Foto: Arquivo Pessoal
O sociólogo Richard Miskolci está participando do lançamento de dois livros, simultaneamente, que abordam a questão da sexualidade e gêneros: um sobre a ótica dos subalternizados e outro com ênfase na educação. É sobre esses dois trabalhos que ele fala ao Extra Classe. Miskolci co-organizou com Larissa Pelúcio o livroDiscursos fora da Ordem: deslocamentos, reinvenções e direitos (Fapesp/Anna Blume Editora) e também está lançando Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças(Ed. Autêntica). Atualmente, é professor no departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), coordena o grupo de pesquisa Corpo, Identidades e Subjetivações e orienta estudos sobre sexualidade, gênero e Teoria Queer. Doutor em Sociologia pela USP (2001), na Universidade de Chicago, estágio sob a orientação de Sander L. Gilman, especialista na intersecção raça e sexualidade. Em 2008, fez estágio pós-doutoral, com bolsa Fapesp, no Department of Women’s Studiesda Universidade de Michigan, Ann Arbor. É pesquisador colaborador do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp e membro do Corpo Editorial da revistaCadernos Pagu. É membro da International Sociological Association, da Sociedade Brasileira de Sociologia, da Latin American Studies Association e daBrazilian Studies Association. É parecerista da Fapesp e dos periódicos Revista Brasileira de Ciências Sociais, Cadernos Pagu, Revista Estudos Feministas, entre outros. É autor de artigos e resenhas publicados em diversas revistas nacionais e internacionais, além de coordenar a Série Sexualidades e Direitos Humanos, da Annablume Editora e participar do comitê editorial da Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar.
Extra Classe – Por que um debate sobre a sexualidade dos subalternizados e quem são eles?
Richard Miskolci – Temos no Brasil uma área relativamente desenvolvida de estudo de gênero e sexualidade e é resultado de algumas décadas de construção. Desde que eu comecei a trabalhar com esses temas, nos últimos dez anos, achei interessante acompanhar a produção acadêmica mundial e passei a perceber transformações mais recentes que se passavam em outros contextos acadêmicos.
Eu e Larissa Pelúcio, que também é organizadora do livro, pensamos em realizar um evento que depois resultou em livro, no qual a gente propusesse reflexões que fugissem do pensamento disciplinar, mas fosse multidisciplinar e surgisse de uma reflexão nossa de que as próprias demandas na área de sexualidade e gênero se relacionam com uma nova realidade histórica iniciada na década de 60, que é quando surge o chamado movimento feminista da segunda onda, o movimento pelos direitos civis dos negros norte- americanos, o movimento pelos direitos dos homossexuais. Tudo isso inicia nos EUA e depois, na década seguinte, se torna visível na França, posteriormente no Brasil e no México. Então a nossa ideia era refletir sobre temas que envolvessem gênero e sexualidade muito a partir dessa transformação desta área do conhecimento, que aconteceu associada a essas demandas políticas.
Not available
EC – Qual a profundidade disso?
Miskolci – As transformações dessas demandas políticas que surgem no mundo ocidental a partir dos anos 60 são muito profundas e apontam para que as pessoas, a ciência, os partidos políticos, a sociedade em geral percebam que o privado é político, como já dizia o jargão feminista. Também demandavam uma percepção de que o corpo, a subjetividade, a forma como as pessoas vivenciam o prazer, a sexualidade e o gênero são igualmente políticos e merecem atenção especial. É este o caminho que a gente seguiu. Nos inserimos nesse movimento. A organização do evento foi pensada de forma a visibilizar esse cenário atual que descende das transformações da década de 60. As demandas de mulheres com relação à igualdade política, de direitos ou a demanda de homossexuais e de outras identidades por igualdade jurídica ou por não serem patologizados. Esse tipo de demanda aponta para o corpo e subjetividade como espaço tanto para refletir quanto para demandar direitos.
‘‘A herança que o Brasil nos legou é de uma
sociedade que já foi colônia escravista, tornou-se
independente mantendo a esmagadora maioria
da população no cativeiro e proclamou a
República evitando universalizar a cidadania ’’
EC – A ideia é extrair esse debate da academia para dialogar com a sociedade?
Miskolci – Sim. Este é um ponto importante. Quando falo que a gente quis pensar nesses temas, mesmo que acadêmicos, com professores universitários, mas também com a proposta de pensar, não a partir do alto, das teorias hegemônicas, dos conceitos, mas também a partir de experiências de grupos socialmente subalternizados. O termo subalternizado é propositalmente usado para mostrar que essas pessoas não são assim por natureza. Há relações de poder, razões sociais e históricas que fazem com que as mulheres não tenham as mesmas condições que os homens no mercado de trabalho.
Há razões históricas que fazem com que certas vivências da sexualidade ainda não sejam socialmente reconhecidas como dignas e com acesso a direitos. Daí o termo. Então, a gente quis construir esse evento e o próprio livro, dando uma maior atenção a isso, partindo não de teorias e indo pra realidade, mas sim da experiência desses grupos socialmente subalternizados, de etnografias feitas com essas pessoas, ouvindo essas pessoas. E a partir dessas demandas e dessas expressões de vivências, refletir socialmente sobre elas. Então os “discursos fora da ordem” que estão no título do livro têm a ver com esta forma de construir o conhecimento em que a gente não tem um compromisso com a ordem estabelecida, mas sim com as demandas dessas pessoas que foram subalternizadas e não reconhecidas como parte integral da sociedade com acesso a direitos iguais, condições econômicas iguais.
EC – Quais são os grupos considerados subalternizados?
Miskolci – O primeiro deles é o das mulheres. Não por acaso o livro tem uma forte influência do feminismo. E além das mulheres a gente dá uma atenção especial às pessoas cuja experiência de gênero e sexualidade também não é socialmente reconhecida, que de uma forma bem simplificada podem ser chamados de homossexuais. Mas se prestarmos atenção na composição do livro veremos que praticamente não há textos sobre gays e lésbicas. O que há é uma maior atençãopara aqueles grupos que nem mesmo costumam ser associados a lutas de gays e lésbicas, que são pessoas intersex, que nascem com os dois genitais, masculino e feminino. Transexuais, travestis.
Ou seja, nós estamos mais preocupados com os que estão à margem das margens e não tanto com esses sujeitos subalternizados de forma hegemônica na sociedade contemporânea.
De uma forma geral, o grupo que a gente está dando maior atenção seria esse, mas eles também não dão conta de toda a realidade contemporânea, tem muitos outros.
Os estudos a partir das experiências destes servem para se pensar em outros que vão ganhar visibilidade com o tempo.Há uma década praticamente não se falava em pessoas intersex. Era uma coisa invisível, uma espécie de tabu, não era problema. De repente, hoje, isso não só é discutido, como coloca em xeque a visão médica. Foi só quando essa realidade ganhou visibilidade que percebemos ser a medicina quem cria os corpos dessas pessoas para serem considerados normais, não apenas daqueles que são operados para ficar com apenas um dos sexos, mas a todos nós, por meio de técnicas corporais dentre outras coisas, somos normalizados socialmente.
Em resumo, os grupos subalternizados, como foco, acabam sendo mulheres e expressões diversas de vivências de gênero e sexualidade, como os travestis, homossexuais e pessoas intersex.
EC − Em que consiste uma sexualidade dissidente?
Miskolci – Nós não temos nenhuma espécie de ilusão de que esses sujeitos cujas experiências até recentemente não eram consideradas nem existentes, tampouco passíveis de reflexão acadêmica ou de reconhecimento jurídico, sejam necessariamente revolucionários.A verdade é que na vida social existem pessoas cuja forma de vivenciar o gênero é dissidente. Por exemplo, mesmo que isso seja feito em segredo, como no caso de pessoas que são crossdressers (que na intimidade se vestem com roupas do sexo oposto) ou como os travestis, que fazem isso abertamente e modificam de uma forma mais completa o corpo na vida cotidiana, são expressões de sexualidades dissidentes e de deslocamento do gênero. Os sujeitos, no presente, demandam o direito de vivenciar o seu corpo e a sua sexualidade e seus prazeres, muitas vezes, em desacordo como o que a sociedade ainda exige delas.
EC – Do que a sociedade estabelece como padrão?
Miskolci – Exatamente. A verdade é que infelizmente a maior parte das esferas sociais ainda formam as pessoas para terem um modelo de comportamento. De como ser homem, de como ser mulher, de como se relacionar sexualmente com outra pessoa, de como vivenciar o gênero. E isso não é natural. Isso é social e historicamente criado. Somos adestrados desde a infância, particularmente por práticas educacionais, a construir os nossos corpos, o nosso gestual, nosso modo de falar, de forma a que se você nasceu com um pênis terá de necessariamente ter expressões totalmente reconhecidas como masculinas. Isso é aprendido socialmente e é resultado de um adestramento infinito
EC – Estereótipos?
Miskolci – Mais do que isso, são convenções culturais, não apenas estereótipos, o que é muito pior. Somos criados em uma sociedade em que ela já pressupõe o que é masculino ou feminino e aprendemos, não por palavras, mas sim por meio de imersão na cultura a corporificar.
EC – Em resumo, qual o enfoque do seu mais recente livro “Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças”?
Miskolci – Meu livro Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças é uma introdução a essa vertente contemporânea do feminismo escrito especialmente para educadoras brasileiras. A obra busca auxiliar profissionais da área a refletir sobre os desafios presentes da sociedade brasileira, historicamente muito autoritária e conservadora. Findo o regime militar em 1985, e com a promulgação da Constituição em 1988, o Brasil começou a se democratizar lentamente. Hoje, passados quase 25 anos, ensaiamos um novo pacto nacional, uma reformulação do que compreendemos como sendo nosso país, o que é a cidadania e quem pode ser reconhecido como sujeito de direitos. Neste contexto, as problemáticas das diferenças de gênero, sexualidade, raça, entre outras, ganham maior visibilidade e importância. Afinal, que país queremos para o futuro? Um Brasil plenamente democrático exige de nós, agora, uma nova forma de lidar com aquelas e aqueles que – historicamente – foram humilhados e desrespeitados.Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças busca trazer à discussão como compreender e reconhecer as diferenças como a maior riqueza da vida em uma sociedade democrática, o que ela traz de mais promissor na esfera da vida social, política, mas também no respeito e acolhimento das pessoas quaisquer que sejam suas escolhas amorosas ou sexuais, por exemplo.
EC – Os professores e a escola estão preparados para lidar com as diferenças?
Miskolci – Os professores e professoras brasileiros são, em sua grande maioria, profissionais conscientes e cada vez mais engajados nas problemáticas das diferenças.Depois de coordenar o Curso Gênero e Diversidade na Escola da UFSCar, em 2009, para mais de mil educadores/as em todo o Brasil, pude constatar como este país mudou nas últimas décadas, e para melhor. Ainda que nem todos os educadores estejam preparados para lidar com gênero, sexualidade, raça e outras diferenças no cotidiano escolar, é perceptível que eles já não mais as ignoram e elas pautam muito do que se passa dentro da escola.Este é um primeiro e importante passo para despertar o interesse sobre esses temas. Faltam cursos e materiais claros e acessíveis, mas a própria reoferta do GDE-UFSCar a partir deste ano, entre outras país afora, mostra que a demanda dos educadores é crescente e precisa ser atendida. Há uma forte demanda dos profissionais de Educação por esses temas, o que é perceptível toda vez que o Estado oferece cursos de aperfeiçoamento e especialistas criam livros sobre diferenças.
EC – Qual a herança da educação brasileira neste sentido?
Miskolci – A herança que o Brasil nos legou é de uma sociedade que já foi colônia escravista, tornou-se independente mantendo a esmagadora maioria da população no cativeiro e proclamou a República evitando universalizar a cidadania. Durante o século 20, manteve-se uma sociedade extremamente injusta, desigual e autoritária, traços pela última vez reforçados durante o regime militar de 1964 a 1985.Foi apenas após a chegada à democracia e a promulgação da Carta Magna de 1988 que nosso país começou a ensaiar a promessa de se tornar efetivamente uma sociedade democrática.
A esfera da educação, como todas as outras, é herdeira desse mesmo passado e não é mero acaso que a universalização do ensino básico tenha deslanchado apenas nos últimos 20 e poucos anos. A área educacional brasileira do presente tem um potencial riquíssimo não apenas de educar no sentido clássico do termo, como se fazia durante a sociedade industrial ou de massas, antes educar em um diálogo com o povo que agora chega à educação formal ansioso por reconhecimento e acesso a direitos. Não creio ter sido mero acaso que a Teoria Queer adentrou no Brasil por meio da área de Educação, em especial pelo trabalho pioneiro de Guacira Lopes Louro, ou de psicólogos e sociólogos engajados em uma nova relação com os sujeitos que antes nossa sociedade relegava ao desprezível ou abjeto.
Foi na expansão do ensino para largas partes da sociedade brasileira que – pela primeira vez – ela se descobriu merecedora de serviços do Estado, reconhecimento político, pessoal, até íntimo. A educação brasileira é herdeira de nosso passado injusto, desigual e autoritário, mas desde o fim do regime militar também se tornou um espaço de encontro entre o Estado e o povo, possivelmente o primeiro ensaio de criação de demandas de igualdade, justiça social e cidadania da história brasileira. Se as diferenças ganham protagonismo cada vez maior nas escolas é porque elas são o que nossa sociedade negou ou sufocou por séculos, mas que nossa democracia permitiu começar a florescer como sua maior riqueza e, quiçá, o anúncio de um futuro melhor que nós, que crescemos na época do autoritarismo, jamais pudemos nem mesmo vislumbrar como possível até recentemente.
‘‘ Os professores e professoras brasileiros são, em sua grande maioria, profissionais conscientes e cada vez mais engajados nas problemáticas das diferenças ’’
Foto: Arquivo Pessoal