Foto: Twitter/ Reprodução
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Há mais do que uma cordilheira nos separando da festa dos chilenos. Os brasileiros olham com encantamento para a vitória do povo e da Constituinte, mas não há o que fazer no momento além de aplaudir e sentir inveja.
Eles têm quase tudo que não temos hoje. Assim como eles não tiveram, em 1988, a chance que tivemos de comemorar uma nova Constituição, antes mesmo da primeira eleição depois da ditadura.
Mas eles puniram e continuam punindo seus ditadores e seus torturadores. E têm jovens com poder político que há muito tempo nós não temos.
Desde o final do século passado o que eles mais têm é jovem. Jovens que amadurecem e são substituídos por novos jovens rebeldes e transgressores.
Jovens secundaristas que ocupam escolas e servem de modelo para outros jovens da América Latina, entre os quais os brasileiros. Jovens que vão em massa às ruas e enfrentem o banditismo dos carabineiros.
O que mais tem no Chile é jovem nas ruas. Alguns dizem que com maioria de mulheres. E com a força dos índios. Jovens pobres, de classe média e até jovens ricos nas ruas.
Desde outubro do ano passado os jovens não saem das praças. Mais de 400 perderam um dos olhos por ferimentos com as balas de borracha disparadas pela polícia. Mais de 40 foram mortos.
Os jovens chilenos não envelhecem. São eles que empurram os políticos e os partidos e questionam suas caduquices. Tanto que a Constituinte será exclusiva, sem participação dos atuais congressistas.
São os jovens que lutam pelos avós que tiveram o fim da vida destruído pela previdência chilena. Se a nova Constituição acabar com os carabineiros, para que o país se livre da polícia do fascismo, essa será uma vitória deles.
Os jovens chilenos, mesmo que sem lideranças à moda antiga, não abriram mão da representação institucional. Rostos que surgiram desde as manifestações do início dos anos 2000 são vistos agora no parlamento.
O jovem chileno pode promover a maior renovação da política na América Latina desde as ditaduras dos anos 70 e 80. Uma renovação pela esquerda.
O acesso ao ensino universitário chileno, um funil para muito poucos, será outro depois da Constituição que deve começar a valer em 2022.
Será outra a previdência que transfere dinheiro dos pobres para os bancos. O sistema de saúde pública pode copiar, com vantagens, o SUS brasileiro.
O Chile alternou direita e esquerda no poder nas últimas décadas. Foi vendido para o mundo como modelo do êxito das políticas neoliberais. Mas vinha aumentando desigualdades e corroendo coesão social e futuro.
Não há como imitá-los, não agora. O Chile vai se livrar dos últimos resquícios da era Pinochet, enquanto no Brasil a extrema direita no poder recicla o entulho da ditadura.
Os estudantes chilenos das ocupações andaram sempre para a frente.
Os estudantes brasileiros dos protestos de 2013 foram paralisados pelo sequestro das manifestações pela Globo, pelo lavajatismo, pelo Brasil arcaico e pela classe média reacionária.
Desde o golpe de 2016, os estudantes tiveram alguns soluços de reações localizadas, com uma minoria de bravos nas ruas, mas nunca mais se recuperaram como expressão de demandas e sonhos e como força política.
O Brasil viu crescer as lutas identitárias, e os chilenos fortaleceram a luta de classe e o vigor dos estudantes. Os chilenos foram revolucionários, no sentido de desafiar estruturas ainda tomadas pelo pinochetismo e de promover avanços em outras frentes.
A Constituinte a ser eleita em abril do ano que vem terá de destinar metade das cadeiras às mulheres. É a lei da paridade, aprovada pelo Congresso.
Poderão ser eleitos candidatos avulsos, sem vínculos com partidos. E os índios devem ser representados por cotas a serem definidas pelo parlamento.
Mas não há como imaginar o mesmo cenário no Brasil que massacra mulheres, índios, negros e gays. É ingênua, quase infantil, a tese de que é possível convocar uma Constituinte aqui, como parte da esquerda chegou a defender antes da eleição de 2018.
Não basta entusiasmar-se com o êxito das lutas chilenas. Uma Constituinte no Brasil seria um desastre.
Resultaria na eleição de pastores, delegados, coronéis, escrivães, fazendeiros, grileiros e bacanas representantes de bancos e grandes empresas. Uma Constituinte no Brasil teria mais exorcistas do que mulheres. O Chile não é aqui.
Nós não conseguimos enfrentar nem mesmo o Gabinete do Ódio dos garotos de Bolsonaro. Nem os milicianos, os grileiros, os incendiários da Amazônia e do Pantanal e seus cúmplices dentro do governo. É a nossa realidade incômoda.
O Brasil vai precisar das ruas para voltar a sonhar e a reagir. Mas, se depois da pandemia as ruas continuarem vazias, teremos de esperar as próximas gerações. Os chilenos esperaram.