Os falsos liberais e a morte do bem-estar social
Fotos: Igor Sperotto
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O Brasil pode seguir o mesmo caminho de crise econômica profunda que viveu a Grécia recentemente, alerta o advogado, professor e pesquisador Plauto Faraco de Azevedo. Segundo ele, a fome de dinheiro que move o neoliberalismo com sua receita de privatizações, cortes de empregos e de direitos, rentismo e especulações, em nada lembra o liberalismo econômico do século 18, movimento que no seu contexto histórico representou um avanço político-jurídico incontestável. “Eles querem a repetição do liberalismo, mas só a parte em que ainda não havia o estado democrático de direito, querem o estado não interventor”, ironiza Azevedo, 80 anos completados no dia 17 de novembro, autor do recém-lançado Neoliberalismo – Desmonte do Estado Social (Libretos, 2018). Formado em 1963 na Ufrgs, onde lecionou por 30 anos até se aposentar, Plauto foi pesquisador do CNPq e fez doutorado pela Université Catholique de Louvain antes de integrar o primeiro corpo docente da Fundação do Ministério Público (FMP), de Porto Alegre. Nesta instituição, ele segue lecionando diversas disciplinas do Direito, especialmente Globalização e Economia, nos cursos de graduação e mestrado. Filho de comerciante, aluno de escola pública em Alegrete, sempre rejeitou a concepção formalista que distancia o Direito da vida das pessoas. “Sou filho do estado social”. No final de outubro, ele recebeu o Extra Classe em seu apartamento no bairro Menino Deus para falar sobre esse que é seu oitavo livro. “A globalização, por dentro do neoliberalismo, simula uma repetição do movimento liberal, menosprezando o meio ambiente e trabalhando pela eliminação dos direitos fundamentais sociais, em manifesto desrespeito à Constituição”, resume.
Extra Classe – Por que o neoliberalismo representa o desmonte do estado de bem-estar social?
Plauto Azevedo – O neoliberalismo ainda em voga, iniciado no final do século 20, é um simulacro do liberalismo, movimento do século 18, que surgiu como resistência ao poder ilimitado e incontrolável do rei. Um poder que foi muito bem definido por Luís XIV, que dizia: ‘L’Etat c’est moi’, ou seja, ‘o Estado sou eu’. A resposta dos súditos foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, inspirado no trabalho de Charles de Montesquieu (1689-1755) sobre o legado de seu predecessor britânico e do filósofo grego Aristóteles, criou a obra O Espírito das Leis, em que propõe a divisão dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso foi um avanço extraordinário do ponto de vista político-jurídico, primeiro sinal da democracia. Porém, exclui os pobres, submetidos à fome, à miséria e a extenuantes jornadas de trabalho a tal ponto que, em 1802, foi promulgada na Inglaterra a Moral and Health Act, a Lei da moralidade e da saúde, porque constataram que mulheres e crianças trabalhavam até 16 horas por dia e não poderiam sobreviver nessas condições. Foram em frente sem tratar dos direitos sociais fundamentais. Na Declaração falava-se de direito à propriedade, de direito à informação sob todos os sentidos, da liberdade individual. Seguiram-se a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a quebra da Bolsa de Nova York (1929), depois a Segunda Guerra Mundial (1945-1949). Os que sobreviveram a tudo isso e a todos os demais conflitos que ocorreram entre povos e nações nesse período não tinham meios para seguir em frente.
EC – Como surgiram os direitos sociais?
Azevedo – Um dos expoentes da defesa dos direitos fundamentais é o britânico John Maynard Keynes, grande economista, de uma sinceridade extraordinária na sua afirmação “eu sou capitalista e se não funcionar o que quero fazer eu continuarei a ser capitalista”. O que ele fez? O Estado que era não interventor, que nada fazia, sob Keynes passa a intervir na economia, pois ele acreditava que com isso as pessoas teriam uma vida muito melhor. E, ganhando mais, poderiam comprar e consumir mais e a vida seria outra. A obra de Keynes influenciou as primeiras constituições que garantiram os direitos sociais fundamentais, a mexicana, de 1917, que é pouco referida, a alemã de Weimart (1919), que começaram a reconhecer os direitos fundamentais sociais como uma exigência do nosso tempo, da civilização, por que sem moradia, sem alimentação, sem ensino, sem saúde, o que as pessoas podem fazer para respeitar a propriedade que elas não têm, para proteger a liberdade que elas praticamente não vivem?
Foto: Reprodução Foto: Reprodução
Azevedo – Fundamental foi a afirmação de Rousseau, no século 18, sobre as bases do contrato do estado social, a liberdade e a igualdade, praticamente o que já havia dito Platão no século 5 a.c.: “se assim não for, os muito pobres terão obrigação de se vender e os muito ricos poderão comprá-los”. Então, é fundamental que os ricos não ganhem tanto e que os pobres não ganhem tão pouco, para que haja liberdade”. Aristóteles, que foi aluno de Platão, dizia que é essencial para a democracia que se cumpra a justiça distributiva, a divisão equitativa dos bens, dos cargos. Tudo isso foi a base da democracia, a separação dos poderes, a defesa da liberdade em todos os aspectos. A história nos ensina que sem os direitos sociais não há como a maioria desfrutar da liberdade e da propriedade.
EC – Por que os direitos fundamentais se converteram em privilégio de ricos?
Azevedo – Se as pessoas não têm liberdade, não são respeitadas pelo Estado. Se esse princípio não tivesse sido observado, não teríamos a base da democracia. São os chamados direitos primários, fundamentais. Com o tempo, a vivência mundial percebeu, e nesse sentido é que ela foi impulsionada por Keynes, que esses direitos se tornaram um privilégio dos ricos. Se a pessoa não tem os bens fundamentais sociais, ou seja, os direitos fundamentais de segunda geração, como é que ela vai usar da liberdade da propriedade? Eu tenho moradia, posso trabalhar na minha casa. Onde está a liberdade dos que moram na rua e que não têm esses direitos fundamentais respeitados? Simulam que o neoliberalismo é a repetição do liberalismo. Eles querem a repetição do liberalismo, mas só a parte em que ainda não havia o estado democrático de direito, querem o Estado não interventor.
EC – As violações de direitos são resultado da omissão do Estado?
Azevedo – Lamentavelmente é isso que está acontecendo no Brasil nos dias de hoje. Basta caminhar pelas ruas e você verá a quantidade de pessoas miseráveis dormindo sobre papelões, plásticos, em moradias improvisadas, e ninguém reage contra isso. As pessoas procurando emprego que não existe. O neoliberalismo está desmontando o Estado social. O que ocorreu neste governo do terrível Michel Temer? Fez reforma no Direito Trabalhista de tal maneira a permitir que as mulheres e crianças trabalhem em lugares insalubres.
EC – O receituário neoliberal para o Brasil pós-Lula pode levar o país a uma recessão semelhante à da Grécia. Por quê?
Azevedo – A Grécia, que é o berço da nossa civilização, teve um problema econômico seríssimo. Não se pode negar que houve corrupção no início, mas isso poderia ter sido resolvido com alguma ajuda internacional. Mas não. O que foi dito para a Grécia? Tem que privatizar tudo. A Grécia privatizou o porto de Pireu e 14 aeroportos. Os aeroportos foram adquiridos pela Frapor, a mesma multinacional que está tratando do nosso aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Em suma, o que está acontecendo é a repetição do problema da Grécia. Por isso, na capa do meu livro está o Partenon, símbolo da Grécia destruída, John Maynard Keynes que reagiu anteriormente a tudo isso, e a nossa Constituição que está sendo flagrantemente desrespeitada.
EC – O contexto é de crise global?
Azevedo – O que se passou na Grécia (a partir de 2008) e o que está se passando no Brasil é de certo modo mundial. Excetuando Alemanha, França, Inglaterra. (Entre meados de 2008, início da depressão na Grécia, e maio de 2015, a economia grega perdeu mais de um terço do seu valor. A renda disponível entre os mais ricos retrocedeu a níveis de 1985, ante o maior desemprego na União Europeia, 25,7%, e 50% entre jovens. Em 2018, o país fechou o terceiro acordo desde 2010, para ajuda financeira da UE e do FMI de 273 bilhões de euros). Eles dizem que o mundo é assim e que não pode mudar. Quase quebraram a Espanha, exigindo coisas nesse sentido. Resultado: uma parte da Espanha, a Catalunha, onde está Barcelona, quer abandonar a Espanha. Fizeram coisas simultâneas com Portugal, um pouco mais tênues, mas que deixam o país numa situação muito difícil, tanto que para ter receita está aceitando cada vez mais imigrantes que tenham meios de viver lá.
EC – O Brasil vai por esse caminho?
Azevedo – Sim. Se continuar, nós vamos passar por uma situação semelhante à da Grécia.
EC – Por quê?
Azevedo – Porque o que foi feito na Grécia está sendo feito no Brasil. Estão leiloando o Pré-Sal. Há quem negue o problema ecológico. Tanto estão pensando assim que esse presidente Bolsonaro eleito disse que vai unir os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente.
EC – Mas, diferente da Grécia, o Brasil viveu recentemente um ciclo de crescimento econômico e social…
Azevedo – O neoliberalismo estava meio discreto, mas agora ele está abrindo o panorama nesse sentido.
EC – Quais violações da Constituição o senhor identifica na era Temer
Azevedo – O artigo primeiro diz que é princípio essencial a dignidade humana, o terceiro fala em erradicar a pobreza, o que absolutamente não está sendo cumprido, assim como o artigo 170, que trata da soberania nacional, a propriedade privada e sua função social, a livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego, o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte está sendo flagrantemente desrespeitado. Leiloaram o Pré-Sal sem consulta popular. Nesses leilões, as empresas se reúnem, fazem um acordo entre elas e depois se retiraram da concorrência, permanecendo uma, que vence o leilão, pagando muito pouco. Com o Bolsonaro eleito, a primeira coisa que disse seu futuro ministro da Fazenda é que ele vai começar pela privatização daquilo que constitui a riqueza do Estado. Evidente que as multinacionais terão um interesse extraordinário, porque nenhum país é tão rico quanto o Brasil. E ademais, não estão respeitando, há muito tempo, o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, como reza o artigo 225. E desde a campanha acenam com a fusão dos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Outro exemplo flagrante de desrespeito à Constituição ocorreu três meses depois da posse do ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. Com a concordância dessa pessoa inominável que é o Temer, eles conseguiram que o Parlamento aprovasse a Emenda Constitucional 95, a PEC da Morte, congelando os investimentos em saúde e educação por 20 anos. Falam muito do Judiciário, mas o Executivo e o Parlamento tiveram uma participação extremamente difícil.
“O que se passou na Grécia (a partir de 2008) e o que está se passando no Brasil é de certa forma mundial”
EC – O que significa vincular o Direito à realidade social?
Azevedo – É preciso pensar na realidade humana, porque se o Direito não pensar nessa realidade será sempre um Direito inconcebível. Deve ser estudado e aplicado tendo em vista a sociedade e seus problemas. Meu ponto de partida é o seguinte: nós, professores, assim como todos os cidadãos temos que ter claro que o Direito não pode ser visto de forma isolada da realidade social. O Direito tem que ser compreendido como algo que resolve os problemas sociais, algo que está nos artigos sexto e 225º da Constituição. Não podemos aceitar que aquilo que tem sido um grande sucesso histórico econômico do mundo seja desmontado. É isso que eu chamo de neoliberalismo. Porque o liberalismo, repito, foi algo extraordinário, que derivou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Mas hoje querem destruir isso, mundialmente, porque querem que o Estado fique de mãos no bolso, nada faça, que deixe que o poder econômico domine, terrivelmente a mercê do poder das multinacionais que têm condições e querem adquirir tudo que interessa ao povo brasileiro. A economia sem limites. Por isso, afirmar que o neoliberalismo é um novo liberalismo é uma farsa. Trata-se da destruição do Estado social.
EC – Qual a relação do modelo neoliberal com o desemprego?
Azevedo – Em 1995, no hotel Fairmont, na Califórnia, houve um encontro de cientistas, líderes empresariais mundiais, o presidente George Bush, a primeira-ministra britânica Margareth Tatcher, líderes políticos da globalização, gente que só pensa em dinheiro, o Ted Turner, proprietário da CNN, cujas empresas uniram-se às da Time Warner, do que resultou o maior complexo de comunicação do planeta. Esse encontro reuniu mais de 500 pessoas para um debate que durou três dias, envolvendo inclusive professores das universidades de Stanford, Harvard e Oxford. Na presença de magnatas do Oriente, o presidente alemão Roman Herzog (1934-2017) afirmou que o modelo europeu de Estado de bem-estar social estava superado por ter se tornado excessivamente caro e que uma mudança era inevitável, sacrifícios teriam que ser impostos a todos. Nesse encontro, os mais ricos chegaram ao consenso de que o Estado social é muito caro e resolveram que o modelo a ser adotado seria o da sociedade dos 20 por 80, ou seja, 20% passariam a ter emprego e 80% ficariam à espera de trabalho.
EC – Como o senhor avalia a atuação do Judiciário?
Azevedo – Sinceramente se fala muito que os juízes estão apartados da realidade. Eu acho que há muita dificuldade na solução dessa argumentação jurídica dos tribunais. Porque há uma modificação súbita do modo de ver a lei. Mas há juízes que são extraordinários. Por exemplo, no STF, não quero dizer que o juiz Levandowski seja extraordinário, mas ele deu uma decisão que eu apreciei muito. Antes do recesso, ele recebeu a lei da privatização e decidiu não aplicar essa lei por entender que ela ocasionaria grandes problemas ao país e remeteu a decisão ao conjunto do Supremo, o que retardou o processo de privatização. É muito importante aplicar a lei, mas saber justificar. Por que há leis que efetivamente não são aceitáveis. Assim foi em todos os tempos. No meu livro Limites e justificação do poder do Estado (2014), mostro coisas que são inacreditáveis no nazismo. O nazismo surgiu e subiu com Hitler entre 1932-1933, tudo dentro da lei, e no primeiro movimento, que eu acho da maior relevância, foram reunidos grandes empresários, milionários, inclusive judeus, que conseguiram a doação preliminar de 3 milhões da moeda vigente à época na Alemanha. Para instaurar um regime assim, sempre prevalece o interesse daqueles que dominam.
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ENTREVISTA | Plauto Faraco de Azevedo (2ª parte)
(Nota do Editor: O trecho a seguir não faz parte da edição impressa.)
Foto: Igor Sperotto
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EC – O senhor citou Lewandowski, que conduziu o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff com base na acusação das pedaladas fiscais que agora a perícia do Senado afirma não terem existido. Isso também foi conduzido dentro da lei?
Azevedo – Ninguém fala nada, mas a maneira como ele conduziu o processo deixou muitas pessoas indignadas, sobretudo parlamentares. Não podendo impedir que a Dilma fosse retirada do poder, fez outra coisa fundamental, porque queriam retirar a Dilma do poder e simultaneamente torna-la inelegível. Ele conseguiu preservar os direitos políticos, o que provocou inconformidade em setores do Congresso, mas resolveu, a meu ver, do melhor modo possível.
EC – Não fica a impressão de que o Judiciário se omite ou atua com viés político, dependendo da pauta?
Azevedo – Vamos falar um pouco no Judiciário. As pessoas têm sido cultivadas para acreditar que o Judiciário é um poder que não tem significado. É muito importante na verdade. Os juízes não resolvem tudo de uma única maneira, isso seria a robotização do Judiciário, ao passo que é uma coisa humana e é da essência humana no mundo inteiro os juízes terem opiniões diferentes. Vence a maioria, bem ou mal. A então presidente do STF, Cármen Lúcia, foi o voto minerva que colocou o Lula na cadeia. Há decisões que não são boas. Outro exemplo, a Rosa Weber, do TSE, não querer colocar em votação o caso das fake news contra o PT durante as eleições, a meu ver foi uma coisa péssima.
EC – O senhor acha aceitável o presidente do STF, ministro Dias Toffoly, nomear seu assessor especial o general da reserva Fernando Azevedo e Silva e afirmar que o golpe de 1964 foi um movimento; ou o general Sérgio Etchegoyen participar de uma coletiva da presidente do TSE?
Azevedo – Eu acho que isso está totalmente errado e revela um temor que os juízes não podem ter, particularmente o presidente da Suprema Corte. Colocar um general dentro do Supremo? Isso me faz um mal extraordinário! Isso nunca houve na história do Brasil. É uma subserviência inigualável e inaceitável. A atuação da Rosa Weber não me inspira nenhuma admiração.
EC – O que pensa sobre o comportamento do juiz Sérgio Moro?
Azevedo – Esse Moro, a meu ver, está querendo resolver as questões de um modo indefensável, sempre contra o PT. Não sei em que medida ele é influenciado por forças obscuras.
Assista ao vídeo com trecho da entrevista:
MVI_9065 from Extra Classe on Vimeo.