JUSTIÇA

Em cinco anos reduziram em 30% as vagas de trabalho nas prisões

Os motivos principais são a atual crise econômica do país, o preconceito e o desconhecimento dos benefícios que a atividade pode trazer às empresas e para a sociedade
por Hygino Vasconcellos / Publicado em 18 de novembro de 2019
No estado, mais de 11 mil trabalham nos presídios − pouco mais de 1/4 do total de apenados em todo Rio Grande do Sul

Foto: Igor Sperotto

No estado, mais de 11 mil trabalham nos presídios − pouco mais de 1/4 do total de apenados em todo Rio Grande do Sul

Foto: Igor Sperotto

Apesar das atividades laborais serem obrigatórias e estarem previstas na Lei de Execuções Penais, atualmente, no sistema penitenciário do Rio Grande do Sul apenas 25% dos presos trabalham enquanto cumprem suas penas. Um dos motivos é que há cada vez menos vagas de trabalho disponíveis aos apenados. Os motivos principais são a atual crise econômica do país, o preconceito e o desconhecimento dos benefícios que a atividade pode trazer às empresas e para a sociedade. Outro aspecto que impacta nessa redução de postos de trabalho é a crescente falta de espaço para abrigar a população dos presídios que acaba ocupando estruturas destinadas a atividades laborais. Além disso, existe a animosidade das facções que controlam as penitenciárias com os presos que trabalham.

Com um chapéu de palha na cabeça e um balde de sementes em uma das mãos, Antonio* prepara o solo para novos pés de alface. No pequeno espaço de terra, cultiva hortaliças e verduras que alimentam quase 400 pessoas. As mãos calejadas evidenciam as marcas do trabalho no campo. Quem não o conhecesse, poderia achar que é mais um produtor rural. Mas Antonio é um dos 14 presos responsáveis pela horta da Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan).

A unidade emprega 60% dos apenados entre atividades internas, como faxina e capina, e em projetos com empresas. No estado, mais de 11 mil trabalham nos presídios − pouco mais de 1/4 do total de apenados em todo Rio Grande do Sul. A maior parte nas chamadas “ligas”, que são as atividades de manutenção do presídio. Conforme a Lei de Execuções Penais (LEP), sancionada em 1984, os presos condenados em regime fechado são obrigados a trabalhar “na medida de suas aptidões e capacidade”, conforme a legislação.

Antonio passa as tardes cuidando da horta e as manhãs estudando apesar de já ter concluído o ensino médio. Para ele, a rotina “agitada” serve para passar mais rápido o tempo na prisão. “Quero pagar pelo meu erro”, observa o homem de 58 anos. Antonio foi condenado a nove anos e 11 meses pelo estupro de uma adolescente, vizinha dele, na zona Sul de Porto Alegre. “Foi um descuido meu, que me arrependo até hoje”.

Antes de ser preso, Antonio nunca havia trabalhado com horta. Era revisor de almoxarifado em uma empresa de ônibus da capital gaúcha. Em dois anos na penitenciária, já passou por três serviços diferentes antes de chegar à horta. Já foi faxineiro, agente de saúde e atuou na lavanderia. “Ocupa a mente, tu não fica preso dentro de uma cela o dia inteiro”, salienta Antonio.

Dentro do presídio, longe do sol, um grupo de presos costuram calças de uniformes que vão ser utilizadas por funcionários da Petrobras. As peças chegam separadas e, à medida que passam pela máquina de costura, vão ganhando forma. Durante o trabalho, os presos ficam sozinhos, mas são monitorados do andar superior por agentes penitenciários. Também é por ali que os apenados precisam alcançar tesouras, agulhas e outros materiais para sair da sala. Os utensílios são contados e as portas só são destravadas após a conferência.

José* começou a trabalhar com os uniformes há cinco meses. Antes, nunca tinha mexido com uma máquina de costura. Viu nela uma possibilidade de ajudar financeiramente a família. Segundo a Lei de Execuções Penais (LEP), o preso não pode receber menos que 3/4 do salário mínimo nacional, ou seja, R$ 748,50. O dinheiro ajuda a esposa a manter do lado de fora da penitenciária os dois gêmeos do casal: um menino e uma menina de dois anos.

A diretora da Pecan I, Magda Rosane da Silveira Pires: Além de ocupar a mente, o trabalho dá senso de responsabilidade.

Foto: Igor Sperotto

A diretora da Pecan I, Magda Rosane da Silveira Pires: Além de ocupar a mente, o trabalho dá senso de responsabilidade.

Foto: Igor Sperotto

O trabalho com costura também permitiu que diminuísse a pena − a cada três dias de serviço reduz-se um dia da pena. José foi condenado a 25 anos por um latrocínio (roubo com morte) cometido em 2011. Inicialmente, passou sete anos no Presídio Central, considerado em 2009 como a pior prisão do país devido à superlotação e ao péssimo estado de conservação. No local, não há espaços de atividades laborais. Transferido mais duas vezes, encontrou na Pecan I oportunidade para trabalhar enquanto cumpre pena.

Agora José aguarda progredir de regime, o que deve ocorre no próximo ano, e ficar mais perto da família. “Resolvi mudar, não pretendo ficar nessa vida, quero um trabalho limpo”. Para ele, deixar o mundo do crime também é evitar uma morte trágica. Dos cinco comparsas que cometeram o crime com ele, quatro morreram e um segue preso.

A diretora da penitenciária, Magda Rosane da Silveira Pires, entende que oportunizar trabalho para os presos é um das únicas formas de recuperar e fazer a reinserção deles na sociedade. “Esse tipo de atividade vai fazer tirar a culpa que ele tem de ter cometido o crime. O sofrimento prejudica muito a recuperação. Além de ocupar a mente, o trabalho dá senso de responsabilidade”, entende.

(*) Nomes fictícios


Crise e fechamento de empresas do lado de fora também impactam dentro das cadeias

Apesar dos benefícios, o número de vagas de trabalho nos presídios vem diminuindo no estado.  Dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI) com a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) mostram retração de 30% na oferta nos últimos cinco anos, entre 2014 a 2018. De 4.663 postos de trabalho baixou para 3.235. Para a coordenadora da Divisão do Trabalho Prisional da Susepe, Elisandra Minozzo, a situação é reflexo da crise financeira − que resultou no fechamento de empresas. “O cenário externo acaba influenciando diretamente no cenário interno, de dentro das prisões”, salienta.

Além disso, o trabalho prisional esbarra ainda no preconceito dos empregadores. “A gente tem dificuldade para sensibilizar os empresários para receber essa mão de obra, ainda tem desconhecimento do valor econômico e social desse trabalho”. Como benefícios econômicos, Elisandra cita a isenção de pagamento de encargos com férias, 13º salário e FGTS, já que a contratação não segue as regras da CLT. Além disso, está a  isenção do pagamento de aluguel e IPTU do espaço utilizado no presídio.

Para o sociólogo e presidente do Instituto Cidade Segura, Marcos Rolim, a queda na oferta de vagas está relacionada ao espaço limitado dentro dos presídios para as empresas se instalarem.

“Uma produção industrial tem que ter espaço, e isso raramente existe. Com o tempo, espaços destinados ao trabalho foram sendo ocupados devido à falta de vagas. A grande maioria dos presídios não tem espaço”, complementa Rolim. O professor da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Luiz Antônio Bogo Chies, cita o fechamento de um pavilhão de trabalho para a abertura de mais vagas no Presídio de Pelotas. A situação laboral dos presos foi analisada por ele em sua tese de doutorado. Na Pecan I, os espaços de trabalho são em celas projetadas, mas com capacidade limitada, não permitindo ultrapassar dez presos em serviço ao mesmo tempo. A direção da casa idealiza a construção de um pavilhão anexo, o que esbarra na falta de recursos.

A diretora da Divisão do Trabalho Prisional nega falta de espaços. Segundo Elisandra, há lugar de sobra para as empresas se instalarem. “A gente está trabalhando bastante para ampliar a mão de obra prisional. A maioria das casas tem estrutura para receber uma ou duas empresas”, salienta.

Fila de espera para trabalho no Madre Pelletier

Na Penitenciária Estadual Feminina Madre Pelletier quase metade das presas trabalham

Foto: Igor Sperotto

Na Penitenciária Estadual Feminina Madre Pelletier, m Porto Alegre, quase metade das presas trabalham

Foto: Igor Sperotto

Das três empresas que oferecem trabalho na Penitenciária Estadual Feminina Madre Pelletier, na zona Sul de Porto Alegre, uma possui fila de espera de apenadas. Quatro presas aguardam serem chamadas para atuar na linha de desmanche de peças eletrônicas, sob responsabilidade da empresa JG Recicla. Entretanto, a rotatividade das trabalhadoras e a oferta são pequenas: há apenas seis vagas no local. Maria*, de 50 anos, atua há um ano e só pretende sair em 2021, quando ganhar progressão de regime para o semiaberto. “Para mim esse trabalho é muito importante. Muda a cabeça e a vida. Passa a pensar totalmente diferente”, conta Maria, sem esconder o entusiasmo.

Com o trabalho, a apenada procura se manter ocupada frente ao abandono da família. Desde que foi presa por tráfico de drogas, há quatro anos, não vê o filho ou outro parente. “Só recentemente um amigo meu passou a me ver”. Com o dinheiro que recebe, consegue comprar produtos na cantina e ainda remédios para tratar um problema no joelho.

Na Madre Pelletier, quase metade das presas trabalham, segundo a direção. No local há 282 apenadas e 138 fazem atividades laborais. Segundo a responsável pelo setor de Valorização Humana da penitenciária, Marília dos Santos Simões, a unidade teria capacidade para receber pelo menos mais duas empresas. Das 138 que trabalham, 81% atuam nas ligas, vagas para manutenção interna nos quais as presas ganham a remição pelos dias de serviço, mas não são remuneradas. Apenas 25 apenadas trabalham para empresas. Dessas, 14 trabalham com tricô de couro para a produção de bolsas. Segundo a direção da casa, a intenção da Tricouro é “contratar” mais seis apenadas e aumentar a oferta de vagas para 20. O diferencial da empresa é que, além do valor previsto por lei, as trabalhadoras recebem por peça vendida − R$ 12 para as bolsas pequenas e R$ 20 para as grandes.

Francisca*, de 56 anos, é uma das detentas que trabalham com o tricô, que aprendeu ainda criança. Ela explica que ela e as colegas trançam a frente e o verso das bolsas, mas a peça é finalizada na fábrica em Campo Bom. “Para mim isso aqui contribui para a autoestima. Eu fico tão envolvida que, durante o dia, não sinto que estou na prisão. Só percebo isso quando entro na cela”. Francisca ainda não foi condenada, mas foi presa por ter sido considerada conivente com o abuso sexual da filha, na época com 14 anos, cometido pelo padrasto. Na época trabalhava como cobradora de ônibus e saía de casa às 5h e só voltava às 19h. “Ele ficava responsável pelas crianças (o ex-companheiro dela tem um filho). Eu não vi nada. A família desmoronou”.

Trabalho diminui reincidência criminal

Horta da Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan)

Foto: Pecan

Horta da Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan)

Foto: Pecan

Conforme o sociólogo Marcos Rolim, o trabalho prisional diminuiu as chances de reincidência criminal, como mostrou uma pesquisa feita em cadeias cariocas. As chances de novo envolvimento com o crime são de 48%, já em redução ao estudo fica em 39%. “Os dados são expressivos, ainda mais se considerarmos a ausência de uma política nacional de trabalho e educação prisional e as condições precaríssimas com que contam os poucos projetos na área”.

Apesar dos benefícios, o professor da UCPel Luiz Antônio Bogo Chies salienta que os presos que atuam nas ligas – com atividades internas – são mal-vistos por outros apenados, que percebem uma submissão com a direção da casa prisional. “Eu conversei com um serralheiro, que foi chamado para consertar grades de presídio. Ele ficou hiper mal-visto com os presos. Só que ele ficou bem-visto com a administração. Já o cara que trabalha dentro da galeria tem que se dar bem com a facção, mas fica de mal com  a administração. É uma escolha meio perversa”.

Arte: Bold Comunicação

Arte: Bold Comunicação

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