GERAL

O Rio Grande do Sul a um passo da guerra civil

Em agosto de 1961, o Palácio Piratini foi transformado em trincheira contra o golpe, em uma insurreição liderada pelo então governador Leonel Brizola
Por Gilson Camargo / Publicado em 24 de agosto de 2011

Foto: Gil Pinheiro / Fatos & Fotos / Reprodução

Insurgente: Brizola liderou movimento pela posse do vice-presidente

Foto: Gil Pinheiro / Fatos & Fotos / Reprodução

A mobilização, batizada de Campanha da Legalidade, alusão ao texto constitucional que determina a posse do vice no caso de renúncia ou impedimento do presidente, começou no movimento estudantil, no Colégio Julho de Castilhos, o Julinho, no dia 25 de agosto, e assumiu a proporção de uma guerra civil. Apesar das tensões e do teatro de guerra, nenhum tiro chegou a ser disparado, pois a repercussão do Movimento – transmitido pelas 104 emissoras da Cadeia de Rádios da Legalidade – levou a cúpula militar do país a recuar, em setembro, aceitando a posse de Jango. Os poderes do presidente, no entanto, foram limitados por um inusitado sistema Parlamentarista – que seria derrubado com o golpe de 1964.

Cunhado de Brizola, Jango retornava de uma viagem à China quando Jânio Quadros renunciou. Acuado pela oposição em maioria e acusado de tentativa de golpe pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda, o histriônico Quadros imaginou um retorno ao poder nos braços do povo. Sua identificação com a esquerda – condecorou Che Guevara, o que irritou conservadores – e o fato de Jango ser do PTB, herdeiro do populista Getúlio Vargas, foram pretextos de sobra para o veto dos militares à posse do vice. A tentativa de golpe deflagrou o Movimento da Legalidade, “… uma rebelião para restaurar a lei e a ordem, que tinham sido desfeitas pelo poder político-militar em Brasília”, conforme definição do jornalista Flávio Tavares, coordenador da equipe que redigiu nos porões do Palácio a edição extra do jornal Última Hora que lançou o movimento.

Armas velhas e enferrujadas

No interior do estado, caminhões e trens foram confiscados para o transporte de soldados da Brigada Militar para a capital depois que o III Exército recebeu ordens do ministro da Guerra, Odílio Denys, para bombardear a sede do governo gaúcho e “eliminar o governador e quem estiver com ele”. Entrincheirado no Palácio, onde foram montadas barricadas com sacos de areia e brigadianos armados de metralhadoras ficaram de prontidão nas torres do prédio, Brizola montou um estúdio de rádio após confiscar equipamentos da Rádio Guaíba. Com transmissões dramáticas, nas quais declarava a disposição de defender com a própria vida a posse de Jango e a Constituição, o governador comoveu milhares de populares, que se deslocaram para as imediações do Palácio e permaneceram em vigília. “Não nos submeteremos a nenhum golpe, a morte é melhor que a vida sem dignidade”, desafiava pelos microfones madrugada adentro.

A ordem era revidar no caso de uma investida militar. Revólveres calibre 38 confiscados de uma fábrica de armas de São Leopoldo foram distribuídos à população e aos jornalistas, e velhas metralhadoras encontrada pela Brigada Militar no Palácio passaram a ser ostentadas. O armamento fora contrabandeado da Tchecoslováquia pelo general Flores da Cunha, que governara o estado de 1930 a 1937. De tão velhas e enferrujadas, as armas disparavam um cada três ou quatro tiros, relata a jornalista Dione Kuhn no livro Brizola – da Legalidade ao Exílio (2004). “Recebi um revólver com uma argola para atar nos tentos e três balas. Em que baita guerra estava metido!”, ironiza Antônio Carlos Porto em depoimento a Joaquim Felizardo no livro A Legalidade – Último levante gaúcho (1988). Os jatos equipados com bombas, no entanto, nem chegaram a decolar da Base Aérea de Canoas, onde foram sabotados por soldados e oficiais. Um destacamento de blindados chegou a ser deslocado do bairro Serraria, mas também recuou. O general João Machado Lopes, comandante do III Exército, não só desacatou a ordem para atacar o Palácio como aderiu ao Movimento.

O papel dos estudantes

Natale Ferrari

Foto: Igor Sperotto

Natale Ferrari

Foto: Igor Sperotto

O advogado Natale Ferrari, 77 anos, tinha 25 quando começaram a chegar a Porto Alegre as primeiras informações sobre o veto dos militares à posse de Jango – prenunciando a crise. Líder estudantil, ele havia presidido o Grêmio do Colégio Julho de Castilhos em 59 e 60, mas não concorreu em 1961, pois decidira ser advogado. Foi chamado em casa para uma assembleia que definiria a mobilização dos estudantes. “O movimento estudantil do Julinho tinha uma força enorme, muita influência política. Quando cheguei, havia um mar de estudantes. Subi numa plataforma e disse: ‘vamos fazer o que sempre fizemos, vamos para as ruas, vamos tomar as providências para manter a legalidade’”, relata. A passeata começou com 2 mil estudantes e já somava mais de 10 mil quando chegou em frente à Prefeitura. No trajeto, alunos da Ufrgs e populares se juntaram. “Procuramos o prefeito Loureiro Chaves, que tinha prestígio na época, muito mais que o Brizola. Mas ele recuou diante da massa. Disse que devíamos esperar. Foi uma decepção”. Com a recusa de Loureiro, que depois se refugiaria na Cúria Metropolitana com Paulo Brossard e outros desafetos de Brizola, o Movimento seguiu para o Palácio Farroupilha. De uma das janelas do prédio, Ferrari fez um discurso em defesa da Constituição, sendo recebido por Brizola. “Eu estava sobre o parapeito de uma janela e senti que os vidros se abriram às minhas costas. Uma mão me tocou no ombro e me virei. Era o Brizola. Ele falou baixinho: ‘tu estás indo muito bem, continua’. Em seguida tomou a palavra e fez um discurso emocionante, assumindo o controle daquela massa e do Movimento da Legalidade. Isso já era tarde da noite de 25 de agosto. A Legalidade, portanto, nasceu no Julinho. Essa mobilização começou com os estudantes”, enfatiza.

A história em imagens

Jango, Brizola e o general Lopes, que desobedeceu ordens e aderiu

Foto: Acervo Museu Hipólito José da Costa / reprodução

Jango, Brizola e o general Lopes, que desobedeceu
ordens e aderiu

Foto: Acervo Museu Hipólito José da Costa / reprodução

O repórter fotográfico e professor da Unisc, Cláudio Fachel, 52 anos, autor do livro Fotojornalismo, Legalidade e Última Hora (Ed. Medianiz, 136 p.), destaca que o trabalho dos repórteres fotográficos foi decisivo, pois a censura aos meios de comunicação e o discurso anticomunista vigente dificultavam a comunicação. “Numa perspectiva histórica, os fotógrafos da Legalidade foram heróis porque desconstruíram esse discurso através da crueza das imagens, mostrando sem cortes o contexto do Movimento, a importância de resistir ao golpe e fazer valer a Constituição”, analisa Fachel. Para o jornalista Carlos Bastos, 77 anos, que cobriu o episódio como repórter de política do Última Hora, a Legalidade foi o último levante dos gaúchos e talvez a mais significativa demonstração do poder de mobilização popular que o rádio tinha à época. “Um episódio tão forte, tão apaixonante, que nenhum jornalista conseguiu manter a isenção, inclusive os mais de 400 repórteres credenciados pelo Palácio, na sua maioria correspondentes internacionais, que transmitiam boletins emocionados a todo momento”, recorda Bastos.

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