No dia 27 de novembro de 2002, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU) definiu a água como um bem público, social e cultural, um produto fundamental para a vida e a saúde e não uma mercadoria destinada a enriquecer alguns grupos privados. O diretor geral da Unesco, Frederico Mayor, disse, na época, que “esta fonte rara, essencial para a vida, deve ser considerada como um tesouro natural que faz parte da herança comum da humanidade”. Essas declarações ocorreram no contexto da eclosão da Guerra da Água, em Cochabamba, na Bolívia, onde a população saiu às ruas para “desprivatizar” o serviço de abastecimento da água. De lá para cá, porém, o negócio da água não parou de crescer no mundo. Com uma estratégia agressiva, as empresas avançam sobre os municípios procurando retirar o serviço do setor público.
No Brasil, o Rio Grande do Sul tornou-se um dos principais palcos dessa ofensiva. A polêmica e atribulada privatização da água em Uruguaiana, patrocinada pelo prefeito Sanchotene Felice (PSDB), é a ponta de um iceberg mais profundo. Ele rompeu o contrato com a Corsan e passou o serviço de abastecimento de água e esgoto da cidade para a Foz do Brasil, uma empresa do grupo Odebrecht, que já atua em municípios de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Bahia. No RS, a empresa procura avançar sobre outras cidades cujo serviço é controlado pela Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), que possui contratos de concessão firmados com 324 municípios, atendendo a mais de 7 milhões de pessoas.
A história da Corsan nas últimas décadas é semelhante a de outras empresas públicas no mesmo período. Objeto de cobiça do setor privado, a empresa foi sendo sucateada por governos partidários do ideário neoliberal do Estado mínimo. A estratégia de privatização é bem conhecida: a redução dos investimentos baixa a qualidade do serviço, e isso é utilizado como argumento para justificar a privatização.
A empresa tenta reagir agora diante da ofensiva privatizante no Estado. O diretor-presidente da Corsan, Arnaldo Luiz Dutra, criticou abertamente o processo de Uruguaiana dizendo que a população mais pobre do município será a principal prejudicada com a privatização do saneamento. A maioria dos usuários da Tarifa Social terá sua conta aumentada, prevê Dutra. Ainda segundo a avaliação da Corsan, mesmo os usuários que não se enquadram na tarifa social sofrerão com a privatização. Nos imóveis residenciais, em 77,3% dos casos, a tarifa cobrada pelo setor privado será maior.
Para o diretor-presidente da Corsan, Arnaldo Luiz Dutra, além do aumento da tarifa, a privatização trará outros prejuízos à população. Os municípios que optarem pelo rompimento de contrato com a Corsan, adverte, terão que arcar com indenização pela encampação dos ativos da empresa na cidade. No caso de Uruguaiana, o patrimônio da Corsan é da ordem de R$ 72 milhões, a valores de 2009. Além disso, acrescenta, as prefeituras terão de abrir mão dos recursos provenientes do Orçamento Geral da União, que só são repassados para as cidades que mantêm a concessão gerida por empresa pública. Em 2010, exemplifica, a prefeitura de Uruguaiana deixou de receber cerca de R$ 64 milhões a fundo perdido, em função do rompimento do contrato com a Corsan.
A Corsan e o governo estadual não pretendem assistir a essa ofensiva de braços cruzados. No dia 21 de outubro, Porto Alegre sediará um seminário internacional, promovido em parceria pelo governo do Estado e por organizações ligadas ao Fórum Social Mundial, para debater os riscos da privatização e estratégias para barrar essa ofensiva. A batalha junto à opinião pública promete ser acirrada nos próximos meses.