O veneno está na mesa
Foto: Caliban/ Divulgação
No documentário O veneno está na mesa, o cineasta carioca Silvio Tendler dimensiona a contaminação dos recursos naturais e os danos à saúde pública provocados pelo uso indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras, além de apontar as contradições de um modelo agrícola submisso aos interesses das indústrias de defensivos agrícolas e produtoras de transgênicos. Parte da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, a produção conta com depoimentos de integrantes de entidades do movimento social, técnicos, agricultores e parlamentares – inclusive de defensores dos agrotóxicos e transgênicos –, além de uma intervenção do jornalista uruguaio Eduardo Galeano, autor do livro As veias abertas da América Latina e um dos idealizadores do projeto. O filme não será lançado no circuito comercial e está disponível para download no YouTube. Com base em estatísticas da Anvisa, ministérios da Agricultura e da Saúde, entre outros, o documentário sustenta, por exemplo, que cada brasileiro ingere por ano mais de 5 litros de venenos presentes de forma residual em frutas, verduras e cereais que são cultivados de norte a sul do país com o uso de pesticidas, fungicidas e herbicidas. São venenos banidos por outros países, mas que continuam sendo importados e utilizados em larga escala nas extensões de terras do agronegócio. Mestre em Cinema e História e especializado em Cinema Documental Aplicado às Ciências Sociais pela Sorbonne, aos 61 anos, Tendler é um dos mais respeitados (e premiados) especialistas no gênero documentário. Já produziu mais de 30 curtas, médias e longas, retratando períodos e personagens da história brasileira e alguns de seus filmes tiveram mais de 1 milhão de espectadores. Foi assim com Os Anos JK (1980) e Jango (1984). Esses dois documentários e o ainda inédito Tancredo, a travessia formam uma trilogia sobre a trajetória de presidentes brasileiros. Fundador da produtora Caliban, Tendler também fez documentários sobre o guerrilheiro Carlos Marighella, o geógrafo Milton Santos e o cineasta Glauber Rocha, entre outros. Os sonhos e decepções de sua geração, nascida após a Segunda Guerra Mundial, aparecem em outro documentário impactante, Utopia e Barbárie (2009). “Meu cinema é engajado, sempre bebeu na fonte dos movimentos sociais, mas esta é a primeira vez que eles são os protagonistas”, define o cineasta nesta entrevista concedida por telefone, do Rio, ao Extra Classe.
Extra Classe – Considerando que sua filmografia sempre focou personagens da história do país, por que a opção por documentar o impacto dos agrotóxicos nos alimentos?
Silvio Tendler – A proposta é mostrar como nós estamos nos alimentando mal a partir da presença dos agrotóxicos na nossa mesa diariamente. E o pior é que eles vêm sorrateiros, clandestinos, nos alimentos que nos apresentam como mais saudáveis e necessários. O documentário O veneno está na mesa surgiu de uma conversa com o escritor e jornalista Eduardo Galeano (As veias abertas da América Latina) há dois anos, quando ele me disse que o Brasil é o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Fiquei preocupado com os dados que ele apresentou e com a constatação de que o uso de defensivos agrícolas tem um alto custo em vidas humanas, em saúde pública, e está matando a própria terra, o próprio planeta. Então resolvi trabalhar com isso.
EC – A participação dos movimentos sociais nesse documentário é mais acentuada na comparação com os anteriores?
Tendler – Sim. Meus filmes são muito utilizados até de uma forma didática pelos movimentos sociais. Desta vez eles participam do projeto desde o começo, quase como co-autores, porque os movimentos sociais articulam essa mesma campanha contra o uso de agrotóxicos. Meu cinema é engajado. Mas esse é o primeiro que nasce ancorado com o movimento social. É a primeira vez que faço um filme assinado por uma coletividade de organizações, entidades muito sérias.
EC – O filme não será comercializado?
Tendler – Não, não. Ele é antipirataria. É pra ser distribuído gratuitamente. Inclusive os professores devem baixar o filme, projetar para os alunos e discutir em sala de aula. Esse é um tema que interessa a todos, principalmente aos adolescentes em formação. Eles ou os professores podem baixar sem culpa, pois não estarão cometendo pirataria, mas um ato sábio. Copie o filme e distribua aos seus amigos e discuta com eles. A partir daí a gente pode começar a construir um mundo melhor.
EC – Além de mostrar que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do planeta, o filme identifica algum estado onde o uso indiscriminado de defensivos agrícolas é mais acentuado?
Tendler – É uma questão que infelizmente hoje está disseminada pelo território. Nenhum estado ou cultivo se destacam pela concentração do uso de agrotóxicos, assim como nenhum deles está livre desse problema. É um problema que atinge tanto o Rio Grande do Sul, com suas grandes extensões de trigo, quanto a cultura do pimentão, na Paraíba, ou a soja, no Paraná ou Mato Grosso. O fumo também usa muito agrotóxico. Todas as lavouras usam. Tudo é transgênico hoje em dia e todos devem lutar contra isso, tentar reverter esse quadro.
Foto: Caliban/ DIvulgação
EC – Quais são as substâncias químicas mais utilizadas nas lavouras e que tipo de danos elas provocam à saúde?
Tendler – As mais perigosas são o Metamidofós, veneno banido da União Europeia, utilizado em culturas de algodão, amendoim, batata, feijão, soja, tomate para uso industrial e trigo; o Glifosato (comercializado pela Monsanto com o nome de Roundup, é um herbicida de amplo espectro), utilizado em grande escala na produção agrícola e ao qual a soja transgênica é resistente; a Cianidrina e o Endosulfan, da Bayer, só para citar alguns. Provocam danos irreversíveis. Hepatopatias, cânceres, danos ao sistema nervoso central, à memória e ao sistema reprodutivo, lapsos de memória em crianças, redução da mobilidade, desregulação hormonal, complicações nos embriões das gestantes. É só coisa ruim.
EC – O impacto na saúde é conhecido dos agricultores, mas mesmo os pequenos produtores não se aventuram a plantar sem o uso dos defensivos. Por quê?
Tendler – O agricultor se vê obrigado a usar o agrotóxico, pois se não usar, não recebe o crédito do banco. O banco não financia a agricultura sem agrotóxico. Tem um camponês que fala isso no filme, o Adonai. Ele conta que o inspetor do banco foi à plantação verificar se ele havia comprado os produtos. Se você não tiver as notas da semente transgênica, do herbicida, é obrigado a devolver o dinheiro. Portanto, não é verdade que se dá ao camponês agricultor o direito de dizer: “não quero plantar transgênico”, “não quero trabalhar com herbicidas”, “quero trabalhar com agricultura orgânica, natural”. Para o banco, a garantia da safra não é o trabalho do camponês e a sua relação com a terra, são os produtos químicos usados para afastar as pragas, um modelo completamente errado. O agricultor não tem crédito alternativo, que lhe permita exercer o direito de fazer outro tipo de agricultura. O resultado são as pessoas morrendo como empregadas do agronegócio, como é o caso do Vanderlei, que é mostrado no filme. Após três anos misturando agrotóxicos, ele morreu de uma hepatopatia grave. Há também uma mulher de 32 anos que está ficando totalmente paralítica por conta do seu trabalho com agrotóxico na lavoura do fumo.
EC – Alguma dessas substâncias tem restrição de uso no país pela Anvisa?
Tendler – A Anvisa luta pela proibição, mas os fabricantes entram na Justiça e conseguem a liberação através de liminares. Agora existe uma batalha para proibir o Metamidofós no Brasil. Esse veneno já é proibido nos Estados Unidos, na China, em toda a Europa e na África, países que têm políticas totalmente distintas de veto a pesticidas. O Endosulfan vai sair de fabricação em 2013 e o Brasil é um dos poucos países que consomem ainda.
EC – O veto a agrotóxicos mexe com muitos interesses?
Tendler – Há muitos interesses em jogo em um modelo de desenvolvimento absolutamente perverso e uma fragilidade dos países em defender seus interesses. Somente nas vendas, os agrotóxicos movimentaram 7 bilhões de dólares em 2010.
EC – A despeito de todo o esforço empreendido, inclusive por órgãos governamentais, no combate ao uso abusivo dos agrotóxicos, como evidencia o documentário, no caso específico da Anvisa não estariam faltando ações mais incisivas com vistas à regulação?
Tendler – A Anvisa esbarra num montão de pressão. Desde as pressões políticas, os telefonemas que eles recebem exigindo a liberação de produtos, a pressão do próprio Congresso Nacional, por parte dos parlamentares que pressionam contra as resoluções da Agência até a questão judicial, que é uma instância que foge às pressões da Anvisa, porque ela não tem como reagir a uma ordem judicial.
EC – O agrotóxico Mefedrona foi vetado na Alemanha e na própria China, onde é fabricado, devido à crescente utilização como entorpecente por jovens e pela população de rua. Batizado como miau-miau, continua liberado no Brasil porque a Anvisa ainda está estudando. Não há um pouco de hesitação aí?
Tendler – Com esse filme eu convivi com as pessoas da Anvisa e encontrei gente muito séria e interessada em resolver a questão. Agora, eles são um órgão governamental sujeito a todo tipo de pressão, eles não andam de repente no ritmo que gostariam. Andam no ritmo possível. Têm limitadores fortes.
EC – A tecnologia utilizada na lavoura é proveniente da indústria da guerra. De que forma o documentário faz essa abordagem?
Tendler – O veneno começa a ser utilizado na Primeira Guerra Mundial. Na Segunda Guerra, o gás Zyklon B, utilizado para matar milhões de pessoas nos campos de concentração, nada mais é do que um pesticida. Era fabricado pela IGFarben, que deteve o monopólio da fabricação química na Alemanha nazista e pertencia à Basf e à Bayer. Na Guerra do Vietnã, de 1961 a 1971, foi usado como arma química o Agente Laranja, que até hoje tem um efeito extremamente perverso sobre a população, pois continua fazendo com que crianças nasçam atrofiadas, sem braços, sem pernas.
EC – Algum fabricante foi responsabilizado?
Tendler – Não no Vietnã. Nos Estados Unidos, a Dow Chemical e a Monsanto foram condenadas no final da guerra a pagar 180 milhões de dólares às famílias e aos soldados norte-americanos que fizeram a guerra e 60 milhões de dólares às famílias dos soldados coreanos.
EC – Essas empresas continuam ativas na fabricação de agrotóxicos, caso da Monsanto…
Tendler –Ela produz o Glifosato, derivado do Agente Laranja, que no Brasil é denominado Roundup, agrotóxico ao qual só os transgênicos sobrevivem.
EC – Essas multinacionais mudaram de ramo ou de estratégia?
Tendler – Não mudaram nada de estratégia, elas conseguiram convencer os países de que a “revolução verde” é uma coisa boa. Todo mundo comprou essa ideia da quadriplicação da produção agrícola a partir do uso de herbicidas, pesticidas, transgênicos, mas na verdade o crime continua o mesmo.
EC – Qual é o enfrentamento possível à cultura dos agrotóxicos?
Tendler – Acho que é uma política rigorosa de fiscalização e uma determinação do país de proibir o uso desses venenos em nome da defesa nacional, em nome da própria segurança nacional. A gente não pode continuar comendo o podre para se alimentar.
EC – Políticas de Estado e uma mudança de cultura?
Tendler – Claro. Tem que redirecionar a economia agrária para a produção de orgânicos, dar aos alimentos orgânicos os mesmos subsídios que os agrotóxicos têm. Os agrotóxicos são isentos de muitos impostos. Por que a agricultura orgânica não recebe o mesmo tratamento?
EC – O Brasil está muito atrasado em relação a outros países no que diz respeito à agricultura sustentável?
Tendler – O mundo todo está contaminado por essa produção envenenada. Na Grã-Bretanha, morreram vários javalis que comeram algas marinhas contaminadas com agrotóxicos que provavelmente vieram de uma lavoura do outro lado do planeta. Esse é um problema que se disseminou pelo mundo. Agora, alguns países, quando descobrem, tentam contornar a situação. Aqui no Brasil, a Anvisa tentou proibir o Metamidofós e esbarrou numa decisão judicial favorável à liberação do uso dessa substância nas lavouras.
Foto: Caliban/ Acervo
EC – Como enfrentar a mobilização do agrobusiness, que além da bancada ruralista e de setores do Judiciário, mantém o milionário movimento Sou Agro na defesa do uso de agrotóxicos nas lavouras?
Tendler – Olha, eles são muito mais ricos, mas a gente está fazendo um trabalho de raiz que é muito eficiente. Se você entrar no YouTube vai ver a quantidade de acessos que teve o filme em uma semana, mais de 20 mil. Existe uma reação forte, sobretudo, dos formadores de opinião. Nunca dei tanta entrevista para a imprensa sobre um documentário quanto agora, e é impressionante a quantidade de gente que escreve e recomenda o filme na internet. As informações circulam. Acho que, nesse sentido, nós estamos sendo bem vitoriosos. O Contra os agrotóxicos é um movimento organizado e as pessoas estão difundindo o filme e debatendo, criando estratégias políticas. É um casamento perfeito, nesse caso, entre cinema e luta política.
EC – É possível produzir alimentos em escala sem o uso de defensivos?
Tendler – Meu próximo trabalho vai discutir exatamente que alternativas a gente tem contra os agrotóxicos. Estamos levantando casos, políticas, alternativas, ouvindo cientistas e agricultores. Esse é um dos documentários que eu estou produzindo agora. E está nascendo em função das circunstâncias, de uma cobrança do público a partir do documentário O veneno está na mesa: queremos saber qual é a resposta à cultura dos agrotóxicos.
*Colaborou Grazieli Gotardo