GERAL

Comida no lixo é dinheiro posto fora

A cultura do desperdício faz com que milhões de brasileiros desperdicem diariamente toneladas de alimentos que fariam a felicidade de famílias menos privilegiadas
Por Clóvis Victória / Publicado em 5 de maio de 2011

Especial

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

A comida que chega todos os dias ao prato do pedreiro Charles de Britto, 22 anos, na Sopa do Pobre, bairro Menino Deus, em Porto Alegre, escapou a uma lógica da modernidade. Paradoxalmente, a grande oferta de comida produz uma cegueira traduzida em uma cultura perversa: o esbanjamento se incrustou na alma das pessoas e provoca uma crise de consequências sociais perigosas. A cultura do desperdício de alimentos abastece a fome e fomenta uma desigualdade calórica entre aqueles que desperdiçam e os que têm dificuldades de fazer mais de duas refeições por dia. Dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) indicam uma discrepância ainda mais crítica.

No mundo, 30% da população (cerca de 1,8 bilhão) ainda passa fome ante um desperdício calculado em 40% de alimentos no processo que envolve desde a colheita até depois do almoço quando se juntam os restos de comida para levar ao lixo. Apenas o que se desperdiça seria suficiente para resolver o problema da fome no mundo. No Brasil, não há estudos mais detalhados e atualizados sobre impacto de lixo alimentar na economia do país, mas a estimativa de alguns estudiosos e agentes da área é de que a situação seja pior.

Charles frequenta a Sociedade Espírita Ramiro D’Ávila, mas não costuma ocupar assentos no andar de cima. Não é para receber um passe ou algum conforto espiritual que o pedreiro desempregado entra pela porta da casa antiga no número 522 da avenida Getúlio Vargas. Na verdade, ele nem conhece o andar de cima onde são prestados os atendimentos espirituais. Charles é um dos cerca de 150 frequentadores diários de uma entidade, fundada em 1932, pelo militar Gedeon Desessard Leite, inspirado na distribuição de sopa em frente a um hotel em que se hospedara em Lisboa, a capital portuguesa, dez anos antes.

De segunda a sábado, religiosamente, das 10h às 11h30min, a não ser em feriados, cerca de dez funcionários ou frequentadores da Sociedade Espírita dão alívio ao sofrimento do estômago de operários, moradores de rua, pedreiros, estudantes e de quem aparecer atrás do calor de um ou mais generosos pratos de sopa. A entidade sobrevive da doação de empresas ou de pessoas, mas não é raro ficar com a despensa a perigo. A auxiliar de cozinha Eliane Borges, 38 anos, precisa despejar todos os dias, nas panelas, arroz, massa, batata, cenoura, couve e carnes suficientes para produzir cerca de 30 quilos de comida.

Trata-se de uma exceção à regra. A Sopa do Pobre escapou à lógica do desperdício de alimentos que ajuda a produzir um passivo ambiental capaz de entulhar a área destinada aos resíduos domésticos da Capital gaúcha, em Minas do Leão, à rotina de 150 toneladas por dia. É o cálculo que o engenheiro químico Eduardo Fleck, chefe da Equipe de Resíduos Especiais do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), faz a partir de um estudo amostral realizado nos últimos dois anos.

Charles de Britto, 22 anos, na Sopa do Pobre

Foto: Igor Sperotto

Charles de Britto, 22 anos, na Sopa do Pobre

Foto: Igor Sperotto

O estudo não determinou o quanto de comida se joga fora em Porto Alegre, mas a proporção de matéria orgânica que cada caminhão de lixo entorna na Estação de Transbordo do bairro Lomba do Pinheiro. Por amostragem, o estudo demonstrou que, em média, 57% do lixo porto-alegrense é formado por matéria orgânica. Tomando o lixo total produzido por dia, cerca de 1,4 milhão de toneladas, tem-se uma carga aproximada de 1 mil toneladas de lixo orgânico. Fleck calcula, a partir do que chama de “chute calibrado”, que a comida esteja presente nesta fração – formada também por resíduos de banheiro (papel higiênico) e vegetais (corte de árvores e de grama) – na proporção de 30%. Seria o mesmo que dizer que, de todo o lixo produzido, cerca de 15%, para ficarmos numa estimativa otimista, são restos de comida.

É demais. O engenheiro do DMLU concorda que os números assustam e são fruto de uma cultura que não valoriza o reaproveitamento. Cada um dos 1.409.939 porto-alegrenses, segundo o Censo Demográfico de 2010, produz um pouco menos de um quilo de lixo por dia. Cerca de 106 gramas disso tudo é comida. Parece pouco, mas pense em um mês e um ano. Pense em dez anos. Todo mês um morador da Capital manda 3,2 quilos de comida para o lixo ou 38,2 quilos por ano. “Isso desobedece ao primeiro princípio da reciclagem que é o da não geração ou redução”, diz Fleck.

Especial

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Desperdício em Porto Alegre

150 a 180 toneladas diárias de comida são jogadas no lixo a cada dia por habitante. Esse montante corresponde à fração de 15 a 18% dos cerca de 1,4 milhão de toneladas de lixo produzido em Porto Alegre. É o mesmo que 30% do lixo orgânico (cerca de 570 toneladas/dia) mandado para os lixões. 106 gramas de comida/ dia/habitante são desperdiçadas em Porto Alegre. Isso representa desperdício de 3,2 quilos a cada mês e 38,2 por ano por morador.

Dinheiro no lixo
Feijão preto (R$ 3 o quilo): R$ 114, 48 por habitante/ano
Total: R$ 161,41 milhões
Arroz branco Tipo I (R$ 2 o quilo): R$ 76,32 por habitante/ano
Total: R$ 107,61 milhões
Costela com osso (R$ 14,90 o quilo): R$ 568 por habitante/ano
Total: R$ 800,80 milhões

Quanto pesa
106 gramas de comida/dia/habitante
3,2 quilos de comida/mês/habitante
38,2 quilos de comida/ano/habitante

Contra a fome
Os cerca de 38,2 quilos de comida que cada porto-alegrense desperdiça por ano dariam para alimentar adequadamente 22 pessoas em um dia. Apenas com o desperdício na Capital gaúcha, seria possível, em um único dia, garantir dieta ideal com 2 mil quilocalorias de 90 mil pessoas.

*Fonte: DMLU/Porto Alegre

Desde 1992, o Projeto de Reaproveitamento de Resíduos Orgânicos via suinocultura, vinculado ao DMLU, busca reconverter parte da biomassa (energia acumulada do sol na comida) desperdiçada em ração animal. Em dez anos, a coleta diária em alguns restaurantes de Porto Alegre e o transporte até a Zona Sul para alimentar porcos passou de 7,5 para 10 toneladas diárias. Em abril deste ano, o projeto registra o cadastro de 75 estabelecimentos públicos ou privados que produzem grandes quantidades de refeições. Não fosse essa iniciativa, outras 3.650 toneladas seriam acrescentadas aos lixões por ano. Convertida em ração animal, essa comida é levada até a Zona Sul e alimenta 1,3 mil suínos.

O preço a pagar pela reciclagem do alimento não é baixo. Gasta-se muito combustível para coletar os resíduos alimentares e levá-los até os criadores. O mesmo pode-se dizer do que vai para a Estação de Transbordo de Porto Alegre, na Lomba do Pinheiro. Sem lugar para destinar lixo, o jeito encontrado é mandar os rejeitos para uma área privada em Minas do Leão, cidade distante cerca de 100 quilômetros. Resultado: há custo de transporte e armazenagem. São inúmeras viagens diárias, teoricamente suficientes para transportar todos os 1,4 milhão de toneladas produzidas, e que lançam gases de efeito estufa na atmosfera.

O fato é que não levamos em consideração todo o custo ambiental envolvido na produção de comida. Gasta-se muito para transportar alimento de um lugar para outro e para colher. Se tomássemos o preço de R$ 3 do quilo do feijão como referência, teríamos que, a cada ano, um único habitante estaria fazendo o mesmo que jogar no lixo R$ 114,48. No caso do arroz e da costela, os valores desperdiçados em dinheiro em um ano seriam, aproximadamente, R$ 76,00 e 568,00, respectivamente. Daria para fazer 1,4 milhão de churrascos todo o ano (ver tabela).

O mais duro é saber que uma entidade que distribui comida de graça, como a Sopa do Pobre, depende de doações que muitas vezes demoram a chegar. Precisa contar com a generosidade e compensar a cegueira para um problema sério. Os 150 mil quilos de comida que viram entulho nos lixões em apenas um dia seriam suficientes para garantir a refeição de 150 pessoas na Sopa dos Pobres por quase 14 anos.

Atrás da generosidade alheia

Ailson Rodrigues, aos 40 anos, já reuniu uma série de aventuras que inclui morar na rua desde 2003. Guardador de carros na rua da República, em Porto Alegre, seu talento para contar a própria história e a observação apurada do comportamento humano ajudaram- lhe a mapear a solidariedade dos restaurantes. Na sua própria avaliação, falta vontade e organização do setor de transformação de alimentos para reconverter em calorias ou reduzir o impacto da sobra nos pratos dos clientes.

Ailson, pai de três filhos, um deles estudante de Engenharia em Florianópolis, onde ele viveu, já correu praticamente quase todo o litoral brasileiro. Aprendeu na juventude o ofício de laminador de pranchas de surfe, o que lhe valeu ingresso para viajar de Porto Alegre ao Maranhão por praticamente todas as praias. É frequentador assíduo da Sopa do Pobre, mas desenvolveu uma rede informal de doadores de comida em restaurantes, assim como algumas estratégias.

Nunca insiste nos pedidos e jamais aparece todos os dias no mesmo lugar para filar uma boia. “Vai muita comida fora. Demais. E a maioria dos restaurantes realmente não dá. Alguns, poucos, fazem uma espécie de horário para buscar comida. E tem que levar um recipiente”, conta.

O guardador de carros diz conhecer dois restaurantes que costumam fazer doações diárias após as 15h, horário- chave para buscar comida, quando já não há mais clientes. Um deles fica nas proximidades do Centro e o outro, na Zona Norte, e conta um caso de sensibilidade. Num xis da Zona Leste, um homem que trabalha no caixa costuma arrecadar restos nas mesas e repassá-los a quem chega para pedir em kits gentilmente colocados em bolsas plásticas. Resolve dois problemas: a refeição de um contingente considerável de habitués e afasta a presença do pedinte em horário de almoço.

A nutricionista Signorá Peres Konrad, professora do curso de Nutrição da Unisinos, montou para esta reportagem uma dieta com base nas calorias necessárias a uma alimentação saudável. Segundo ela, a cultura da abundância legou-nos uma discrepância de ingesta. Há aqueles que dispõem de uma dieta insuficiente, abaixo de 2 mil quilocalorias e aqueles que comem em excesso, bem acima. Por exemplo, seguindo as recomendações do Guia Alimentar Brasileiro, Signorá informa que a necessidade de carne por pessoa, desde que observadas a variabilidade e a ingesta adequada de 50 nutrientes necessários para a manutenção do organismo humano, seria de 85 gramas para uma pessoa entre 20 e 60 anos.

Convertendo em gramas, a dieta de 2 mil calorias exigiria que cada pessoa (adulto) comesse cerca de 1,7 quilo de comida por dia, distribuídas em seis refeições de pouco mais de 300 gramas cada. Os dois pratos de sopa e o pão francês de 50 gramas que Ailson costuma comer na Sopa do Pobre garantem-lhe uma dieta de 400 gramas, aproximadamente 500 quilocalorias, 25% da dieta adequada. As outras 1,5 mil calorias dependem da boa vontade dos outros.

Quando o desperdício parece normal

Sérgio Schneider, sociólogo

Foto: Igor Sperotto

Sérgio Schneider, sociólogo

Foto: Igor Sperotto

Professor do departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador nas áreas de Desenvolvimento Rural e Sociologia da Alimentação, Sergio Schneider, 43 anos, diz que o desperdício de comida se naturalizou na sociedade a partir do desenvolvimento de formas de conservação e estocagem mais eficiente. Isso quer dizer que deixamos de perceber o tamanho do desperdício que jogar comida fora gera.

Extra Classe – Por que se desperdiça tanta comida?
Sergio Schneider – A literatura em Sociologia tem refletido sobre a existência de pelo menos três fatores envolvidos. O primeiro é uma cultura da abundância que tem a ver com o que se chama de sociedade da abundância. As sociedades primitivas não tinham o hábito de estocar comida e por isto todo dia tinham de caçar e coletar. Na sociedade da abundância, as condições de conservação e estocagem de comida se multiplicaram, o que gerou a sensação de que há excedentes em abundância. A distorção ocorre porque a sensação de abundância gera o desperdício e cria-se uma “cultura do esbanjamento”, que é o que faz parecer normal o desperdício de comida que vemos hoje. O segundo problema é que o desperdício se tornou mais grave à medida que a produção disponível aumentou muito, o que ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, com a modernização da agricultura. E a terceira razão é que temos muita ineficiência nos transportes, armazenagem, estocagem e preparação de comida.

EC – Por quê?
Schneider – Na verdade, a sociedade da abundância não é econômica e culturalmente preparada para ser poupadora. Ela é perdulária porque acredita na prodigalidade, que nunca vai acabar a comida e que não é preciso poupar. As perdas ocorrem em todo o processo. Se perde desde a colheita, na estocagem, e se perde na hora do transporte. Principalmente no transporte. O sistema agroalimentar moderno é perdulário. Por haver abundância, ele não se preocupa com as perdas. Elas são internalizadas no sistema e são acrescidas aos custos.

EC – Como se pode mudar essa cultura do desperdício?
Schneider – Trabalhamos com a ideia de que é necessário fazer a relocalização do sistema agroalimentar, revalorizar a produção e o consumo local de comida. Não se discute só o consumo sustentável e o consumo cidadão, mas o consumo local. Por exemplo, cidades como Porto Alegre poderiam consumir mais alimentos de sua região periurbana. Aquela ideia de cinturão verde do passado poderia ser recuperada. Hoje em dia ninguém mais fala disso, porque criou-se a ideia de que, com os modernos transportes, pode-se produzir em qualquer lugar, mas está na hora de incluir o custo da emissão de gases de efeito estufa nesta conta. A compra de produtos em mercados mais próximos poderia estimular os próprios agricultores. Esse modelo poderia ser uma excelente saída para os problemas de comercialização dos assentamentos de reforma agrária, por exemplo. Eles sabem produzir, só que não têm mercado ou estão longe destes.

EC – Como esta cultura do desperdício se manifesta em nossa rotina e toma conta do nosso imaginário?
Schneider – Hoje em dia os alimentos aparecem para a sociedade, sobretudo para o consumidor urbano, como se fossem produzidos pela agroindústria. As crianças vão ao supermercado e acham que o leite dá na caixinha. E eles associam a pizza, o leite à indústria e à sua marca, não ao agricultor que produziu a matéria-prima. Aqui ocorre uma ruptura de identidade entre quem produz e quem tem a marca, a referência, que passa a ser a indústria alimentar. Hoje, boa parte dos agricultores está ligada às indústrias agroalimentares, grandes transnacionais que controlam o preço e os processos de produção. A indústria de alimentos utiliza muito bem o marketing para ganhar o imaginário das pessoas. A grande questão que isto coloca para ser pensada é que tanto os produtores de alimentos quanto os consumidores precisam se conscientizar de que têm uma contribuição a dar para a sustentabilidade, e isto começa por suas práticas cotidianas. Afinal, como seres biológicos, somos o que comemos.

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