Ilustração: Rafael Sica
Ilustração: Rafael Sica
Como não tenho agenda, reuni uma coleção de papeizinhos onde anoto, de forma aleatória, esparsa, coisas a serem lembradas. Tá tudo lá, em gavetas, enfiados em livros, largados na mesa. Bagunça errática de palavras soltas, palavras-chaves que depois não abrem coisa alguma, como inúteis pedras de roseta em celulose.
Os papéis variam no tamanho, geralmente cadáveres esquartejados de uma folha A4. Reaproveito o verso de textos impressos que até valiam a impressão, mas depois não me impressionam mais. Enquanto a impressora se adona da frente, me aposso do verso, textos em georgia ou garamond de um lado, manuscritos e garranchos do outro.
Antes de enfeixar todo o material para examinar, reparo no conteúdo disperso nos fragmentos: afazeres, providências, compromissos, enfim, coisas rotineiras. Essas anotações vêm se acumulando desde que a quarentena começou. Sempre foram feitas, em menor escala. Agora, separados em montinhos na mesa, um mini himalaia do que era pra fazer e não foi feito.
Se eu tivesse uma agenda, seria mais fácil um checkup. Pegava a agenda e fazia logo uma tomografia computadorizada daquelas páginas cheias da mesmice quarentenal. As imagens poderiam mostrar os problemas ocultos na repetição dos atos domésticos. Confirmaria a má postura do meu cotidiano sistemático.
Ou a suspeita de procrastinação incurável. Sei lá.
De nada me serve a tecnologia high tech quando o que tenho à vista é essa papelada desorganizada. Começo a reler os rabiscos, rastros esferográficos e hidrográficos de um dia a dia indistinguível. Mundaréu de referências que nada referem agora. Parecem confusas ilhas no meio do meu particular Rio Lette, o mitológico rio do esquecimento.
Sem ser meticuloso, examino papel por papel. Sete meses registrados que nem configuram o rascunho de um ano. Apenas passo os olhos aqui e ali, mal pisco, desinteressado. O diagnóstico é óbvio: minha rotina encolheu durante a pandemia. Tem os mesmos m2 do apartamento.
Acabo o exame superficial e a rotina, porém, continua: recolher os vestígios dos dias, decidir entre rasgar metodicamente ou picar a esmo, alimentar a lixeira com a ração temporal. Depois segue tudo pro lixo seco, pra usina devoradora dos nossos desperdícios materiais e imateriais.
Ainda bem que não transformei isso em crônica para algum jornal. Seria repetitivo.