CULTURA

O professor e seu labirinto

Novela de ficção teórica abre a caixa de pandora do mundo acadêmico e suscita muitas reflexões sobre a conjuntura educacional do país
Por Gilson Camargo / Publicado em 18 de setembro de 2020
"Há um conjunto de fatores que nos coloca diante de uma situação muito difícil e o livro é uma tentativa de enfrentar essas questões que, somadas, se configuram para nós quase como uma ausência de futuro na universidade"

Foto: Acervo Pessoal

“Há um conjunto de fatores que nos coloca diante de uma situação muito difícil e o livro é uma tentativa de enfrentar essas questões que, somadas, se configuram para nós quase como uma ausência de futuro na universidade”

Foto: Acervo Pessoal

Mapas sonoros, mídias mortas, currículos fraudados, burocracia acadêmica, reconfiguração de postos de trabalho, saúde mental e realismo capitalista. A leitura de Mecanosfera/Monoambiente (Zouk, 120 p.), novela de ficção teórica lançada no início de setembro pelo professor e pesquisador na área da Comunicação, Fabrício Silveira, abre a caixa de pandora do mundo acadêmico e suscita muitas reflexões sobre a conjuntura educacional do país na atualidade.

Na trama, ambientada nos primeiros meses de 2019, um professor universitário de 45 anos, morador da Cidade Baixa, em Porto Alegre, perde o emprego e se inscreve no processo de seleção para uma bolsa de estudos. A narração desses acontecimentos, conforme progride, revela certos bastidores do mundo acadêmico.

O livro foi concebido como parte das atividades da disciplina Epistemologia fabulatória, experimentação metodológica e criação escrita na pesquisa em Comunicação, no PPG em Comunicação da Ufrgs.

Um impulso para escrever a trama, segundo o autor, foi a percepção de uma espécie de “fratura cognitiva” com o descrédito progressivo à imprensa, à universidade e às instituições de pesquisa. A conjuntura real se tornou tão bizarra que aumentou a demanda por ficção, constata.

“A avalanche de fake news com a qual passamos a conviver me instigou a tratar do tema, para considerá-lo e reagir a ele, de algum modo. O interessante é que passei a ver essa onda de fake news como demanda generalizada por ficções, por novas ficções, como se a sociedade estivesse pedindo ficções e que, sendo assim, um trabalho universitário poderia se ver autorizado a incorporar, em si mesmo, lógicas e procedimentos próprios da literatura e dos mundos ficcionais, tentando assim dar outro sentido, canalizar de outro modo essa demanda por ficções”, resume Silveira.

Desprezo às universidades e currículos fraudados

No curto período entre a escrita e a publicação, o texto ganhou uma maior atualidade: o clima claustrofóbico, que existe na narrativa, em razão do novo coronavírus, só aumentou por conta de fatos da vida real. Dois ministros da Educação se envolveram com episódios de franco desprezo às universidades e com currículos fraudados.

Em um dos capítulos, o narrador analisa o livro Realismo Capitalista – É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?, do teórico inglês Mark Fisher, que será lançado no Brasil. Além disso, a crise das universidades e a crise do mundo do trabalho, as demissões, só se agravaram. John Frusciante, que é um artista sobre o qual o personagem principal tem uma certa obsessão, voltou para os Red Hot Chilli Peppers. Muito do que está colocado no livro, ajudando a compor aquele monoambiente, não só se manteve, mas foi acentuado, ganhou ainda mais proeminência, se fez ainda mais saliente.

“Uma boa narrativa nunca é só uma narrativa, é um desafio que fisga o leitor, que o alimenta e o transforma. Fabrício Silveira consegue a proeza de arquitetar, de maneira simples e instigante, um estado de alma, um olhar corriqueiro, trágico, a mostra do pesadelo de um tempo, um labirinto que se renova no eixo-gangorra de afeto e do conhecimento. Um protagonista digno da melhor tradição. Um livro que merece ser lido e relido”, recomenda o escritor Paulo Scott.

Burocracia,  metatrabalho e angústia docente

"É como se estivesse em curso um metatrabalho, como se os professores trabalhassem para produzir indícios de que trabalham e como se trabalhassem mais nisso do que propriamente naquilo que seria o núcleo pulsante do seu compromisso"

Foto: Acervo Pessoal

“É como se estivesse em curso um metatrabalho, como se os professores trabalhassem para produzir indícios de que trabalham e como se trabalhassem mais nisso do que propriamente naquilo que seria o núcleo pulsante do seu compromisso”

Foto: Acervo Pessoal

Fabrício Silveira é professor universitário e escritor. Formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), tem mestrado em Comunicação e Informação (Ufrgs), doutorado em Ciências da Comunicação (Unisinos) e pós-doutorado pela School of Arts and Media (Salford University, Reino Unido). É autor de diversos livros, como Grafite Expandido, Rupturas Instáveis – Entrar e sair da música pop, Guerra Sensorial e Gigante Figura. Leia a seguir trechos da entrevista:

Como define Mecanosfera/Monoambiente?
Do ponto de vista formal é uma experiência de literatura e ensaio acadêmico, um exercício de teoria-ficção que, no caso, diz respeito à tentativa de colocar dentro de uma moldura da ficção algumas questões e debates teóricos. O livro é sobre um professor universitário que, depois de muito tempo, perde o emprego e se vê diante da possibilidade de concorrer a uma bolsa de estudos. Nos primeiros meses de 2019, havia uma apreensão muito grande quanto às políticas educacionais a serem implementadas no país e essa é a ambientação do trabalho, que acaba discutindo esses bastidores do mundo acadêmico, sempre pela ótica do personagem, que se vê num processo de repensar a carreira e o próprio sentido das práticas da universidade.

Quais práticas?
A narrativa toca em temas como o produtivismo acadêmico, a burocracia na universidade, as bolsas de estudo, os sistemas de avaliação e o financiamento da educação no Brasil. São assuntos que vão permeando essa narrativa e eventualmente recebem um tratamento um pouco mais teórico porque é como se esse personagem não estivesse só narrando a sua história ou uma história a partir do seu ponto de vista, porque ele, afinal de contas, é um professor. O personagem se vê refletindo, com seus instrumentos de professor, sobre essa situação que ele está atravessando.

É uma novela de ficção, mas mobiliza questões reais?
A narrativa se detém muito na questão da burocracia da universidade, que é um tema caro pra gente pensar não só a universidade, mas o Estado burocrático no Brasil. No caso do livro, a burocracia acadêmica, seja o produtivismo, a exigência permanente de uma produção cada vez mais e mais desenfreada como critério de avaliação do professor e a burocracia também como mérito formal. Há um conjunto de demandas em torno da vida do professor que tira muitas vezes o professor do seu compromisso imediato com o ensino, com a sala de aula. Estou falando dos sistemas de avaliação, dos sistemas de ranqueamento das universidades, dos processos de seleção de alunos.

A burocracia acadêmica afasta o professor da sala de aula?
Vão se produzindo demandas mais a ver com a formalidade, com o registro informacional sobre a produção do que com a produção em si. É como se estivesse em curso um metatrabalho, como se os professores trabalhassem para produzir indícios de que trabalham e como se trabalhassem mais nisso do que propriamente naquilo que seria o núcleo pulsante do seu compromisso.

Como essa lógica atinge a saúde dos professores?
Eu pessoalmente tenho acompanhado, até mesmo na condição de professor interessado na vida da universidade, e chamam a atenção as questões da saúde do professor, os índices de adoecimento, a saúde mental, até mesmo as taxas de suicídio na pós-graduação – assuntos não muito tratados publicamente. O livro aborda as consequências psíquicas dessa conjuntura toda de hiperexigência, de burocracia e agora, mais recentemente, tudo isso somado a um processo social ampliado de desacreditação da universidade como instância de saber, até como instância formativa capaz de garantir, para alguém, no futuro, uma vida melhor.

Vale a pena ser professor?
Há um conjunto de fatores que nos coloca diante de uma situação muito difícil e o livro é uma tentativa de enfrentar essas questões que, somadas, se configuram para nós quase como uma ausência de futuro na universidade. Não vejo hoje ninguém feliz, ninguém que tenha vínculo com a universidade, seja em que nível for, seja como professor, como estudante, como funcionário, como técnico. O livro aponta alguns desses fatores que contribuem para uma sensação generalizada de desconforto que temos hoje com a vida dentro da universidade. As condições do trabalho acadêmico, a universidade como uma instância social de referência, de legitimidade, numa crise, e, dentro disso, esses processos de acentuada burocracia, de precarização da saúde e do trabalho, e de, mesmo assim, termos que tentar reconstruir uma universidade viável nesse cenário.

A conjuntura educacional piorou?
Vivemos uma espécie de comprometimento do futuro da universidade. Em que nível isso se dá eu não consigo dimensionar exatamente. Até que ponto isso pode ser revertido também não. Mas acho que envolve muitas coisas, que vêm de antes de 2019. Há uma captura das universidades por uma lógica radicalmente comercial, que é um desses fatores. Acho que o ensino não pode ser visto como mercadoria. Então há processos de acentuada mercantilização do estudo, que, evidentemente, para mim, comprometem a natureza dos processos pedagógicos. Há coisas na vida que não podem ser vistas por uma ótica que não seja de cooperação radical. Nem tudo é mercadoria a ser comprada por um indivíduo singular, isolado, pensando unicamente em si. E a educação é uma dessas coisas que não podem ser submetidas à lógica do consumo e nem podem ser vistas fora da dimensão pública. Essa lógica de hiperconsumo da educação se agravou e se acrescentou a isso o processo de plataformização do ensino. Isso já vinha se dando com um movimento quase de forçar as universidades a adotarem o ensino a distância. Agora, com a pandemia, esse processo só se acentuou e irá se consolidar. E há também o processo de datificação do ensino. Li, dia desses, que uma rede internacional de universidades que atua no Brasil submeteu a correção dos trabalhos dos alunos a um sistema de inteligência artificial. Os alunos estavam sendo avaliados por um computador e achavam que era por um professor.

Livro Mecanosfera/ Monoambiente, publicado pela editora Zouk

Imagem: Reprodução

Livro Mecanosfera/ Monoambiente, publicado pela editora Zouk

Imagem: Reprodução

O que significa datificação?
Me refiro a processos de plataformização do ensino e, de outro lado, a processos de hiperinformatização, que só acentuam a transformação do ensino numa commoditie e de entendimento de que o ensino é algo a ser disputado por indivíduos e não mais um bem coletivo. O livro é um pouco o fruto desse meu estado de alerta com tudo isso que está acontecendo, desde 2018, e antes, é a tentativa de produzir alguma coisa que faça algum sentido como reação a essa conjuntura que a gente vê se formando diante dos nossos olhos. E o curioso é que eu me senti instigado a encontrar na ficção um modo de reagir. Porque parece que a situação é tão turbulenta e nos escapa tanto, mesmo para quem está dentro da universidade, como eu, que talvez a ficção seja um modo de espelhar um pouco e de colocar no horizonte um exercício mais positivo diante desse cenário de crise de futuro.

A realidade está tão surreal que há uma demanda por ficção?
Algo assim. Talvez uma peça de ficção responda melhor ou suscite melhor uma resposta a essa conjuntura do que um trabalho acadêmico que acabará tabulado na minha planilha de produção. Como fazer a crítica desse sistema colocando-a na mesma planilha que eu critico? Nesse sentido, o elemento ficcional transborda e traz incômodo para essa planilha, para essa auditoria acadêmica para a qual a gente vive prestando contas.

Qual será seu próximo projeto literário?
O primeiro deles é a continuidade desse próprio trabalho. Um outro volume da mesma história, o mesmo personagem. O final desse livro é suficientemente aberto para isso. Outra possibilidade é um estudo mais formal sobre outros trabalhos no campo da comunicação ou da literatura que se proponham a experiências de printização, novela, ensaio, texto teórico, filosófico com narrativa ficcional, textos que experimentem com essa ambiguidade, explorem essas fronteiras ou que borrem as fronteiras entre o biográfico, o ensaio acadêmico, a especulação filosófica, o texto mais formal praticado dentro da universidade, e outros formatos narrativos. Outra possibilidade seria fazer um trabalho mais acadêmico, formal, sobre esses experimentos de texto.

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