42 mil mulheres assassinadas
Foto: Igor Sperotto
No exato momento em que esta matéria está sendo redigida, uma mulher é espancada e outra poderá ser morta. A cada 15 segundos essa situação vai se repetir mais e mais, sem que o agressor seja punido, ora por falta de denúncia, ora porque não houve tempo para vencer a burocracia dos papéis, ou a falta de estrutura das redes de apoio. Uma criança, filha ou filho desta mulher, vai estar na rua porque não aguenta mais a agressão vivida em casa, ou porque sofreu abuso sexual pelo padrasto, pai, irmão, vizinho ou parente. O ciclo de violência novamente terá sido sedimentado e alimentado pela apatia da sociedade.
No mesmo dia em que este texto foi escrito, as estatísticas ganharam mais um número. “Mulher morta por ex em cárcere privado solicitou proteção à Justiça”, dizia a manchete. L. R., 28 anos (o nome é preservado porque há suspeita de que sua enteada de 13 anos tenha sido abusada pelo criminoso, e a lei garante a proteção à identidade da adolescente que também foi vítima) ficou sob a mira de um revólver por 16 horas antes de o ex-companheiro atirar nela duas vezes e se matar, na cidade de Guaíba, na Grande Porto Alegre. L.R. havia solicitado medidas protetivas de urgência à polícia, porque estava sendo ameaçada. Segundo informações da polícia, o motivo seria ciúmes. O delegado encarregado explicou: “Não deu tempo”.
Não faltam nomes por trás das estatísticas, nem estatísticas de todas as classes sociais. A camareira de Guiné que denunciou, em 14 de maio de 2011, o economista, advogado e político francês Dominique Gastón André Strauss-Kahn, então diretor do Fundo Monetário Internacional, por estupro em um hotel de Nova Iorque sentiu a mesma revolta da família de Sandra Gomide, assassinada há 11 anos pelo jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, ex-diretor de O Estado de S.Paulo, que somente em 24 de maio de 2011 foi preso. O empresário e publicitário gaúcho Carlos Flores Chaves Barcellos, que no dia 23 de maio de 2011 feriu sua exmulher e assassinou, a golpes de faca, o namorado dela, José Augusto de Medeiros Neto, em um prédio de Torres, litoral do Rio Grande do Sul, alegou o mesmo tipo de amor que matou L.R. e supostamente abusou de sua enteada.
Em geral, quando a vítima consegue escapar da morte, o que predomina é a dor e o silêncio. No Brasil, a situação começa a mudar, mas a passos muitos lentos para um crime tão hediondo e frequente. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2001 diz que 70% das agressões ocorrem dentro de casa, praticadas pelo marido, companheiro ou parente. O Mapa da Violência no Brasil 2011, organizado por Julio Jacobo Waiselfisz, informa que, entre 1998 e 2008, 41.968 mil mulheres foram assassinadas no país, o equivalente a 4,2 vítimas para cada 100 mil habitantes.
“A violência doméstica agora é mais pública, e mesmo que não se fale suficientemente sobre o assunto, pelo menos agora é possível falar”, reconhece Clara Charf, 85 anos, presidenta da Associação Mulheres pela Paz, organização não-governamental que tem como base a Resolução 1325 adotada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2000. A associação trabalha com um conceito de paz ampliado que não se restringe aos conflitos armados, mas remete às ações do cotidiano, na guerra do dia a dia que aparece na discriminação de classe, gênero, raça e sexo; na violência contra a mulher; nas desigualdades, na falta de moradia, de atendimento à saúde, de emprego, de estudo, de oportunidades sociais, econômicas, políticas, culturais e institucionais.
Viúva do guerrilheiro e político Carlos Marighella, fundador da Aliança Libertadora Nacional assassinado em 1969, Clara rompeu os estigmas muito cedo, incentivada pela mãe, que, enquanto cozinhava no seu fogão a carvão, empurrava a menina a estudar. Foi aeromoça (porque não podia ser piloto), bancária e é ativista social. “No tempo em que comecei a militar ninguém falava de violência contra a mulher. Se alguém sabia que a vizinha tinha apanhado, diziam: “Não se meta, isso é coisa de marido e mulher”.
Hoje se sabe que é preciso agir. Há duas formas de romper o ciclo da violência contra mulheres: educação e políticas públicas. No dia 2 de junho, a ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para Mulheres do governo federal, apresentou à Comissão Especial do Plano Nacional de Educação uma proposta para que os conteúdos relativos às relações de gênero, étnico-raciais e de orientação sexual estejam presentes nas diretrizes curriculares dos estudantes de todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, na formação inicial e continuada de todos os profissionais da Educação, e nos critérios de seleção de livros didáticos. A ministra reiterou a necessidade de implementar atividades de educação que discutam as interfaces entre a violência doméstica contra as mulheres e a violência contra crianças, jovens e adolescentes. As propostas dependem de parecer do relator da Comissão e de votação posterior.
Mas se sabe que a educação sobre o tema ultrapassa os muros e livros dos colégios. “A disputa violenta e a falta de diálogo fazem parte do convívio em vários níveis. Não adianta mais centrar estratégias apenas nas vítimas de violência. Se você não dialogar com toda a sociedade e desvelar que as relações naturalizadas de violência reforçam uma perda de valores, vai continuar falando sozinho”, argumenta Telia Negrão, coordenadora da ONG Coletivo Feminino Plural, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos na América Latina, e coordenadora-geral da Campanha Ponto Final no Brasil. Criada em 2008, a campanha integra um projeto internacional de intervenção e prevenção primária da violência contra mulheres no Brasil, Guatemala, Haiti e Bolívia – países onde há altos índices de violação.
“Para desconstruir uma construção cultural de milênios, tem que fazer políticas públicas preventivas, implementar leis, mas o x da questão é a educação”, concorda Vera Vieira, diretora-executiva da Associação Mulheres pela Paz, ela própria vítima de violência doméstica em seu primeiro casamento. Vera e Clara estiveram em Porto Alegre em junho deste ano para discutir e começar a construir com lideranças comunitárias, representantes de ONGs e governamentais uma nova metodologia para trabalhar com homens e mulheres a questão da violência doméstica interconectada ao conceito ampliado de paz da Resolução 1325 da ONU. As oficinas vão se repetir na Bahia, no Acre e em São Paulo. Paralelamente, elas divulgam a exposição 1000 Mulheres pela Paz ao Redor do Mundo.
Políticas públicas são insuficientes
O surgimento das primeiras delegacias para atender exclusivamente mulheres foi um marco há 25 anos, assim como a criação da Lei Maria da Penha, em 2006. Mas as carências são enormes. No dia 17 de junho, Carmen Hein de Campos, coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, desabafou em um artigo de opinião publicado em um jornal da capital: “A situação da Vara de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre – única no estado – está insustentável. Possui apenas um juiz titular, uma juíza auxiliar, um único cartório e quase 21 mil processos. A situação beira o realismo absurdo”. Segundo Carmen, há mais de um ano os movimentos de mulheres solicitam providências ao Tribunal de Justiça e a resposta tem sido burocrática. Ela aponta uma saída: sem onerar o orçamento, poderiam transformar Varas de família vagas em Juizados de violência doméstica.
Existem outros entraves. Há no máximo 600 delegacias de mulheres para atender os mais de 5 mil municípios, alerta Telia Negrão, da Rede Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos. As delegadas se queixam de que não têm para onde encaminhar uma pessoa em situação de risco se ela fizer uma queixa depois das 18h. Deveria ser criado algum mecanismo complementar, de forma que quem for agredida possa estar protegida pela polícia no período de maior risco até que o dia amanheça e ela receba a atenção de especialistas, observa Telia. “Nem sempre ela deseja e precisa ir para uma casa-abrigo, poderia ir para casa de amigos e parentes”, diz.
Os Centros de Referência, que deveriam ser a porta de entrada para que as mulheres saiam da condição de violência e vulnerabilidade, são escassos. “Temos um único Centro de Referência Estadual no Rio Grande do Sul, e ele sofreu uma desarticulação nos últimos anos. Em 2010 atendeu 200 pessoas, sendo que por dia passam em torno de 50 a 60 mulheres na Delegacia da Mulher”, denuncia Telia.
Diálogo e apoio ajudam a romper o ciclo violento
Desde 2006, o professor de Artes Aloizio Pedersen, 58 anos e 32 de Magistério, une a sensibilidade e o bom senso – seu e do diretor da Escola Estadual de Ensino Médio Padre Reus, em Porto Alegre – para lidar com a depredação dos prédios e a agressividade dos alunos. O projeto começou tímido, trocando a suspensão do agressor pela escuta mais atenta aos gritos de socorro contidos em atos violentos. Com atividades de teatro, artes, música, Pedersen reverteu o escore do jogo e virou uma referência no combate à violência, seja em escolas particulares ou públicas. “A escola está justamente aí, para contrastar com a sociedade. Se lá fora há preconceito, aqui é preciso aceitar as diferenças”, ensinou. O ponto de mudança foi e continua sendo a conversa, associada a atividades criativas, permanentes, em todas as disciplinas. Ela possibilita trazer à tona problemas graves, como o abuso sexual, o racismo, o uso de drogas. A questão de gênero costura, de forma invisível, estes temas.
Na busca para diminuir a violência de todos os tipos, integrantes da Rede Feminista de Saúde firmaram parcerias com a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre e com a Secretaria Estadual de Educação para capacitar educadores e educadoras e potencializar os programas já existentes, com módulos de questionamento a partir das metodologias feministas e de Paulo Freire. Geralmente, a violência costuma ser associada às classes econômicas menos favorecidas. Quanto mais carente a mulher, mais discriminações: por ser negra, pobre, portadora do vírus HIV, ou ter algum tipo de deficiência. Menos visíveis são as violências sofridas pelas meninas e meninos com maior poder aquisitivo, expostos ao hiperincentivo do consumo e aos padrões estéticos de beleza que levam a doenças como bulimia e anorexia.
Nos cursos de capacitação realizados em 2010 em dez escolas municipais e estaduais no Campo da Tuca, no bairro Partenon, em Porto Alegre, Renata Teixeira Jardim, da ONG Coletivo Feminino Plural, constatou que é mais fácil interromper um processo violento entre adolescentes, que se apropriam das noções repassadas nas oficinas e aproveitam os espaços de discussão para perguntar, expor preconceitos e esclarecer o tema. Entre as pessoas com mais idade, a tendência é negar a violência. Somente depois de muita conversa, quando adquirem confiança, relatam alguma situação.
À medida que os profissionais de Educação são capacitados para tratarem do tema em sala de aula, as violências se revelam. E o que fazer quando surgirem os casos de jovens pedindo ajuda se não existir uma rede de serviço adequada para dar encaminhamento? Em alguns casos a saída pode ser a Justiça Restaurativa, que já vem sendo adotada em algumas escolas do país. Neste processo, as partes envolvidas discutem as causas e consequências da violência para chegar a um acordo dentro do próprio ambiente escolar.
Mudança começa em casa e na escola
Nas escolas privadas, a discussão sobre violência de gênero não é tratada de forma específica, geralmente aparece incluída em outros temas, como sexualidade, racismo e respeito ao próximo. E a violência, em geral, está associada a um termo novo para um problema antigo, que é o bullying , guardachuva genérico para os vários tipos de agressões e preconceito na escola. No colégio La Salle São João, em Porto Alegre, por exemplo, a orientadora educacional Fabiana Schumacher D’Ávila explica que há um trabalho sistemático e efetivo sobre bullying. “Hoje é comum, quando um casal vai colocar seu filho na escola, perguntar: e como está o bullying aqui?”, lembra Fabiana. “Não deixamos as coisas se agravarem”, responde. Primeiro, conversam com a criança ou jovem; depois chamam a família e, se for preciso, suspensão. Há jornadas programadas com todos os estudantes para reflexão sobre respeito e valorização da vida, com músicas, dinâmicas e palestras, informa.
O mesmo ocorre na Rede Marista, onde a sexualidade e outros temas afins são tratados de forma transversal e interdisciplinar. A orientadora educacional, integrante do Conselho de Educação da Rede no Rio Grande do Sul, Viviane Truda, conta que a cultura de paz, respeito e solidariedade faz parte do currículo. Está presente nos momentos de formação dos professores e se trabalha de forma preventiva.
Por isso, quando a socióloga e pesquisadora Miriam Abramovay, coordenadora da Área de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino- Americana de Ciências Sociais (Flacso) no Brasil, foi contatada, pela primeira vez em 12 anos de estudo sobre o tema, por uma rede privada que tem escolas em todo o país para fazer um diagnóstico para identificar situações de violência no seu ambiente escolar, foi uma surpresa. “Sabemos quem é o primeiro lugar na qualidade de ensino, mas não temos ideia do clima escolar”, observa Miriam. A entidade vai iniciar também um projeto de Convivência nas Escolas em conjunto com as prefeituras de Esteio, São Leopoldo e Sapucaia do Sul. O projeto consiste em fazer o diagnóstico, instrumentalizar os professores e ajudá-los a implementar projetos de mediação, por exemplo, introduzindo a cultura juvenil, como o hip hop, para discutir os temas.
Sugestões para abordar o tema em sala de aula:
– mostrar vídeos que identifiquem a violência em suas várias formas. Depois, dividir a turma em grupos e propor que eles construam suas próprias histórias. Geralmente surgem aí temas que trazem tópicos de discussão;
− pedir que os jovens digam qual o papel do homem e da mulher na sociedade, e depois de anotar todas as ideias perguntar novamente o que é exclusivo e o que é papel dos dois sexos, ressaltando a diferença entre característica biológica e aspectos comportamentais;
− aproveitar as datas do comércio – dia dos namorados, por exemplo – para discutir o que é ficar, o que é namorar, e como algumas atitudes consideradas “normais e carinhosas” podem manifestar preconceitos e machismo;
− no site www.promundo.org.br há mais sugestões de material didático.
Sem papo chato, as discussões se tornam mais produtivas
Foto: Igor Sperotto
O aprendizado da violência de gênero passa pelas relações de namoro que se iniciam em torno dos 13 anos de idade. Se um menino força um beijo, ou manifesta que não quer que a sua namorada fique de conversa com outro rapaz ou menina, ou que ela vista determinada roupa, já se vê indícios de mecanismos de controle que nem sempre são percebidos. “São sinais de violência”, alerta o psicólogo Marcos Nascimento, doutorando em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele trabalhou durante 11 anos no Instituto Promundo, ONG do Rio de Janeiro que defende a promoção de igualdade de gênero.
“Quando a gente fala sobre sexualidade é importantíssimo falar sobre violência. Não estou falando só de estupro, mas de conflitos que acontecem no cotidiano e que podem desencadear uma situação violenta. Por exemplo: a negociação do uso do preservativo − forçar outra pessoa a ter relação sexual com você sem proteção, porque você quer e está visando o seu próprio prazer”, ressalta. O trabalho de Nascimento, que integra a campanha Laço Branco criada para sensibilizar e mobilizar os homens pelo fim da violência contra as mulheres, consiste em discutir o que é violência, como é ser homem, o que é ser homem ou ser mulher, o que significa uma relação de namoro e o poder que se exerce sobre o outro. De maneira lúdica, com vídeos, histórias em quadrinhos, radionovelas, peças de teatro e campanhas feitas dentro da escola, ajuda a identificar as várias agressões e como impactam a vida de cada um.
A Lei Maria da Penha
Sancionada em 7 de agosto de 2006 e em vigor desde 22 de setembro do mesmo ano, a Lei 11.340 alterou o Código Penal, possibilitando que os agressores sejam presos em flagrante ou, em caso de risco físico ou psicológico às vítimas, tenham a prisão preventiva decretada. Não podem mais ser punidos com penas alternativas. A lei aumenta o tempo de detenção e estabelece outras medidas de proteção para a mulher que sofre risco de vida, como o afastamento do agressor. O nome da lei lembra o caso de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de assassinato pelo então marido, o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveiros, em 1983.
Dados que refletem a brutalidade:
− em média, uma em cada três mulheres é agredida ou forçada a ter relações sexuais no transcorrer da vida;
− levantamentos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento indicam que um em cada cinco dias de falta ao trabalho no mundo é causado pela violência sofrida por mulheres dentro de suas casas.