Diferentes rumos da luta sindical:Brasil X Argentina
Foto: Acervo pessoal/divulgação
Professor do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Davisson Cangussu de Souza concluiu o estudo para sua tese de doutorado que resultou no livro Sindicalismo e desempregados: um estudo comparativo das centrais sindicais do Brasil e Argentina (1990-2002), lançado pela Editora Fino Traço/Fapesp (382 páginas). Segundo o estudo, os índices de desemprego nos dois países estudados alcançaram níveis elevados no final dos anos 1990 e início da década de 2000, superando os 12% no Brasil e na Argentina, chegando lá a mais de 20%, em seu pior momento. Na época, no entanto, a reação a esse quadro social foi bem diferente nos dois países, assim como também foi bastante diferenciado o comportamento das principais centrais sindicais em ambos: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical, no Brasil, e a Confederación General del Trabajo de la República Argentina (CGT) e a Central de Trabajadores de la Argentina (CTA), na Argentina. Cangussu analisa a gênese do sindicalismo nos dois países e os alinhamentos políticos das principais centrais em ambos os casos.
Extra Classe – Qual a principal diferença do sindicalismo na Argentina e no Brasil?
Davisson Cangussu de Souza – Há uma linha interpretativa de dois autores que tomo como ponto de partida: Miguel Murmis e Juan Carlos Portantiero, bem pertinente como um primeiro momento de aproximação a esse tema. Eles usam uma metáfora para explicar essa diferença. Dizem que na Argentina a estrutura sindical surgiu de baixo para cima e que no Brasil foi de cima para baixo. Mas por que ele usa essa metáfora? No caso do Brasil, o “de cima para abaixo” quer dizer que a estrutura sindical foi consolidada pelo Estado (nos anos 1930 e depois em 1943 com CLT) sem lutas prévias da classe trabalhadora, enquanto na Argentina (nos anos 1950), no momento em que a estrutura sindical é edificada. Ou seja, quando o movimento sindical argentino se consolida já tinha uma força muito grande.
EC – Mas não é um tanto simplista e exagerada?
Cangussu – Sim. Claro que essa metáfora se dá num contexto comparativo. Seria um absurdo dizer que não houve lutas no Brasil antes dos anos 1930. Comparativamente, a Argentina já tinha uma força muito grande no seu movimento dos trabalhadores, quando a estrutura sindical foi erguida. Então, isso marca diferenças muito importantes. Há duas, pelo menos, que se consolidaram e que até hoje é difícil superar. A primeira delas é a organização no local de trabalho. Na Argentina, até hoje, por exemplo, a legislação prevê que empresas de até 50 trabalhadores tem direito a um delegado sindical eleito pelos seus pares e com estabilidade no emprego; e a partir de cem, dois delegados; e depois disso, um para cada cem. Eu analiso os dados do número de delegados sindicais nos dois países e a diferença é brutal. Outro aspecto é a possibilidade de criação de uma entidade representativa que seja nacional. No caso da Argentina, a Confederacion General del Trabajo (CGT) tem mais de 80 anos de existência. No caso brasileiro, a Central mais antiga em atividade é a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que acabou de completar 30 anos. Isso marca uma diferença muito grande. Mesmo assim, aqui no Brasil o sindicalismo nas centrais sempre foi muito fragmentado e intermitente. Na Argentina existe uma história muito presente de um sindicalismo organizado nacionalmente. Um exemplo: aqui no Brasil, os sindicatos dos metalúrgicos são municipais, e na Argentina, você tem a União Operária dos Metalúrgicos, que é nacional.
Foto: Divulgação / CUT
EC – É correto dizer que o próprio perfil do sindicalismo brasileiro se modifica com o surgimento do Partido dos Trabalhadores e as greves dos metalúrgicos no final dos anos 1970?
Cangussu – Sim. Em uma análise macro-histórica, como a que eu tentei fazer, por ser uma primeira aproximação ao tema, não previ muitas vezes as descontuinuidades e as contradições que existem dentro do movimento histórico. Então, é correto dizer que o surgimento da CUT, e antes dela a explosão das grandes greves do ABC paulista, marcaram um ponto de inflexão. Trata-se de um momento em que as contradições que já existiam antes do golpe de 1964 novamente se manifestam. Quando a gente faz um estudo comparativo, o que acontece é que as diferenças entre os dois contextos, no meu caso sindicalismo no Brasil e Argentina, é que elas são exageradas para efeito da comparação. Mas concordo com a pergunta, pois o surgimento da CUT, ligada ao PT, marca uma inflexão e aponta uma contradição no sindicalismo dos dois países. Em síntese, a grande diferença entre o sindicalismo brasileiro e argentino é a maior presença da organização sindical no local de trabalho como estrutura estável no caso argentino e um sindicalismo mais unificado. No caso brasileiro é mais fragmentado, mais municipal, que tem, por exemplo, como decorrência disso uma dificuldade muito grande de convocar greves gerais, uma prática que atravessa a história argentina há pelo menos cem anos. No Brasil, pouquíssimas vezes nós conseguimos convocar uma greve nacional promovida pelas centrais.
“Dizem que na Argentina a estrutura sindical surgiu de baixo para cima e que no Brasil foi de cima para baixo. Mas por que ele usa essa metáfora? No caso do Brasil, o “de cima para abaixo” quer dizer que a estrutura sindical foi consolidada pelo Estado (nos anos 1930 e depois em 1943 com CLT) sem lutas prévias da classe trabalhadora, enquanto na Argentina (nos anos 1950), no momento em que a estrutura sindical é edificada. Ou seja, quando o movimento sindical argentino se consolida já tinha uma força muito grande”
EC – Como se dá o alinhamento político-sindical das centrais nos dois países?
Cangussu – O sindicalismo argentino tem um alinhamento político clássico e único com o peronismo, e no brasileiro é diversificado. No próprio estatuto, a CGT argentina se define como peronista.
EC – Mas isso não encontra paralelo com o período getulista?
Cangussu – Eu diria que o sindicalismo argentino tem uma semelhança com o caso brasileiro no seu surgimento, mas com o advento do peronismo e a chegada de Perón à presidência se consolida um dos setores do sindicalismo, o mais reformista, e é
esse que dá a tônica das lutas. Mas o sindicalismo que se consolida tem um caráter nacional populista, da CGT, vinculado ao Partido Justicialista (PJ), de Perón. Houve também outras correntes, que também existiam no caso brasileiro, esquerdistas e anarquistas. Inclusive, no Brasil, a inclinação mais à esquerda chega a ser mais forte do que na Argentina. A CTA, a outra central surgida na Argentina dos anos 1990, como dissidência da CGT, também se considera peronista. Dentro do peronismo há várias correntes, inclusive um peronismo de esquerda e revolucionário, mas enfim, todos são peronistas. No Brasil, este mapeamento político e ideológico é mais difícil de se fazer, pois há uma diversidade muito grande: socialistas, social-democratas, liberais dentro do sindicalismo, um sindicalismo mais propositivo, que convive com outro combativo. Isso prova que o sindicalismo brasileiro é mais fragmentado, tornando mais difícil de construir uma luta conjunta.
EC – Na Argentina, quem não é alinhado com o peronismo está em qual central?
Cangussu – O problema é que não existe esse espaço. As duas centrais argentinas, na verdade a única Central, a CGT, atuou de 1931 até 1991 sozinha. Ela passa por algumas rupturas até que em 1991/92 surge a CTA, que é a Central de Trabalhadores da Argentina. Nessa história de 80 anos, a única fratura interna duradoura foi essa, que também se subdividiu, por conta do alinhamento de um dos setores com o kirshnerismo, assim como é muito improvável que surjam novas forças longe do peronismo. Há, sim, setores que se alinham de forma mais independente, mas não chegam a se configurar como uma nova Central.
Foto: Divulgação/Acervo CGT
EC – É correto dizer que o final da década de 1990 foi uma encruzilhada histórica, e que os movimentos sociais, nos dois países, tomaram rumos distintos e isso contribuiu para os rumos de ambas as nações?Cangussu – Sim, essa pergunta é central e decisiva para o meu trabalho. O livro abarca o período de 1990 a 2002 (Brasil) e 1989 a 2001 (Argentina). Em 1990 há a chegada de Fernando Collor de Mello à presidência no Brasil e 2002 termina o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Mas porque esse período? Justamente porque é quando se aprofundam as políticas de caráter neoliberal, que têm relativa continuidade com os governos do PT, mas o período em que essas políticas ficaram mais evidentes são os que marcam os governos de FHC e Collor. Na Argentina, ocorre no período de Menem, que governa de 1989 a 1999 e logo depois dele vem Fernando de la Rúa, que sofreu processo de impeachment, com as manifestações de 2001. Esse cenário é importante de se ter em conta porque, como diz a pergunta, foi um momento de encruzilhada do movimento sindical, não só por conta desse contexto político mais amplo, mas porque é um período em que, nos dois países, se acentuaram as transformações econômicas não só de chão de fábrica, principalmente, mas em todo o setor produtivo e de serviços, que é a chamada reestruturação produtiva, com as novas tecnologias. Mas eu queria acentuar mais a questão dos alinhamentos políticos-partidários de que falei anteriormente e o posicionamento que o sindicalismo teve diante das políticas neoliberais. A CGT tem um vínculo histórico com o peronismo e, portanto, com o PJ. Acontece que Menem é do PJ. Então, qual foi a encruzilhada que se colocou? Como um sindicalismo historicamente vinculado às lutas dos trabalhadores e à defesa da classe trabalhadora iria apoiar um presidente do próprio partido que estava apresentando uma plataforma de cunho neoliberal e de flexibilização das leis trabalhistas naquele país? Eu diria até que as políticas neoliberais foram levadas a cabo na Argentina ainda com mais radicalidade do que aqui. Uma grande contradição: um partido vinculado a uma orientação política e ideológica mais nacional-desenvolvimentista, com um governo com histórico de radicalização do populismo muito mais acentuado do que o de Getulio Vargas, no Brasil. Além disso, a Argentina foi o país sul-americano que mais se aproximou da experiência europeia de estado de bem-estar social, com altos níveis de condições de vida para sua classe trabalhadora e pleno emprego. Ou seja, o país passa por uma hecatombe. Se a década de 1990 foi difícil para o Brasil, na Argentina foi um verdadeiro desastre econômico e social, e tudo isso levado a cabo por um governo peronista, que propunha privatizações, paridade forçada da moeda, sobrevalorização cambial, plano de ajuste fiscal com corte de gastos públicos mais severo que no caso brasileiro, e por fim, com uma plataforma de flexibilização de leis trabalhistas que lá sim chegou a ser radicalizada de uma forma bem mais acentuada do que aqui, tudo isso com um crescimento do desemprego avassalador, que em alguns momentos chegou a 25%. No Brasil, mesmo quando olhamos os dados do Dieese, que considera o desemprego oculto como trabalho precário, ainda assim não chegamos a tal número. Isso provoca uma dissidência dentro da CGT entre setores que apoiam e setores que contestam as políticas neoliberais. Aí surge a CTA, em 1991, nos primeiros anos do governo de Menem por meio de um setor mais combativo que não concordava com o alinhamento do PJ com a plataforma neoliberal.
EC – E no Brasil?
Cangussu – No caso brasileiro ocorre justamente o oposto. A Central sindical mais importante era a CUT, que combate inicialmente as políticas neoliberais, mas que vê surgir também em 1991 uma nova central, a Força Sindical, que apoia Collor num primeiro momento e Fernando Henrique depois, num projeto de flexibilização trabalhista, de privatizações, embora nem tanto na abertura comercial e financeira, porque logo ela vê seu principal sindicato, que é o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, sofrer as consequências da abertura comercial com a perda de postos de trabalho. Este é um dos fatores que eu analiso em meu livro, por que foi necessário nos dois países um setor sindical que apoiasse a plataforma neoliberal.
EC – Para legitimar plataformas de governo?
Cangussu – Exatamente. E tanto Collor como FHC utilizaram a Força Sindical para aprovar, através dos pactos sociais, que a CUT também participa num segundo momento, com legitimidade, de algumas medidas que estavam sendo levadas a cabo. Afinal, parte das entidades representativas dos trabalhadores estavam ali sentando, dialogando e negociando essas mudanças.
“Então, é correto dizer que o surgimento da CUT, e antes dela a explosão das grandes greves do ABC paulista, marcaram um ponto de inflexão. Trata-se de um momento em que as contradições que já existiam antes do golpe de 1964 novamente se manifestam”
EC – E como fica a relação do movimento sindical com o desemprego e quais as peculiaridades em ambos os países e o vácuo de representatividade quando esses trabalhadores perdem os empregos?
Cangussu – A pergunta define muito bem, quando há desemprego há um vácuo de representatividade para o trabalhador demitido. Não apenas o desempregado, que é o meu objeto de estudo, mas também o trabalhador terceirizado ou informal não são sindicalizáveis. Brasil e Argentina têm buscado resolver esse problema, principalmente no caso dos informais, também há algumas iniciativas interessantes (associações, sindicatos de informais em Campinas e Rio de Janeiro). Porém, há tentativas isoladas, experiências particulares, que ainda não se constituem como uma tradição firme e forte do sindicalismo brasileiro com resultados efetivos, como ocorre em outros países: Canadá, Bélgica, França e em algum momento a própria Argentina. A resposta em relação às diferentes formas de representação dos desempregados por parte do movimento sindical só pode ser contextualizada a partir do protagonismo que o desempregado como sujeito político teve na Argentina, por exemplo. E o que possibilitou essa eclosão, a partir da organização deste segmento, quando houve o movimento piqueteiro, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Então, uma das perguntas centrais do meu trabalho é: por que, na Argentina, foi possível um movimento de desempregados e aqui não?
EC – E qual a explicação?
Cangussu – A explicação para isso é multicausal e eu hierarquizo alguns fatores para explicar essa questão. A primeira delas é o significado distinto que o desemprego tem nos dois países. Como a Argentina tinha uma tradição de bem-estar social, o desemprego tem uma dimensão bastante importante para entender a identidade social do desempregado. Ela está associada à categorização social que o desempregado faz do emprego. Em linguagem corriqueira é o seguinte: o desempregado no Brasil não se sente tão desempregado quanto o argentino, porque existe uma tradição muito forte do bico. Isso vem desde a abolição da escravatura na tradição do trabalho brasileiro. No caso argentino existia um pleno emprego desde Perón até os anos 1990. Então, quando o trabalhador perde o emprego, ele fica à deriva.
EC – Por quê?
Cangussu – Ele fica sem ganho. A constituição da identidade social do desempregado na Argentina contribui muito para que esses movimentos eclodissem. No caso brasileiro, como a questão do desemprego sempre foi mais crônico, além de termos uma superpopulação relativa crônica, na Argentina é recente. Entre nós, brasileiros, essas características, desemprego, bico e informalidade, se apresentam historicamente de forma mais endêmica. Quando o desemprego ocorre de forma massiva na Argentina, a tendência é o desempregado se considerar como tal. Isso no contexto de um movimento sindical que tem uma forte presença no local de trabalho. O que acontece é que muitos delegados sindicais passaram a investir na organização dos sem emprego porque a CGT não estava dando conta de representar esses setores. E aí é que começa um movimento que vai às ruas na impossibilidade de fazer uma greve. Eles transportam a metodologia do repertório de luta da porta da fábrica, que é o piquete e começam a fechar ruas, avenidas e rodovias. Aí surge o movimento piqueteiro dos desempregados da Argentina.
EC – E como as centrais sindicais se comportam em relação a isso?
Cangussu – No caso argentino, a CGT se desinteressa do assunto. Promove algumas políticas para sugerir mudanças no sentido de amenizar o desemprego, mas sem representar o desempregado (sem reconhecer esse trabalhador como base, porque ele não vota nem contribui financeiramente para o sindicato – o que Gramsci chama de egoísmo de fração, o corporativismo sindical em seu estado mais puro). A Central que se envolve com esses trabalhadores é a CTA, que organiza alguns setores de desempregados, inclusive, sindicalizando individualmente e incorporando à estrutura organizativa algumas associações, as maiores inclusive.
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Cangussu – A CTA, sendo uma dissidência da CGT, a partir de um grupo minoritário, faz isso também porque precisa dos desempregados para crescer como entidade representativa dos trabalhadores. Eles têm vários sindicatos, mas os principais são dos funcionários públicos e da educação. Não têm, por exemplo, os grandes sindicatos, como construção civil, eletricitários, metalúrgicos e automobilístico (lá são categorias separadas). Já no Brasil, não existe o sujeito político desempregado com tamanho protagonismo. O que existe é que surge em 2000, no Sul do país, o Movimento Nacional dos Trabalhadores desempregados, o MTB, mas que não adquire a mesma força que teve na Argentina. Quem organiza os desempregados no Brasil é os movimentos dos sem-terra e sem-teto. Justamente porque no Brasil, com uma cidadania tão frágil como a que nós temos, a constituição do sujeito desempregado dá lugar a noções muito mais básicas, como acesso à terra e à moradia. Mas o acesso ao emprego se torna mais frágil, porque entre nós a situação de não emprego, muitas vezes, é uma situação de trabalho precário, de ir à rua se virar. No caso brasileiro, na falta desse sujeito, o que as centrais buscam fazer, imersas nesse ideal neoliberal, que a CUT vem a aderir mais tarde (a CUT a princípio adversária da Força Sindical, num segundo momento adere ao estilo de sindicalismo da Força), é a definição de uma forma de negociar, por meio de seus principais sindicatos (um estilo de acordo, que conforme interpretações mais críticas acarretam perda de direitos dos trabalhadores, como é o caso do banco de horas e redução de salário), primeiro as demissões e depois a promoção de políticas de requalificação profissional. Então, CUT e Força são uma espécie de laboratório dessas políticas que depois viraram projetos de lei no segundo mandato de FHC, principalmente inspirados nos acordos firmados entre sindicatos do ABC e montadoras. Num segundo momento, as centrais se dedicam a promover cursos de requalificação profissional, montando projetos e disputando verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), tanto que em 1998, a Força Sindical cria o Centro de Solidariedade ao Trabalhador; e a CUT, o Central de Trabalho e Renda.
EC – O que o senhor está pesquisando agora?
Cangussu – No momento estou envolvido numa pesquisa que está buscando construir um banco de dados dos protestos no Brasil. Nos últimos dez anos, por exemplo, tenho observado que o movimento sindical e o movimento dos sem-terra protagonizam 60% das ações de protesto no Brasil. Os desempregados são setores tão minoritários que não chegam a 1%, absorvidos pela categoria de outros.
EC – Mas isso também não se deve ao fato de que, nesse período, diminuiu o desemprego no país, onde temos uma situação de pleno emprego, diferente da Argentina?
Cangussu – Sim, essa ressalva é importantíssima e precisa ser feita. Mesmo assim, se pegarmos o início da década de 2000, quando a situação era outra, esse protagonismo já não existia. O desemprego começa a reduzir em 2004, na metade do segundo mandato de Lula. E na Argentina, esse protagonismo dos desempregados já se perdeu. Foi um fenômeno daquele momento, e o protagonismo voltou a ser do movimento sindical.
EC – Até que ponto as políticas sindicais e de governo influíram para o momento atual em ambos os países e até nas discrepâncias entre ambos a partir dos distintos rumos que tomaram?
Cangussu – Creio que tanto os fatores que inibem ou estimulam a atividade sindical são multicausais, assim como os que conduzem uma política de governo, porém a experiência de diversos países tem demonstrado que um movimento sindical mais forte consegue barrar políticas de precarização e até demissões. No caso brasileiro, além do que se tem falado pelos analistas na mídia, se trata de uma conjuntura favorável para o crescimento econômico, principalmente na segunda metade da década passada, com a recuperação das taxas de desemprego; há que se tomar um certo cuidado quando se fala em redução do desemprego, e de fato houve, porque a qualidade desses empregos que são gerados é duvidosa. Há setores que saem da estatística de desemprego, que ao se comparar com a qualidade do trabalho formal, fica bastante a desejar. Trabalhadores precários: jovens aprendizes, informais, cooperativados, terceirizados etc. Mas é necessário reconhecer que houve uma queda do desemprego e uma certa recuperação dos salários. Numa análise a longo prazo, considerando um período inteiro do governo Lula, esses indicadores não recuperam o patamar do início dos anos 1990. De 1990 a 2002, há uma queda tremenda nos níveis de emprego e salários e depois, apesar de recuperar muito, não chega ao que era antes. A situação atual é melhor do que era na década de 1990, mas não recupera o patamar do período que precedeu os governos de Collor e FHC. Aliás, o grande golpe na capacidade de mobilização da classe trabalhadora foi a contenção da inflação, que veio com o Plano Real. Afinal, grande parte das greves eram convocadas com o objetivo de repor salários degradados nos períodos de inflação e hiperinflação da década de 1980, que em alguns momentos, ao final da década, chegou a mais de 100% ao mês e 1.700% ao ano, impensável nos dias de hoje.