Esperança para o Sinos
Basta acompanhar alguns quilômetros de leito para se ter uma noção do estado de degradação das águas de um dos maiores – e mais poluídos – rios do Brasil. Também não seriam necessários mais do que 2 minutos de conversa com ambientalistas ou ribeirinhos e duas histórias recentes de mortandade de peixes para ilustrar uma evidência: o rio dos Sinos está à beira da morte. A decadência do Sinos é resultado de múltiplas e sucessivas formas de agressão. Desde a nascente, toneladas de dejetos industriais carregados de metais pesados como o cobre e o cromo da indústria calçadista e o esgoto doméstico de 14 municípios (aproximadamente 2 milhões de habitantes) vão parar diariamente no rio sem qualquer tratamento; suas margens são cada vez mais desmatadas e assoreadas, a pesca predatória viceja, os banhados desapareceram e as lavouras de arroz se encarregam de desfigurar de vez a paisagem e exaurir o que resta de oxigênio, devolvendo ao rio água infestada de agrotóxicos e manganês. Apesar de evidente, a morte do Sinos será medida por indicadores pelo Ministério Público do Estado. No dia 19 de maio deste ano, uma equipe multidisciplinar capitaneada pela Promotoria Regional de Meio Ambiente das Bacias dos rios dos Sinos e Gravataí fez uma abordagem histórica sobre o estado de deterioração do rio.
Foram coletadas amostras de 44 pontos dos rios Sinos e Paranhana nos 14 municípios que compõem a bacia. Os resultados, em fase de análise e compilação, serão transformados em índices e irão apontar as responsabilidades de cada uma das cidades localizadas ao longo dos trechos dos dois rios em relação à poluição. Com base científica, o Ministério Público pretende mapear, por município, as atividades que estão provocando a degradação do rio e o grau de destruição e, a partir desse diagnóstico, determinar as ações que cada prefeitura deverá adotar para reverter os danos.
O Sinos é um rio manso. Sinuoso como uma cobra, desliza devagar em 80% de sua extensão por uma planície que se estende da nascente, encravada a 600 metros de altura, no município de Caraá, no Nordeste gaúcho, até a foz, na divisa entre Canoas e Porto Alegre, no Lago Guaíba. São 190 quilômetros de extensão e uma baixa capacidade de oxigenação. A coleta de amostras para a análise histórica foi feita à vazante e à jusante (no início e no fim do limite de cada município) e na foz dos principais arroios, a partir do rio Paranhana, em 80% do Sinos – e deverá comprovar que essa mansidão está diretamente ligada à fragilidade do rio.
Isso porque, segundo a Promotoria de Meio Ambiente, a última mortandade de peixes, ocorrida em 1º de dezembro do ano passado entre Sapiranga e São Leopoldo, esteve diretamente ligada ao lançamento irregular de efluentes industriais de três empresas localizadas entre Três Coroas e Taquara. Isso demonstra que, se dependesse apenas da sua nascente, o rio já teria sido extinto há muito tempo. O que garante a sobrevida do Sinos é uma transposição feita na região de Canela, onde o sistema de barragens do Salto, Canastra e Bugres, no rio Santa Cruz, alimenta o Sinos com água do rio Caí através do rio Paranhana. “A análise é inédita porque vou poder cobrar dos municípios, dos prefeitos, medidas para poder mudar esses números. Com esse raio-x do rio, vamos chamar cada prefeito e dizer a ele o seguinte: ‘olha, prefeito, aqui eu tenho um estudo técnico dizendo que o seu município contribui para a piora das condições do rio em tanto por cento’”, avisa o promotor Daniel Martini.
O estudo técnico também servirá de suporte para o inquérito que apura as responsabilidades sobre o desastre de dezembro. A ideia é, até agosto, divulgar um relatório apontando a origem de crimes ambientais e arbitrando multas. Os dados fornecerão uma prova científica sobre um problema que se repete. “Por que não podemos crescer sem destruir? O debate tem que ser técnico e não político-partidário. O que não podemos mais é reconhecer que o problema do Sinos é grave e não tratar. O problema é que a cada quatro anos muda o comando nas instâncias de poder político e muda a política ambiental”, aponta o biólogo Jackson Müller, ex-secretário de Meio Ambiente de Novo Hamburgo e integrante da força-tarefa do Ministério Público.
Nos municípios que compõem a bacia do Sinos, a média do esgoto doméstico que recebe algum tratamento antes de ser despejado no rio beira a zero e muitos prefeitos se orgulham de tratar 5% dos dejetos. Na boca dos arroios e valões que desembocam no rio, escondidos no meio do mato, a vazão de dejetos pode ser constatada a qualquer hora do dia. Em média, os municípios banhados pelo Sinos tratam apenas 5% dos seus esgotos. Entre os 2% tratados por Novo Hamburgo e os 50% que a Prefeitura de São Leopoldo diz ter passado a processar depois de realizar obras de construção de coletores, há dois anos, há uma imensa disparidade. Novo Hamburgo anunciou, em 2010, plano ambicioso de ampliar o tratamento para 80% em quatro anos.
Junto com o rio Gravataí, o Sinos só perde para o paulistano Tietê em matéria de degradação, segundo dados de 2007 da Agência Nacional de Águas (ANA). A qualificação foi divulgada um ano depois da mortandade de 86 toneladas de peixes ocorrida em novembro de 2006. A Utresa, maior central de resíduos do estado, que atua na reciclagem de dejetos das indústrias coureiro-calçadistas e químicas, com sede em Estância Velha, foi apontada como responsável pelo desastre e seu diretor, o engenheiro Luiz Ruppenthal, condenado a 30 anos de prisão. Em dezembro do ano passado, ainda sob investigação judicial, a usina se envolveu em outro crime ambiental: resíduos inflamáveis recolhidos das fábricas de sapatos foram amontoados de forma irregular em uma vala, sem autorização dos órgãos ambientais, e se incendiaram durante dez horas. O engenheiro João Luís Bombarda, responsável-técnico da Utresa, chegou a ser preso em flagrante pela delegada Elisângela Reghelin, mas teve a prisão relaxada pela Justiça e respondeu em liberdade ao inquérito por crime ambiental.
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
ENTREVISTA: DANIEL MARTINI
“Esses rios estão em coma”
Foto: MPRS/divulgação
Foto: MPRS/divulgação
Ainda há tempo de salvar os dois rios?
Ainda dá tempo. Com o trabalho que o Ministério Público vem fazendo, que algumas ONGs vêm fazendo, alguns municípios bem-intencionados vêm fazendo, acho que caminhamos para isso. A perspectiva é boa, apesar de tudo.
O que é preciso fazer?
Primeiro, que os municípios exerçam, de fato, a fiscalização industrial. O município pode fiscalizar as atividades licenciadas pelo Estado. Quer dizer, fiscalizar o lançamento de efluentes nos rios. A outra proposta do Ministério Público, mais ambiciosa, já aprovada pelo Consórcio Pró-Sinos, é termos 100% das economias (moradias, residências, indústrias) com seus esgotos sanitários fiscalizados. Onde há rede coletora, cabe ao município compelir o morador para que faça a ligação dos seus esgotos à rede coletora. Existem medidas adequadas e de baixo custo que são a fossa séptica, um filtro e depois do filtro o sumidouro até a unidade coletora ou até o curso d’água. Esse sistema individual tem uma eficiência de 70% a 80% de limpeza do esgoto.
Qual é o custo da implantação desse sistema em cada casa?
A lei já obriga isso. Mas, evidentemente, tem um custo. Esse sistema de fossa séptica, filtro ecológico e mais o sumidouro custa por volta de R$ 1 mil por residência. Para a população de baixa renda, precisaríamos de uma política pública específica. E dinheiro parece não ser problema. Temos bolsa-tudo. Por que não uma bolsa saneamento básico?
O senhor diz que o estado dos rios reflete o que nós somos. O que somos?
Somos falsos defensores da natureza. Porque bradamos, defendemos o meio ambiente quando isso não nos custa nada. Quando isso impõe um custo para nós, achamos que a obrigação é do outro. É do poder público.
Esses rios já estão mortos?
Eles estão em estado de coma. É um coma grave. Quando acontece qualquer fato anormal, por exemplo, um lançamento fora do padrão, mata o peixe todo. Eles estão no limite. Agora, a natureza tem uma capacidade de corrigir os problemas que nós causamos. É graças a essa capacidade que os rios estão vivos.
Trecho mais poluído será alvo de análises
As amostras coletadas pela força tarefa do Ministério Público irão apurar dados quantitativos de, ao menos, três pontos por município na extensão banhada pelo rio dos Sinos e na foz dos principais arroios. O Sinos nasce no município de Caraá como um rio classe 1, com água limpa. Passa a classe 2 em Santo Antônio da Patrulha e torna-se precário a partir de Taquara. É a partir deste ponto que mergulha numa planície que se estende por 160 quilômetros e onde se concentra cerca de 1,5 milhão de habitantes por 11 municípios e sua escala de qualidade da água, conforme a Agência Nacional de Águas (ANA), despenca para classe 4, o pior índice.
Quanto à UHE Barra Grande, quatro inquéritos civis públicos cobram a implantação do Plano de Desenvolvimento Regional, do Plano de Uso do Entorno do Reservatório, da Unidade de Proteção Ambiental (Corredor Ecológico) e o compromisso de aquisição da área para implantação de Unidade de Conservação em Santa Catarina, ainda não cumpridos. Encontram-se ainda em acompanhamento pelo MPF os estudos da Avaliação Ambiental Integrada da Bacia do Rio Uruguai e os trabalhos de demarcação das áreas comuns (reserva legal e áreas verdes).
Em vez de obter apenas índices qualitativos, os dados servirão de base para determinar a quantidade de resíduo orgânico produzido por habitante, avaliar qual setor industrial (metal-mecânico, coureiro-calçadista, esgoto doméstico) responde pela agressão mais prejudicial ao rio. De posse dessas informações, o MP poderá atuar no sentido de sugerir e exigir a implantação de políticas públicas. Confira as análises que o MP solicitou:
Coliformes fecais e coliformes totais: mede a concentração de esgoto cloacal lançado nas águas do rio. São responsáveis por doenças como esquistossomose e cólera.
Nitrogênio amoniacal: mede a capacidade de as bactérias eliminarem matéria orgânica, fornecendo parâmetro da capacidade do rio limpar-se.
Óleos e graxas: mede a poluição por óleos comestíveis e minerais (motores). Ficam na superfície da água e dificultam a oxigenação.
Fosfatos: poluição por sabões e detergentes ricos em fosfatos. São responsáveis pelo supercrescimento de algas, que ajudam a reduzir o oxigênio da água.
DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio): mede o oxigênio consumido por bactérias para sintetizar matéria orgânica (esgoto doméstico).
DQO (Demanda Química de Oxigênio): mede o efeito que os componentes químicos lançados na água têm em relação ao consumo de oxigênio.
Metais pesados: a concentração de cádmio, cromo, níquel e outros metais apura a origem do efluente industrial.
O custo ambiental das lavouras de arroz
As culturas de arroz que surgiram às margens do trecho do alto Sinos, sobretudo em Santo Antônio da Patrulha, nos últimos cinco anos, têm um alto custo ambiental. Por ser um vegetal de várzeas, o arroz precisa de muita água para germinar, o que gera um grande impacto nesses primeiros 40 quilômetros do Sinos, onde a água é escassa e, em alguns pontos, não passa de córregos.
Segundo o biólogo Jackson Müller, um quilo de arroz, para ser produzido, consome 2 mil litros de água. Se multiplicado esse volume por mil teremos que uma tonelada do produto, base da alimentação do brasileiro, consumiria 2 milhões de litros de água. Alto preço a pagar e uma responsabilidade indireta. Se o arroz não mata peixes pelo lançamento de defensivos agrícolas, faz com que o restante do rio padeça da falta de água. Resultado: menor quantidade de água, maior concentração de esgotos domésticos. Assim, o arroz, nos últimos cinco anos, ajudou, e muito, a piorar as condições do rio.
Por conta desse conjunto de agressões, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), pela Portaria 36, de 2010, passou a negar previamente a liberação ambiental para qualquer projeto que faça uso industrial ou que consuma água do Sinos. “São 3 mil hectares de arroz na parte alta do Sinos. É onde o rio nasce. Esse plantio foi feito em lugar inadequado”, diz Müller.
No trecho superior do rio é onde está a nascente e as águas de melhor qualidade. Segundo o Ministério Público, o rio nasce tendo uma qualidade Classe 2 e despenca para Classe 4 a partir de Taquara. Um estudo da Prefeitura de Novo Hamburgo a partir da coleta de água nas proximidades de Campo Bom, em dezembro passado, detectou um nível de manganês, substância encontrada em defensivos agrícolas, muito superior aos níveis aceitáveis. As amostras de água coletadas nos últimos dias de junho entre Santo Antônio da Patrulha e Taquara também irão apurar a concentração de defensivos agrícolas.
Mapa
Foto: Google Maps
OS MUNICÍPIOS
Rio Paranhana
Três Coroas
Igrejinha
RIO DOS SINOS
Taquara*
Parobé
Araricá
Nova Hartz
Sapiranga
Campo Bom
Novo Hamburgo
São Leopoldo
Sapucaia do Sul
Nova Santa Rita
Esteio
Canoas
*Confluência entre o Paranhana e o Sinos
MP terá laboratório móvel
Algumas estratégias de ação começam a fazer parte da rotina da Promotoria Regional de Defesa do Meio Ambiente das Bacias Hidrográficas dos Rios dos Sinos e Gravataí. Este ano a equipe sediada em Gravataí recebeu uma denúncia sobre uma empresa que poluía um arroio em Ivoti. Técnicos acompanhados pela Promotoria, pela Delegacia de Meio Ambiente e pela Brigada Militar utilizaram um expediente tão simples quanto surpreendente para apurar uma responsabilidade. Após identificar um reservatório de efluentes e comparar a cor da água do arroio próximo com a do recipiente, a equipe se dividiu em dois grupos. Parte ficou no reservatório e lançou na tubulação um líquido vermelho. No mesmo instante, as águas do arroio se turvaram de vermelho e, diante da evidência, o responsáveltécnico da empresa recebeu voz de prisão.
Essa rotina se repete desde novembro de 2010. A equipe comandada pelo promotor Daniel Martini já efetuou outras 24 prisões pelo estado e se prepara para agilizar sua ação. São biólogos, delegados de polícia, soldados da Brigada Militar, com barcos e apoio, que passarão a contar, até o final deste ano, com um laboratório móvel. Segundo Martini, já há uma licitação em curso para adquirir o equipamento. Com o laboratório, será possível determinar em tempo real a responsabilidade de uma empresa, efetuar prisões se necessário e agilizar processos ambientais.
A agilidade tem um motivo. O efeito tem sido tão pesado que, em menos de seis meses, a atribuição passou a ser estadual. Não é uma estrutura suficiente, mas é o possível. “Será um laboratório portátil e itinerante que está sendo comprado pelo Ministério Público. Com ele, será possível analisar o efluente em tempo real. O poluidor não deve estar dormindo sossegado. Com esse laboratório, poderemos, além da prisão, determinar a correção”, explica Martini.
Foto: Igor Sperotto