Fotos: Michele Bolsonaro: José Cruz/Agência Brasil | Brigitte Macron: Reprodução Wikipédia
Os recentes comentários do presidente Bolsonaro sobre Brigitte Macron repercutiram para além das implicações protocolares ou do embaralhamento entre as esferas privada e pública. Ao pressupor que um homem é melhor porque tem uma esposa mais jovem e bonita, sua fala serviu como um analisador sobre a força dos estereótipos a respeito da idade e beleza das mulheres.
O ideal acerca de um corpo feminino considerado jovem e belo faz parte da história contemporânea, antecedido por vários movimentos: o corpo como arma de sobrevivência; a beleza física como reflexo da beleza divina; o corpo silenciado pela austeridade moral; o corpo para o trabalho; e, mais recentemente, o trabalho com o corpo.
É assim que, a partir do século XX, a beleza tende a ser o resultado de um trabalho sobre si. Ser bela passou a ser não somente um dever para as mulheres, mas, principalmente, um direito amplo que, ao contrário de épocas passadas, inclui crianças, adolescentes e idosas, de todas as camadas sociais.
Em uma sociedade que não valoriza a participação feminina nos espaços públicos, resta ressaltar a sua presença no casamento e na fertilidade.
A escritora feminista americana Naomi Wolf, nos anos 90, já nos chamou a atenção de que o mito da beleza feminina diz respeito ao poder institucional dos homens. Segundo a autora, numa sociedade que não valoriza a participação feminina nos espaços públicos, resta ressaltar a sua presença no casamento e na fertilidade. Em nossos dias, a veiculação de suas imagens na mídia se tornou um outro lugar de destaque, com uma dupla intencionalidade: além de demonstrar o quanto a mulher é “linda”, ela é vista como uma consumidora de produtos de embelezamento. Portanto, o mito da beleza serve a um projeto econômico, demonstrando a intrínseca relação entre patriarcado e mercado. Se antes a beleza verdadeira da mulher era considerada um “dom divino”, agora se trata de um trabalho com o corpo, agenciado pelas novidades da indústria e da ciência e, portanto, passível de compra e venda.
O padrão vigente de mulher bela exalta cada vez mais a magreza, a pele clara e bronzeada, o cabelo liso, a boca espessa, cílios e sobrancelhas fartos, a cintura fina, a barriga tanquinho, os seios firmes, o bumbum empinado e a ausência de qualquer mancha, ruga, estria ou flacidez que denotem qualquer sinal de velhice. Para atingir este ideal há uma oferta ilimitada de recursos: escova progressiva, alisantes, cosméticos, Botox, lifts faciais, clareamento dos dentes, bronzeamento, inibidores de apetite, dietas, drenagem linfática, lipoaspirações, implantes de silicone etc.
E este processo inicia muito cedo. A “barbierização dos padrões” impulsiona meninas a construir corpos e estilos da boneca. O Brasil, hoje, é o segundo país com maior consumo de produtos infantis para a beleza e higiene e lidera também o ranking de cirurgia plástica na adolescência, predominando a rinoplastia e os implantes de silicone.
É assim que no Brasil se tornou imperativo “passar o próprio corpo a limpo” pelo bisturi. Somos o país campeão de cirurgias estéticas, inclusive as consideradas “intimas”, seja para estreitar o canal vaginal, diminuir os grandes lábios ou retirar gordura do púbis, sendo que a maioria desses procedimentos não é realizada por uma questão funcional, mas estética, para atender ao desejo do parceiro sexual. Na cultura da beleza jovem, até mesmo os traços remanescentes da maternidade devem ser extirpados do corpo feminino.
A historiadora brasileira Denise Sant´Anna analisa três tipos de imperativos que explicariam o sucesso da indústria de embelezamento em nosso país: a necessidade de rejuvenescer, que estaria intensificada em países com uma população majoritariamente jovem; o déficit de confiança dos brasileiros num tempo que virá, o que levaria a uma necessidade de viver os prazeres aqui e agora; as enormes desigualdades sociais, que acentuariam a expectativa de alcançar a ascensão social. A estes fatores agregam-se a veiculação do corpo da mulher brasileira como produto de exportação globalizada, a exemplo das musas do carnaval e do funk, bem como uma grande extensão litorânea cuja cultura da praia coloca o corpo em maior exposição.
Denise salienta que aquele corpo que envelhecia mantendo as características originais agora sofre mudanças conforme se alteram as expectativas do eu dilacerado pelas demandas do mercado da beleza. Se antes estar diante do espelho podia gerar graves inquietações pela constatação da passagem do tempo, na era dos “empresários da própria aparência”, somos desafiados a não deixar o corpo fenecer e a subverter a condição humana de mortal.
O fato é que a beleza feminina passou a ser uma demanda insustentável. De um lado, as mulheres consideradas aquém deste ideal, muitas vezes, se sentem inseguras ou inferiorizadas. Por outro lado, as mulheres elogiadas por sua aparência, literalmente acabam pagando preços altíssimos para manter esta cotação.
Ambas estão igualmente enredadas no mal-estar produzido pelo desgaste de suas identidades, em um contexto que transforma o corpo feminino jovem numa espécie de paradoxo da cultura contemporânea: extremamente cultuado e, ao mesmo tempo, intensamente violentado e comercializado.
Mas qual seria, então, o verdadeiro charme de uma mulher? O filósofo francês Gilles Deleuze responderia que são os traços de loucura pois, conforme o escritor inglês Alain de Botton, as pessoas só ficam realmente interessantes quando começam a sacudir as grades de suas gaiolas. Assim sendo, diante do espelho/gaiola que nos aprisiona, se faz necessário um tanto de loucura para sacudir os padrões que nos condenam a ser iguais umas às outras mulheres e experimentar a feminilidade com o charme dos processos singulares. Diante da pergunta lendária da madrasta malvada “quem é mais bela do que eu? ”, seria preciso mirar o espelho/gaiola e responder: “Mais bela do que eu é a que está advindo em mim. Uma mulher bonita, é claro”.