Ilustração: Pedro Alice
Imagine que policiais se deslocam por um bairro de classe média alta da cidade. Então, sem justificativa ou aviso, entram em um condomínio atirando com seus fuzis. Uma das residentes, esposa de um desembargador, é atingida no peito quando se dirigia à academia. Ato contínuo, os agentes do Estado jogam o corpo da vítima na mala de um camburão, deixando seu braço pendente. Ainda no condomínio, o corpo cai do veículo. Os policiais param e o juntam novamente. Depois, em uma avenida, o porta-malas abre e o corpo da senhora é arrastado por centenas de metros. Descobre-se que um dos policiais esteve envolvido em 63 outras mortes. Em quase todas as vezes em que ele e seus colegas atiraram, eles mesmos removeram os corpos, mas as vítimas sempre chegaram mortas aos hospitais.
O que você imagina que aconteceria diante desses fatos? Por certo, haveria comoção nacional. Nossos jornais teriam tratado da tragédia nas primeiras páginas e os noticiários não falariam de outra coisa. As lideranças políticas estariam propondo reformas urgentes no modelo de polícia, promotores anunciariam punições implacáveis; os suspeitos já estariam detidos e o clima geral seria de indignação, com direito a manifestações de protesto. As pessoas diriam “queremos uma polícia que nos proteja, não que mate nossos familiares”.
Agora, na descrição fictícia, troque apenas o local dos fatos e o perfil da vítima. Tudo ocorreu no Morro da Congonha, região muito pobre em Madureira, zona norte do Rio. A vítima era uma auxiliar de serviços gerais, negra, de nome Claudia Silva Ferreira e se dirigia à padaria para comprar pão e mortadela para os quatro filhos e os quatro sobrinhos que criava. O que lhe ocorreu só se tornou conhecido porque alguém filmou com o celular quando o corpo caiu pela segunda vez e as cenas foram parar na internet. A presidenta lamentou o ocorrido e o governador do Rio pediu desculpas aos familiares. Não fizeram, entretanto, o que deviam. Em verdade, os maiores responsáveis por crimes desta natureza são as autoridades que nunca assumiram o desafio da reforma do modelo de polícia. O tema simplesmente não é objeto de preocupação do poder público. O motivo de tanta omissão é evidente: cenas como as que vitimaram Cláudia Silva Ferreira não ocorrem em bairros chiques.
Trabalho feito por Michel Misse (UFRJ), que examinou os chamados “autos de resistência” registrados no Rio de Janeiro, mostrou que, em 98% das vezes, os casos são arquivados. Não há investigação e o Ministério Público não cobra providências. A prática dos policiais de conduzir os corpos aos hospitais é motivada não pelo objetivo da assistência, mas para desconstituir a cena do crime e impedir o trabalho da perícia. Um dos indicadores que medem a letalidade policial é a comparação entre número de feridos e mortos em confrontos. Nestas ocorrências, espera-se que o número de feridos seja bem maior que o de mortos. Em New York, ao longo de dez anos, as polícias mataram 196 pessoas e feriram 390. No período, 22 policiais foram mortos. No mesmo intervalo, as polícias em São Paulo mataram 5.565 pessoas e feriram 4.523, tendo 363 policiais mortos. A relação de civis mortos por policial morto é de 8,9 em NY, mas de 16,3 em SP. Atualmente, em SP, cerca de 12% dos homicídios são praticados por policiais.
No RJ, um em cada seis homicídios é resultado de ação policial. Nesta conta, não estão incluídas as mortes produzidas por grupos de extermínio e milícias formadas por policiais e ex-policiais. Entre as vítimas, negros e pardos são mais de 70%. As polícias brasileiras matam quase cinco vezes mais que as polícias americanas e 126 vezes mais que as polícias britânicas. Mesmo quando as taxas de letalidade são comparadas a países mais violentos que o Brasil, seguimos imbatíveis no quesito. Na Venezuela, por exemplo, onde há 45 homicídios para cada 100 mil habitantes – mais que o dobro da taxa brasileira – a letalidade policial é menos da metade da nossa.
Se tivermos em mente, além da letalidade, o conjunto dos demais problemas que afetam nossas polícias – corrupção, autoritarismo, ineficiência, desconsideração da cidadania dos policiais, ausência de controle externo efetivo, altos custos etc. – devemos perguntar: até quando o poder público no Brasil se manterá inerte? Quantas Cláudias ainda deverão ser veladas, quantos Amarildos deverão desaparecer, antes que paremos de tratar os casos como quem vê as árvores, mas não percebe o bosque?