Políticas para educação, mulheres e povos indígenas estão asfixiadas
Foto: IFRS/ Divulgação
O levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) com base em dados do Portal do Orçamento do Senado, publicado na terça-feira, 16, demonstra que os impactos dos cortes de verbas promovidos por Jair Bolsonaro (PSL) são mais nocivos a três áreas específicas relacionadas à garantia dos direitos humanos: políticas para educação, mulheres e povos indígenas. “Os cortes de recursos não surpreendem, pois o atual governo advoga sem pudores a expansão do agronegócio e da mineração em terras indígenas. A fragilização de projetos econômicos alternativos como os promovidos pela PNGATI e dos procedimentos de licenciamento de empreendimentos são imprescindíveis para esse projeto”, alerta a nota assinada por Carmela Zigoni, Cleo Manhas, Leila Saraiva e Livi Gerbase, assessoras políticas do Inesc.
A execução orçamentária da educação vem caindo ao longo da década. Entre 2014 e 2018, a queda foi de 13,5% em termos reais. No primeiro semestre de 2019, o contingenciamento retirou 5% do que foi autorizado inicialmente. Quando da aprovação da Emenda 95, conhecida como Teto dos Gastos, houve a promessa de que os setores de Saúde e de Educação não seriam afetados. Mas não é o que os números dizem no caso do MEC.
No âmbito da Função Educação, algumas ações foram zeradas, sendo 100% contingenciadas. A ação Apoio à Infraestrutura da Educação Básica, direcionada para implantação e adequação de estruturas esportivas escolares, é um exemplo de contingenciamento total dos recursos autorizados. De acordo com o Ibge, em apenas 27% das cidades brasileiras escolas possuem campo de futebol, ginásio, pista de atletismo ou piscina. O Brasil sediou as Olimpíadas com apenas 43 pistas de atletismo e 265 piscinas em escolas, em todo o país. Além disso, as desigualdades regionais ficam explícitas, visto que a maior parte dos equipamentos se concentra nos estados de Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará e Paraná. Nos estados de Rondônia, Amapá, Pernambuco e Mato Grosso do Sul, não há escolas estaduais com equipamentos esportivos. Apesar disso 100% dos recursos estão contingenciados.
Outra ação com corte da totalidade dos recursos é a Concessão de Bolsa Permanência no Ensino Superior. O governo já havia enviado orçamento zerado para esta ação, contudo, houve um esforço no Congresso de se fazer emenda do relator e de comissão para garantir a permanência de indígenas, quilombolas e estudantes de baixa renda nas universidades, que teve todo o recurso suspenso. Como este é um gasto necessário todos os meses, na prática estas bolsas não atenderão ao seu público. O próprio portal do MEC diz que o programa foi instituído para minimizar as desigualdades sociais, étnico-raciais e contribuir com a permanência e diplomação de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O fato de não se destinar recursos para a ação é um sinal de que as desigualdades vão se ampliar.
As demais ações com 100% de corte relacionam-se com os exames de avaliação da educação básica, educação de jovens e adultos (EJA), educação profissional, dentre outras. Ou seja, nem aquilo que o governo diz priorizar está isento de cortes, como educação profissional, por exemplo. Além disso, cortar recursos da EJA, que é a parte mais fragilizada da educação, é vulnerabilizar ainda mais os vulneráveis, pois sem conclusão da educação básica, a maioria entra para as estatísticas do desemprego.
“Os cortes de recursos não surpreendem, pois o atual governo advoga sem pudores a expansão do agronegócio e da mineração em terras indígenas. A fragilização de projetos econômicos alternativos como os promovidos pela PNGATI e dos procedimentos de licenciamento de empreendimentos são imprescindíveis para esse projeto”
Casa da Mulher Brasileira
Foto: Casa da Mulher Brasileira/ Divulgação
O Inesc vem denunciando há algum tempo o progressivo desmonte das políticas para as mulheres em função de diversas medidas de austeridade, como contingenciamentos e a Emenda Constitucional 95, que congelou as despesas da União por 20 anos. Assim, entre 2015 e 2018, os gastos da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) caíram 65% em termos reais.
Em 2019, foram autorizados R$ 48,2 milhões para o Programa Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência, praticamente metade do que foi alocado em 2017. Destes, R$ 21,5 milhões seriam para o Disque 180, mas foram cortados R$ 4,5 milhões. “Esse programa – que é a principal porta de entrada da política de enfrentamento a violência, o número para o qual todas as brasileiras podem ligar em caso de sentir-se ameaçada ou de ser agredida – teve uma redução de 20,7%”, destaca.
Em 2017 o recurso autorizado para o Disque 180 foi de R$ 36,4 milhões e o executado de R$ 31,7 milhões, o que corresponde a 87% de execução. Em 2017 foi autorizado o montante de R$ 39,4 milhões e executados R$ 30,8 milhões (78% de execução). Em 2018 nada foi autorizado, nem gasto.
O Inesc também divulgou que o Relatório Balanço Disque 180, elaborado pelo Governo, não está mais disponível ao público. Na pesquisa realizada em 2017, o Inesc cita o Balanço de 2016, observando que, em 10 anos, foram 5 milhões de acessos ao serviço, com uma média anual de 500 mil ligações.
Em relação à Casa da Mulher Brasileira, equipamento fundamental para abrigar mulheres em situação de risco, foram contingenciados 54% dos recursos, já insuficientes, de R$ 1,3 milhão: hoje, são sete unidades construídas que necessitam de verbas para manutenção, e apenas duas em funcionamento, de uma promessa de 27 casas, uma por Estado, presente no PPA – Plano Pluri Anual 2016-2019.
Povos indígenas
Foto: Ricardo Stuckert
As principais ações do programa Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas também sofreram com os contingenciamentos, à exceção da ação destinada à promoção da saúde indígena – que, no entanto, tem passado por outra ordem de desmontes. As pesquisadoras apontam que os cortes orçamentários compõem o quadro de etnocídio em curso no país: “eles atingem tanto a garantia aos direitos territoriais indígenas como esvaziam políticas de participação, de incentivo à autonomia econômica das comunidades, preservação do patrimônio cultural indígena, além de políticas elaboradas para grupos específicos como os grupos indígenas de recente contato”, concluem as pesquisadoras do Inesc.
Nesse contexto, uma política que sofreu com o contingenciamento foi a Preservação Cultural dos Povos Indígenas, destinada a salvaguardar o patrimônio cultural indígena por meio de pesquisas, divulgação e documentação. Essa política vem apresentando queda constante de seus gastos desde 2016. O corte atingiu 34% de seu orçamento autorizado. Na ação Direitos Sociais e Culturais e a Cidadania, relacionada a instâncias de monitoramento, acompanhamento e participação nas políticas voltadas aos povos indígenas, o corte foi de 31%.
“Nessa ação, chama atenção a retirada de R$ 161 mil dos parcos R$ 475 mil autorizados para o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), principal órgão consultivo das políticas públicas para os povos indígenas, cujas reuniões estão suspensas desde 2016. Junto com as demais instâncias participativas, o conselho sofreu recentemente o ataque do governo Bolsonaro por meio do Decreto 9.759/19, que extinguiu os órgãos colegiados da esfera pública. A liminar concedida pelo STF no dia 13 de junho suspendeu o efeito da lei para instâncias citadas por lei, como é o caso do CNPI, porém seu esvaziamento segue em curso com o minguar de recursos”, alerta o relatório.
A ação Gestão Ambiental e Etnodesenvolvimento sofreu contingenciamento de 35%. Trata-se de ação relacionada à concretização da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), alicerçada nas reivindicações indígenas e que promove autonomia produtiva para as comunidades em consonância com suas tradições culturais. É também com recursos desta ação que a Funai deve fazer o acompanhamento do componente indígena no licenciamento ambiental. O Plano Orçamentário destinado a esse acompanhamento teve 47% de seus recursos contingenciados.
Ações importantes para as garantias territoriais indígenas também sofreram cortes. A ação “Proteção aos povos indígenas de recente contato” foi contingenciada em 34%, consolidando o desmantelamento da antes admirada política brasileira de proteção aos povos de recente contato e em isolamento voluntário. A falta de investimento em tais políticas tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireiros a esses territórios, muitas vezes resultando em mortes por doenças e assassinatos de grupos indígenas.
Da mesma forma, é preocupante o corte de 38% na ação Regularização, Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas em um momento em que os conflitos fundiários e os ataques aos territórios indígenas atingem níveis alarmantes. Os cortes orçamentários caminham junto com as iniciativas em curso de desmontar a demarcação e fiscalização das Terras Indígenas, tentando transferi-las para órgão com interesses claramente opostos à sua realização, o Mapa. Tais iniciativas ocorreram primeiramente por meio da MP 870 e, depois de sua derrota no congresso, pela edição de nova medida provisória. Além disso, se olharmos a execução financeira das ações agora contingenciadas, vemos que há necessidade de recomposição orçamentária para que elas saiam do papel e que, apesar do breve respiro de 2018, a opção pelo contingenciamento prejudicará ainda mais a necessária recuperação da Funai.
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