Brasil vive processo de violação massiva de direitos
Foto: Ednubia Ghisi/ Fotos Públicas
No início da tarde de 20 de fevereiro, um sábado, recebi uma mensagem da Morgana Alves pelo WhatsApp. Morgana Alves é transsexual, mãe de santo e dirige o Centro Africano Santa Luzia, localizado no Jardim Cascata, uma comunidade pobre do bairro Glória, em Porto Alegre. Era um pedido de socorro urgente. Em torno de 15 famílias da comunidade estavam passando fome, sem nada para comer. O Centro Santa Luzia já ajuda, contou Morgana, cerca de 80 famílias, com alimentação e atividades educacionais e recreativas para as crianças, além de abrigar meninas e mulheres em situação de rua. Mas o número de famílias em situação de miséria é extrema, relatou. Não para de crescer. Nas mensagens enviadas pelo Whats, ela resumiu assim a situação na sua comunidade:
“São pessoas que não têm o que comer, o que beber, não têm nada. Estamos nos virando do jeito que dá. As pessoas estão abandonadas, em estado de miséria, passando muita fome. Há crianças que estão tomando apenas chá de manhã, de tarde e de noite. Nós estamos pedindo socorro para ajudar a comunidade”.
A situação descrita por Morgana Alves é uma realidade vivida hoje por incontáveis comunidades de periferia por todo o Brasil. Ao longo dos últimos meses, ela foi ficando cada vez visível nas sinaleiras, nas calçadas e nas esquinas de supermercados, onde as pessoas não pedem mais dinheiro, mas um quilo de arroz, de feijão, um litro de leite ou algum outro alimento. O auxílio emergencial, implantado a duras penas pelo governo federal em 2020, ajudou a mitigar um pouco essa realidade, porém o seu término, no final do ano, agravou dramaticamente a situação de milhares de famílias. O Brasil voltou ao mapa da fome.
Diante de um governo negacionista em relação à pandemia e com uma política econômica que despreza a vida das pessoas, a solidariedade tornou-se um fator de sobrevivência para milhões de brasileiros. No decorrer de 2020, movimentos populares do campo e da cidade, junto com sindicatos (o Sinpro/RS, entre eles), articularam um processo contínuo de doações de alimentos, material de higiene para prevenção contra o coronavírus e outros produtos para essas famílias. Um movimento que, seguramente, prosseguirá em 2021, dado o agravamento da situação sanitária e social no país. Mas não se trata apenas da volta da fome, o que já seria dramático o suficiente. Está em curso no país, desde o início do governo Bolsonaro, um processo massivo de violação de direitos em todas as dimensões: direitos humanos, sociais, trabalhistas, ambientais e culturais. Na verdade, é a própria ideia de direito que está sob ataque.
Araújo e Damares: capítulo vergonhoso
No dia 23 de fevereiro, um grupo de 62 organizações da sociedade civil brasileira divulgou uma nota denunciando o pronunciamento do governo brasileiro, por meio do chanceler Ernesto Araújo e da ministra da Família e Direitos Humanos, Damares Alves, na abertura do 46º Período de sessões do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH/ONU). “A atuação internacional do Brasil no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas completou mais um capítulo vergonhoso”, afirmaram as entidades que contestaram as afirmações de Araújo e Damares sobre como o governo brasileiro está enfrentando a pandemia no Brasil.
“Diferente do que afirmaram perante a comunidade internacional, o Brasil não está fazendo o melhor para enfrentar a pandemia da covid-19. O governo brasileiro é tido como o que tem a pior gestão da pandemia. Negando a gravidade da pandemia, o governo deixou de adotar medidas para proteger sua população e impedir a propagação do vírus. Com cerca de 2% da população mundial, o Brasil acumula 10% das mortes por covid-19 no mundo”.
As entidades apontam ainda o racismo estrutural que acompanha o processo de vacinação no Brasil, que sequer tem vacinado todos os povos indígenas, quilombolas, ciganos e mais 25 outros grupos e onde a população negra (a qual representa mais da metade da população do país) é a que menos teve acesso à vacina até aqui. Diante desse cenário, pedem a nações do mundo que responsabilizem sua atuação por patrocinar “graves e persistentes violações dos direitos humanos”.
A necessidade de uma campanha internacional massiva de denúncia contra o governo brasileiro é cada vez mais urgente e justificada. Não é mais possível naturalizar ou relativizar o que está acontecendo no nosso país. Estamos sob um governo que é inimigo dos direitos, da Ciência e da vida.