SAÚDE

Sexualidade ainda é tabu

Vacinação em massa contra HPV em pré-adolescentes nas escolas e postos de saúde revela que os temas que envolvem sexo e prevenção ainda são evitados nas famílias e até mesmo em sala de aula
Por Marcia Camarano / Publicado em 10 de abril de 2014

Sexualidade ainda é tabu

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Este ano, pela primeira vez no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) colocou à disposição e meninas de 11 a 13 anos a vacina contra o Papiloma Vírus Humano (HPV), uma das principais causas do câncer de colo do útero, o terceiro tipo de maior incidência entre as mulheres, atrás apenas do câncer de mama e de cólon e reto. A ação poderia servir para abrir espaço para informações e discussões sobre temas como sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis. Entretanto, o tabu permanece, especialmente no âmbito familiar.

Bom termômetro para isto foram os insistentes pedidos de entrevista com pais ou responsáveis por meninas desta faixa etária que, ou se recusaram a falar, alegando timidez, ou até aceitaram em um primeiro momento, mas não atenderam mais às ligações. “Há uma dificuldade de as pessoas falarem sobre sexualidade no ambiente familiar e, mesmo, escolar”, diz a especialista em Saúde, Ana Lúcia Massulo, da Coordenação Estadual de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids (DST/Aids), da Secretaria da Saúde. Ela explica que questões culturais, especialmente a religiosidade, são elementos dificultadores
no trabalho de prevenção a doenças e, no caso da vacina contra o vírus HPV, não é diferente.

Ana salienta a importância de as escolas trabalharem temas como esses no cotidiano. “Eles já estão incluídos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCM) e se constituem em um programa intersetorial das secretarias da Saúde e Educação”. Para ela, essa é uma questão cultural, que vem de muito tempo. “Exemplo disso é quando uma turma sente necessidade de falar sobre o assunto e são chamados profissionais da saúde, ou seja, alguém de fora, que dá o recado e vai embora. Mas o educador pode discutir este tema dentro da escola, o processo educativo precisa ter um vínculo, não pode ser algo pontual”.

Foi o que aconteceu na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vereador Antônio Giudice, em Porto Alegre. Durante dois dias, foram vacinadas 127 meninas. Apenas uma ficou de fora. “Os pais assinaram o Termo de Recusa, creio que por uma questão religiosa”, informa a coordenadora Pedagógica da escola, Rejane da Rosa. Ela conta que os profissionais vieram da Unidade de Saúde da região, mas toda a escola foi envolvida no processo. “Os professores participaram, usando o tema da vacinação nas aulas, foi bastante esclarecedor”, conta. O vírus HPV é responsável por 95% dos casos de câncer do colo do útero. A vacinação começou na semana das comemorações do Dia Internacional da Mulher e as doses se manterão à disposição durante todo o ano nos postos de Saúde.

No Rio Grande do Sul, a meta é aplicar a vacina tetravalente para quatro tipos de vírus que podem causar o câncer em 80% das cerca de 258 mil meninas nesta faixa etária. Para isso, foi estabelecida uma parceria entre as secretarias estaduais da Saúde e Educação, a partir de referências geográficas, para que as meninas possam ser vacinadas nas escolas das redes pública e privada. Ao todo, são quase 10 mil estabelecimentos de ensino que receberão profissionais de Saúde para a aplicação das doses, de acordo com um calendário previamente acordado. A vacina é oferecida em três doses: a primeira ocorre durante a campanha, que vai até 10 de abril; a segunda acontece após seis meses desta data; e a terceira, como reforço, cinco anos depois.

Para se vacinar, é necessário apresentar o cartão de vacinação, a caderneta do adolescente ou documento de identificação. Se os pais ou responsáveis não concordarem, devem assinar o Termo de Recusa de Vacinação contra HPV, à disposição nas escolas. Nadiane Albuquerque Lemos, da Coordenação da Saúde da Mulher (SES/RS), explica que não se trata de uma vacinação compulsória. “É uma vacina de prevenção contra a transmissão e o desenvolvimento do vírus, direcionada especificamente para uma população de risco”. Segundo ela, por não ser obrigatória, não está inscrita no calendário oficial de vacinas para adolescentes – onde se faz busca ativa – e são preconizadas pela Organização da Saúde (OMS) e Ministério da Saúde (MS). “É preciso esclarecer que não se está obrigando a nada, está-se disponibilizando uma alternativa de prevenção”.

Vacina como alvo de polêmica
A OMS e autoridades sanitárias de todo o mundo, juntamente com entidades médicas brasileiras, defendem a vacinação. Mas há médicos que não estão convencidos e mesmo pais ou responsáveis por adolescentes temerosos pelos relatos de efeitos graves supostamente ligados à imunização. E há ainda a oposição de algumas religiões, especialmente de matriz evangélica, que entendem que a melhor forma de tratar doenças sexualmente transmissíveis é a monogamia. Acreditam ainda que a campanha desencadeada pelo governo federal estimula a atividade sexual precoce.

“Não se está estimulando a prática sexual precoce, como entendem alguns, mas prevenindo, dando uma oportunidade para que essas meninas estejam imunizadas antes de iniciarem uma vida sexual. Ou seja, está-se proporcionando uma medida preventiva para uma patologia que é prevalente”, defende Nadiane Lemos. A secretária de Políticas para as Mulheres. Ariane Leitão, é uma defensora da vacinação. “O número de mulheres com câncer do colo de útero é grande e o vírus HPV é muito difícil de enfrentar, por isso, a importância de se oferecer a vacina a essas meninas”. Para ela, a imunização é uma prioridade, pois se trata de enfrentar o alto índice de mortalidade entre as mulheres”.

Ariane lembra que as doses foram colocadas à disposição depois de uma série de pesquisas. “Obviamente, ela terá algum efeito colateral, como qualquer outra vacina, mas, efetivamente, protege a saúde das mulheres”. A secretária observa que a crítica, do ponto de vista científico, é válida e deve ser levada em consideração. “Mas há uma oposição surda que sabemos estar vinculada a uma onda conservadora. O que mais gera polêmica não é científico e está vinculado às questões religiosas. Temos que garantir os direitos das mulheres e isto envolve o debate sobre sua liberdade e autonomia. Não vou citar religião nenhuma, mas, enquanto não tivermos um estado laico, vamos continuar enfrentando este situação”.

No meio científico, uma das vozes contra a vacina é a do médico de família e comunidade Eno Dias de Castro Filho, de Porto Alegre. Castro é doutor em Epidemiologia e faz parte da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, entidade que já se posicionou contrária à vacinação. Conforme ele, qualquer intervenção médica deveria cumprir dois requisitos: comprovar que faz bem e comprovar que não faz mal. Ou que o balanço entre estes dois itens seja muito favorável. “Os gestores acrescentariam um terceiro item: se é financeiramente razoável”.

Para Castro, a resposta é negativa em todos os quesitos. Ele questiona o fato de que, até 2011, a posição do governo federal ser contrária à vacina. “Não houve nenhum dado técnico novo que justifique a mudança de decisão”. O médico argumenta que, do surgimento de lesões até o aparecimento de um câncer leva-se, em média, 30 anos para se saber se a vacina protege as mulheres. “Os estudos devem levar, no mínimo, este mesmo tempo”. Ele também detecta que a vacina protege contra apenas quatro subtipos de HPV dos cerca de cem existentes. E que, destes quatro, somente dois são associados ao câncer. O médico é mais ousado nas críticas quando diz que pesquisadores foram obrigados a declarar conflito de interesses por terem recebido benefícios para chegarem a conclusões positivas. E acredita que há interesse comercial e industrial na venda das vacinas.

Entretanto, o professor de Ginecologia da Ufrgs, Paulo Naud, um dos pioneiros nas pesquisas sobre HPV no país e consultor da OMS, afirma que a vacina tem se mostrado segura e eficaz. “Agora a mulher tem a chance de se vacinar contra uma doença que é um problema de saúde pública”. Naud, que presidiu o II Congresso Internacional de Controle do Câncer na Mulher, ano passado, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e é diretor do Instituto de Prevenção do Câncer do Colo do Útero (Incolo), argumenta que a vacina passou por anos de desenvolvimento e visa, principalmente, à prevenção. Ele observa que, quando há uma nova informação, é normal que exista contestação. E isto também acontece com o tema da vacina. Mas ressalta que muitas críticas são oriundas da falta de informação. Segundo o professor, o Ministério da Saúde adotou a campanha baseada na boa cobertura mundial apontada pela OMS e Opas (Organização Pan-Americana de Saúde). A vacina é ainda indicada pelo maior órgão de controle que existe nos Estados Unidos, a FDA (Food and Drug Administration). “Ela evita lesões que podem se malignizar”. Segundo Naud, a imunização é contra quatro subtipos (6, 11, 16 e 18), sendo que os subtipos 16 e 18 são responsáveis por cerca de 70% dos casos de câncer genital feminino. “O câncer é um problema grave e o fato de haver uma vacina contra estes dois subtipos em questão diminui muito a carga desta doença”.

Para ele, a mulher vive hoje, no sentido da proteção,  um momento que nunca aconteceu na história da humanidade. “Por este tipo de imunização, ela terá uma proteção de 80% a 90% em relação ao câncer e outras doenças relativas ao HPV, é este o benefício que ela traz”. Conforme ele, justamente porque há benefícios, com eficácia comprovada, que a vacina foi adotada por inúmeros países. “Hoje uma cirurgia de câncer custaria, em média, R$ 6 mil, enquanto que a vacina, nas três doses, não passa de R$ 100. Mas o mais importante é o benefício de se evitar o câncer em mulheres. Por isto ela já se justifica”. Naud informa ainda que o Ministério da Saúde nunca foi contrário à imunização, apenas criou uma comissão especial para avaliação de seus efeitos e aprovou seu uso, primeiro em espaços particulares e este ano, no sistema público de saúde. Ele faz um alerta: “a vacina não é curativa, mas profilática. Por isto deve ser feita, preferencialmente, antes do início da vida sexual”.

A vacina contra o HPV está no programa nacional de vacinação de 62 países

Foto: Igor Sperotto

A vacina contra o HPV está no programa nacional de vacinação de 62 países

Foto: Igor Sperotto

São estimados 840 casos em 2014
No estado, são estimados, em 2014, cerca de 840 casos de câncer de colo do útero, o que representa um risco de 14.63 casos a cada 100 mil mulheres, informa a Secretaria Estadual da Saúde. As estimativas de incidência apontam que este tipo de câncer será o quinto mais frequente entre as mulheres gaúchas, sem considerar os tumores de pele não melanoma. Em 2012, de acordo com os dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade, da Secretaria, foram registrados 305 óbitos por câncer do colo do útero.

O câncer do colo do útero é considerado um dos mais fáceis de serem prevenidos. Por isso é importante fazer exames regularmente. Nadiane Albuquerque lembra que, mesmo tomando as três doses da vacina, não é garantida a inexistência do câncer, pois pode haver outras causas. “Fazer a vacina significa que a menina está protegida daqueles quatro subtipos que podem causar o câncer, não contra ele. Por isto é importante fazer os demais exames como o preventivo do colo do útero ou Papanicolau, que ajuda a detectar células anormais no revestimento do colo do útero”.

A vacina quadrivalente contra o vírus HPV está no Programa Nacional de Vacinação de 62 países. Há relatos de meninas que desenvolveram doenças autoimunes após tomarem a vacina. No Japão, o governo suspendeu sua campanha de vacinação após o registro de síndromes dolorosas em cinco meninas. Os casos estão sendo investigados, mas a vacina se
mantém disponível gratuitamente à população interessada.

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