SAÚDE

Com 201 mortos e mais de 5,8 mil infectados por coronavírus, Bolsonaro ignora pandemia e defende economia com fake news

Declaração da OMS disseminada nas redes sociais e replicada pelo presidente foi adulterada e usada como argumento contra as diretrizes de isolamento social
Por Gilson Camargo / Publicado em 31 de março de 2020
Forças Armadas promovem ação de desinfecção no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), uma das medidas adotadas para prevenir a contaminação pelo novo coronavírus

Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

Forças Armadas promovem ação de desinfecção no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), uma das medidas adotadas para prevenir a contaminação pelo novo coronavírus

Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

O presidente Jair Bolsonaro segue sua rota de negação da letalidade da pandemia pelo novo coronavírus, que já provocou 201 mortes e infectou 5.717 pessoas em todo o país até o início da tarde desta terça-feira, 31 – o total após a atualização até às 20h45min pelas secretarias estaduais de saúde, no entanto, já batia em 5.805 casos.

Nas últimas 24 horas, houve um aumento de 26% no total de mortes por covid-19. Foram 1.138 pessoas infectadas em um dia, o que representa mais que o dobro do maior número de contágios registrado até agora, de 502 novos casos no dia 27 de março, de acordo com o próprio ministério da Saúde. Diante da disseminação fora de controle do vírus, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Saúde publicaram nesta terça uma portaria conjunta que autoriza hospitais a encaminharem cadáveres a cemitérios sem a necessidade de emissão da certidão de óbito em razão de exigência de saúde pública.

Em meio à pandemia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), cada vez mais isolado, faz uma aposta na exposição dos brasileiros ao contágio e à morte ao defender, em cadeia nacional de rádio e tevê, nesta noite, o fim do distanciamento social. Para embasar suas ideias, o presidente distorceu uma entrevista do diretor-presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus. “A fome mata mais do que o vírus”, diz o mandatário brasileiro no pronunciamento.

De outro lado, os ministros de Bolsonaro se revezam em declarações casuais sobre a pandemia e miram mais na economia do que na crise humanitária que se alastra, destacando ações pontuais – importantes, mas que passam longe de um plano coordenado. O país já entrou no segundo mês de contágio e tem mais doentes que a Itália no mesmo período, mas a equipe de governo segue sem apresentar um planejamento concreto de enfrentamento da pandemia em todo o território, focado em salvar vidas, a exemplo do que fazem governantes mundo afora.

Em meio a tanta disputa de narrativa dentro do governo, coube ao titular da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, apaziguar os ânimos e focar na crise da saúde. Ele afirmou que a pandemia ainda não entrou na curva ascendente porque houve “conscientização de todo mundo”. Ou seja, o protocolo de isolamento social vem dando resultado. A situação de hoje, segundo o ministro, reflete a dinâmica de 14 dias atrás, quando mais pessoas estavam circulando. “Não temos nem sete dias que estamos ficando em casa. Por isso que é importante manter”, defendeu. Mandetta recorreu mais uma vez a uma figura de linguagem para arrematar uma orientação que contraria o chefe, apesar de deixar escapar uma certa relativização. “No momento vamos fazer o máximo de distanciamento social, o máximo de permanência nas residências para que, quando chegarmos no momento de estarmos preparados, vamos monitorando pela epidemiologia. Vai ser um trabalho de precisão. Nem tão amarrado que possamos ser arrastados, nem tão acelerado que possamos cair numa cachoeira”.

Coletiva de imprensa sobre a pandemia, com Moro e Guedes, foi deslocada do ministério da Saúde para o Palácio do Planalto, agora sob o controle do ministro militar da Casa Civil, general Braga Netto

Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

Coletiva de imprensa sobre a pandemia, com Moro e Guedes, foi deslocada do ministério da Saúde para o Palácio do Planalto, agora sob o controle do ministro militar da Casa Civil, general Braga Netto

Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

COLETIVA – Os dados da pandemia foram atualizados em coletiva de imprensa nesta tarde no Palácio do Planalto, com a presença do ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, Paulo Guedes (Economia), Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública, e do ministro e diretores da Saúde. Mandetta manteve a narrativa de que sua abordagem da crise será mantida no campo da ciência, com critério técnicos. Ele defendeu as diretrizes de isolamento social para evitar uma curva muito acentuada da fase de contágio grave, em que é necessária internação, e que poderá levar ao colapso o sistema de saúde por falta de leitos e equipamentos de UTI. O ministro também repassou as ações do ministério para assegurar os serviços de saúde. “Nós precisamos garantir que a regularidade de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) seja confirmada. Conseguimos fechar o contrato de 300 milhões de unidades, que é a nossa necessidade para nos abastecer por 60 dias”, anunciou. O Estado de São Paulo registrou nesta terça-feira, 31, um total de 136 óbitos relacionadas ao novo coronavírus. Durante o dia ocorreram 23 novas mortes confirmadas pelo vírus, o maior aumento em números absolutos já registrado, com cerca de uma confirmação por hora, desde segunda-feira.

INCENDIÁRIO – Na contramão do esforço da cúpula militar do governo para blindar o ministro da Saúde – Mandetta estaria demissionário, mas de acordo com ele próprio e o colega da Casa Civil será mantido no cargo enquanto perdurar a crise do coronavírus –, o presidente voltou a desautorizar a equipe de saúde.

Bolsonaro quer o fim do isolamento social decretado por estados e municípios a pretexto de retomar a atividade econômica, mesmo que isso represente muitas mortes. “Essa é uma realidade, o vírus ‘tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Tomos nós iremos morrer um dia”, disse no domingo. No início da semana, repetindo as bravatas de caserna, insinuou que os brasileiros que aderem ao protocolo da OMS seriam covardes: “vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque”.

Só o estado de São Paulo registrou nesta terça um total de 136 óbitos relacionadas ao novo coronavírus. Foram 23 novas mortes confirmadas pelo vírus, o maior aumento em números absolutos já registrado, com cerca de uma confirmação por hora, desde segunda-feira, segundo a secretaria estadual da Saúde. Pela manhã, enquanto o número de notificações das secretarias estaduais de saúde apontava para um aumento da letalidade do coronavírus, o presidente voltava a fazer chacota com a tragédia em sua tradicional e pitoresca aparição para jornalistas e simpatizantes na saída do Palácio da Alvorada. No cercadinho, ele chegou a incentivar agressões de apoiadores a jornalistas, que acabaram abandonando a “coletiva”.

Arte: Ministério da Saúde

Arte: Ministério da Saúde

FAKE NEWS DO PRESIDENTE – Alheio ao índice de letalidade do vírus, que no final de semana ainda se mantinha em 2%, mas que a partir de segunda-feira disparou, chegando a 3,5%, o presidente lançou mão de uma notícia falsa envolvendo o diretor-presidente da OMS para validar suas ideias de que “o país não pode parar”.

Ao ser questionado sobre o ministro da Saúde, que defende medidas contrárias às dele como o isolamento no combate ao coronavírus, Bolsonaro citou uma entrevista concedida na segunda-feira por Tedros Ghebreyesus para logo em seguida afirmar que o órgão estaria em alinhamento com o seu governo, o que não procede segundo o próprio dirigente da Organização. “Eu não sei o que ele (referindo-se a Mandetta) falou. Eu parto do princípio de que eu tenho que ver, porque acreditar no que está escrito, não. Ninguém se esqueça que o presidente sou eu. Não se esqueça que eu sou o presidente. Vamos seguir a orientação da OMS. O que que o diretor-presidente da OMS falou? Que este povo humilde fica o dia todo na rua para levar um prato de comida à noite em casa e ele falou isso porque ele é africano e sabe o que é passar dificuldade. A fome mata mais do que o vírus. Eu não estou desrespeitando ninguém”, disse.

Na narrativa criada por Bolsonaro, só ele tem razão

No final da tarde, Bolsonaro gravou em Brasília um pronunciamento para ser exibido à noite em cadeia nacional de rádio e TV. Nele, o presidente reafirma o que disse a jornalistas na porta do Palácio da Alvorada sobre a fala de ontem do diretor-geral da OMS. De acordo com a versão forjada pelo presidente, a OMS estaria defendendo que as pessoas “têm que trabalhar”: “Vocês viram o que o diretor-presidente da OMS falou, não? Alguém viu aí?”. Ele cita apenas um trecho da fala do diretor da OMS, omitindo a parte em que Tedros cobra dos governos a promoção de políticas que garantam a renda dos desassistidos e defende a importância do isolamento social. Na narrativa criada por Bolsonaro, ele reafirma que a situação é crítica, mas que ele estava certo desde o início da pandemia, além de enumerar as ações do governo pra dar auxílio aos mais vulneráveis e as medidas para financiamento de empresas para preservar empregos.

O dirigente da OMS rebateu a fake news de Bolsonaro, que disseminou nas redes sociais um vídeo com a entrevista de Tedros Ghebreyesus editada para dar a impressão que a organização teria mudado de posição e passado a defender o fim do isolamento social e o retorno ao trabalho. Sem citar o presidente brasileiro, Ghebreyesus reafirma a posição da entidade. “Pessoas sem fonte de renda regular ou sem qualquer reserva financeira merecem políticas sociais que garantam a dignidade e permitam que elas cumpram as medidas de saúde pública para a Covid-19 recomendadas pelas autoridades nacionais de saúde e pela OMS”, disse o diretor-geral da OMS.

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