Educação domiciliar e o projeto reacionário de educação
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
“Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza,
é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença
de outros seres humanos”
(Hannah Arendt)
Apesar do presidente Bolsonaro insistir nos seus discursos que sua gestão seria “sem viés ideológico” e que o “Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas”, a gestão atabalhoada do MEC já é a mais ideológica da história da pasta, permeando o projeto de educação do governo, anti-intelectualista, típico de governos autoritários que chegam ao poder por vias populistas e se sentem ameaçados pela liberdade de pensamento, especialmente a liberdade de imprensa e da autonomia acadêmica.
O professor e historiador Luiz Antônio Cunha, em recente palestra sobre a educação atual no Brasil, identifica um movimento que pretende conter os processos de secularização da cultura e de laicidade do Estado no Brasil. Esse processo nega o presente que vivemos e compreende o futuro como ameaçador, desejando, portanto, voltar ao passado com a intenção de regenerar a moral da sociedade.
Segundo o professor Cunha, esse movimento de retrocesso assume feições mais ou menos institucionalizadas em projetos e tem sido acionado por seis vetores: o ensino religioso nas escolas públicas, o combate à “ideologia de gênero”, o programa “escola sem partido”, a educação moral e cívica, a militarização das escolas públicas e a educação domiciliar, constituindo um “Projeto Reacionário de Educação”.
Fundamentalmente, o projeto de lei dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar, altera o Estatuto da Criança e as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e prevê que a educação domiciliar consiste no regime de ensino de crianças e adolescentes dirigido pelos próprios pais ou pelos responsáveis legais. No PL consta que esse ensino visa o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, cabendo aos responsáveis assegurarem a convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes.
Esse projeto se insere em um movimento mais amplo de uma concepção de escolas, universidades e professores como ameaça cultural a ser combatida urgentemente. Trata-se, na verdade, de um pensamento anti-intelectualista que visa a degradação das universidades em seus discursos públicos, atacando professores e estudantes, com o objetivo de ignorá-los enquanto fontes legítimas de conhecimento e expertise. Desta forma, o pensamento fascista desconstitui os espaços de reflexão, de produção de conhecimento, de saber, de cultura e arte, mascarando a realidade.
A proposta se insere, também, numa visão de família patriarcal, enquanto um ideal que políticos fascistas pretendem recuperar ou criar na sociedade. A família patriarcal é sempre representada como uma parte central das tradições da nação, diminuída recentemente pelo advento do liberalismo e do cosmopolitismo. A educação domiciliar fundamenta-se na ideia de preservação de crenças individuais e contra a suposta doutrinação de crianças propondo o afastamento das crianças e adolescentes do ambiente escolar. Tal perspectiva, segundo Cunha, pode gerar um grupo de alienados sociais, parte de uma classe social específica: aquela que tem condições de abrir mão de horas de trabalho e pagar professores particulares.
Já para Marcelo Ribeiro (Univasf), ao possibilitarmos legalmente o ensino domiciliar, movimento importado dos EUA, haverá fragilização do dever do Estado e direito das famílias em relação à garantia de escolas para as crianças e adolescentes. Uma porta se abre na direção de relativizar a oferta de vagas/escolas por parte do Estado, especialmente em tempos de crise fiscal. Em nome de uma pretensa defesa da autonomia familiar de educar os filhos de acordo com os moldes da própria família, nega-se à criança a possibilidade de estar em espaços e contextos de convivência plural, coletiva e social. A sociedade também perderá, visto que essa ideologia ultraliberal concebe o desenvolvimento do sujeito numa perspectiva individualista e egoísta.
Há um tipo de aprendizagem que só acontece no ambiente escolar, explica a professora Telma Vinha (Unicamp). “Não se trata apenas de um conteúdo específico, que a família pode até ter condições de ensinar. Mas de aprendizados que pressupõem a relação cotidiana entre pares. Entre eles estão a capacidade de argumentação, de ouvir o outro e convencê-lo sobre uma perspectiva, de perceber que regras valem para todos e conseguir chegar a uma decisão criada em conjunto”, explica. A psicolinguista argentina Emilia Ferreiro, no livro Passado e presente dos verbos ler e escrever, ressalta uma missão da escola nos dias atuais: “a de ajudar todas as crianças do planeta a compreender e apreciar o valor da diversidade”.
Carlos Roberto Jamil Cury, docente da PUC-MG, explica que a escola tem duas funções básicas. “Uma é permitir uma situação permanente e contínua de interação com o outro, que é alguém diferente. A outra é de ser um lugar de compartilhamento de conhecimentos e de conteúdos”. Para além disso, é na escola que o estudante vai encontrar uma estrutura preparada para recebê-lo: equipe formada por professores, gestores, coordenação pedagógica, Secretaria de Educação e um planejamento que organiza seu funcionamento e orienta quais devem ser os passos a seguir ou os conteúdos essenciais.
Mas é Hanna Arendt, em A condição humana, que ajuda a distinguir que entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estado. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera “além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos” (o homem é, por natureza, político, isto é, social).
No pensamento grego, a esfera da polis, era a esfera da liberdade, diferente da vida em família. A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando do outro e também não comandar. Dessa forma, dentro da esfera da família, a liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida que deixava o lar e ingressa na esfera polis (política). Nessa perspectiva, todo o conceito de domínio e de submissão, de governo e de poder, eram tidos como pré-políticos, pertencentes à esfera da vida privada (familiar) e não da esfera pública.
Tanto a família como a escola possuem funções educativas. Elas não se contrapõem. Precisam ser complementares. Aos pais, conforme sugere Nílson Souza, ao invés de transferir para a escola toda a responsabilidade pela educação de suas crianças e adolescentes, é necessário que assumam o papel que lhes compete, especialmente no que se refere à atenção, ao acompanhamento e à imposição de limites. Que ensinem, em casa, principalmente pelo exemplo, o respeito aos professores e aos colegas, os princípios elementares de disciplina e os valores morais indispensáveis para a cidadania e a vida em sociedade. Que ofertem aos filhos parte do tempo que dispensam ao trabalho, às redes sociais e às diversões de adultos, proporcionando-lhes um ambiente alfabetizador e cultural, leituras, programas educativos e – o mais importante – compreensão, incentivo e apoio nas suas tarefas escolares.
A escola é um espaço público, plural, de convivência social (pequena sociedade) imprescindível para o exercício da cidadania e de qualificação profissional por meio do saber técnico-científico, ou seja, espaço de excelência acadêmica. Porém, a função social da escola é “educar humanos por humanos para o bem da humanidade” (Mikhail Epstein), ou seja, um espaço de humanização, onde se aprende a escutar, a pertencer a uma coletividade diferente do núcleo familiar e comunitário, a conhecer e respeitar o outro como ele é, desenvolvendo novos conhecimentos e ampliando horizontes para além do umbigo privado familiar.
Escola é … o lugar de se fazer amigos, educar-se, ser feliz!É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo. (Paulo Freire)
Gabriel Grabowski, filósofo, doutor em Educação, professor e pesquisador, integra a equipe de colunistas do Extra Classe desde janeiro de 2017. Escreve mensalmente sobre questões da dinâmica no meio educacional.