OPINIÃO

Borgen: a política como dignidade

Por Marcos Rolim / Publicado em 12 de novembro de 2020

Foto: Divulgação/ Netfilx

Foto: Divulgação/ Netfilx

No centro de Copenhague está o Palácio de Christiansborg, uma bonita construção barroca e neoclássica onde funcionam o Parlamento dinamarquês, o gabinete do primeiro ministro e dos líderes partidários e a Suprema Corte. Alguns espaços são também utilizados pela rainha Margarida II. Trata-se do único prédio do mundo a abrigar os três Poderes. O prédio explica o nome da extraordinária série dinamarquesa Borgen, disponível na Netflix em três temporadas.

A protagonista da série é Birgitte Nyborg (Sidse Babett Knudsen), a líder do “Partido dos Moderados” que se torna a primeira mulher a assumir o cargo de primeira-ministra. O enredo é ficcional, mas reflete tão proximamente quanto possível a realidade política dinamarquesa que, atualmente, possui dez partidos efetivos, desde a extrema direita representada pelo Partido Popular Dinamarquês (Dansk Folkerparti) até às posições mais à esquerda identificadas com a sustentabilidade como a Aliança Vermelho e Verde (Emhedslisten-De Rød-Grønne) e o Partido Popular Socialista (Socialistik Folkerparti). Um fato curioso é que, após a TV dinamarquesa ter exibido a segunda temporada da série, Helle Thorning-Schmidt, líder do Partido Social Democrata, se transformou na primeira mulher a ser eleita primeira-ministra em seu país (2011-2015).

Borgen é, de fato, um curso sobre a política e seus desafios éticos, cuja história se desenvolve a partir das exigências por políticas públicas eficientes, das disputas eleitorais e dos processos de tomada de decisões dos líderes políticos. Com didatismo e perspectiva crítica, Borgen vai mostrando o jogo de interesses que integra a cena democrática, a influência dos empresários sobre os governos, as complexas relações internacionais – com temas como as reivindicações do povo inuit, da Groelândia, e os compromissos militares da Dinamarca com a Otan, o papel desempenhado pela imprensa na cobertura política e da assessoria de imprensa da primeira-ministra, além de um conjunto de questões que envolvem as relações entre a vida privada e familiar e os compromissos públicos.

Birgitte disputa o centro da política dinamarquesa, mas é uma liderança com posições avançadas (situadas à esquerda de grande parte da esquerda brasileira, por exemplo). Não é imune a contradições e, eventualmente, tem dificuldades de   posicionar-se diante da complexidade das tarefas de governo, porque elas – frequentemente – desafiam seus valores políticos e morais. Esse é um dos aspectos, aliás, que assegura densidade à trama. Embora a personagem seja cativante, sabe-se que estamos diante de uma pessoa, não de um mito. Os dilemas políticos de cada capítulo, além de extremamente realistas, evidenciam o peso que os valores consequencialistas possuem nas decisões políticas e o quanto é desafiador encontrar uma síntese entre eles e as posturas éticas fundadas em princípios, um conflito que Max Weber identificou como “ética da responsabilidade” versus “ética da convicção”.

Não parece casual, também, que o quadro político mais capaz e moralmente mais íntegro da série seja uma mulher. Em toda a história, as mulheres situam-se vários passos à frente dos homens, como se percebe, por exemplo, no contexto paralelo da TV1 e do jornal sensacionalista Ekspress, com destaque para a repórter Katrine Fønsmark (Birgitte Hjort Sørensen). Aliás, a série trata com especial precisão temas do dia a dia do jornalismo, mostrando o que há de melhor e de pior no gênero.

Borgen merece ser apreciada como uma exposição persuasiva em favor da civilização e em defesa da política pensada como dignidade. O enredo permite que se compreenda melhor o funcionamento do sistema parlamentarista e agrega muitas informações a respeito dos valores culturais comuns nos países escandinavos.  O contraste com a política praticada no Brasil é de tal monta, que determinadas marcas de nossa tradição ficam mais visíveis, já que é impossível assistir aos episódios sem lembrar dos procedimentos, discursos e hábitos que se tornaram comuns entre nós. Assim, por exemplo, quando a primeira-ministra se desloca de bicicleta ou quando sai apressada do trabalho, porque era o seu dia de pegar as crianças na escola, nos lembramos das imagens de carros oficiais, batedores e complexos sistemas de segurança montados para o deslocamento de autoridades brasileiras inclusive em atividades não oficiais ou privadas.

Em verdade, a degradação política no Brasil é um fenômeno tão avassalador que sequer a lembrança da dignidade tem mais espaço. O caso recente do senador bolsonarista flagrado com milhares de reais na cueca não é sequer inédito porque, como se sabe, há cuecas de muitas cores partidárias. Coisas do tipo há muito não produzem indignação no meio político, exatamente porque dizem respeito ao tipo de comportamento que alça figuras medíocres aos mais altos postos, não raro com discursos moralistas que reforçam a demanda punitiva. Quando figuras deste tipo se tornam líderes, o que resta para a política além da crônica policial?  E uma vez não havendo política – e, portanto, não mais disputas regradas em torno de projetos nacionais – o que resta ao país para além do desespero?  Também por conta dessas perguntas, é importante assistir Borgen.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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