remuneração. “Fazemos o que nossas antepassadas fizeram”, resume Eliane, dona de casa que aprendeu gestão com a mãe dela, que também comandou o hospital.

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Eliane Daudt (C) preside a ordem religiosa que administra o hospital

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O momento é de alegria, mas não foi sempre assim. “Por causa de um mau administrador, chegamos a uma dívida de R$ 5 milhões. Fomos buscar empréstimo, e todas tivemos os bens particulares penhorados. Pagamos em oito anos. Em janeiro de 2012, todas juntas, mulheres e maridos, brindamos o final da dívida. Foi uma noite de alegria e lágrimas”, relata. Para mais informações, acesse www.ecarta.org.br.

“Que ninguém perca a esperança”
Um acidente ocorrido há 11 anos confrontou o músico Felipe Carrard com a realidade daqueles que dependem de uma doação de órgão para sobreviver. Em 2007, ele estava limpando a sacada de seu apartamento quando despencou de uma altura de nove metros. Fraturou a coluna. Tinha 27 anos. Como sequela, teve os rins comprometidos, e precisou se submeter à hemodiálise por dois anos. Assim, passou a precisar dos cuidados do Hospital Montenegro, que o integrou à lista de espera para transplante, realizado na Santa Casa, em Porto Alegre, em julho deste ano.

“É um processo muito cansativo para a maioria dos pacientes. Três vezes por semana durante quatro horas na máquina para troca de sangue, para que haja a desintoxicação que o rim não consegue mais fazer. Depois vem a famosa fila, e os exames a cada dois meses para se saber as chances de estar bem para receber um possível rim que esteja para chegar. Essa demora é angustiante. Não depende de ninguém, a não ser da sorte. Poxa, será que vou ficar mais cinco anos na máquina, mais dez anos. Ou nunca vou ser transplantado? Sempre isso incomodando. Os índices dos exames às vezes me mostravam que eu estava à beira da morte. Um dia eu disse: ‘Mãe, eu tô me entregando. Não volto mais pra hemodiálise’. Dois dias depois, me chamaram para o transplante. A equipe do hospital foi fundamental pra superar a angústia, o cansaço. Dr. Nilo, dra. Tatiana. A gente chega a se apegar a essas pessoas. Tu tá lá três vezes por semana. Eu teria inúmeras pessoas pra citar. Patrícia. Niele. São algumas especiais. Atenciosas, eficazes. Me deram força pra prosseguir. A gente necessita dessa força, e o pessoal tá preparado pra te ajudar. Desejo, torço e aconselho: que ninguém perca a esperança!”.

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