A pandemia agravou o que já era um drama na educação básica
Foto: Igor Sperotto
Na periferia, o ensino remoto é apenas mais uma ideia apartada da realidade para a maioria das mães, professoras e estudantes das escolas públicas, que todos os dias são obrigados a improvisar para garantir a sobrevivência e o acesso mínimo das crianças à educação. A maioria não consegue. As desigualdades sociais e econômicas incluem a exclusão digital. Até setembro do ano passado, apenas 11% dos 5.570 municípios brasileiros haviam adotado a educação a distância. O caos estrutural revelado pela crise sanitária, no entanto, já havia sido previsto há seis anos no Plano Nacional da Educação, que foi abandonado pelos governos
É meia-noite de domingo quando o telefone de Paula Terra Nassr vibra com a chegada de uma mensagem no WhatsApp. Ela acabou de tomar banho e está a caminho da cama, depois de fazer a janta e as tarefas escolares via internet dos filhos gêmeos, Bernardo e Joan, de 13 anos, e do Lucca, de 22, que exige cuidados especiais por ser autista.
Durante o final de semana, a demanda do celular diminui, mas não cessa. São 20 grupos de conversa. Umas 20 chamadas diárias que requerem alguns minutos de atenção cada uma. E de carinho. Pode ser um aluno, uma família ou um colega da professora da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Afonso Guerreiro Lima, que tem 940 estudantes, na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Paula abre a mensagem, interpreta as dúvidas e faz perguntas básicas antes de conseguir responder.
“Nós, professoras, estamos esgotadas. Mas do outro lado da linha tem alguém que precisa de mim. Tenho que atender”, exclama. A rotina dela representa a rotina da maioria dos professores das escolas públicas de Porto Alegre e do Brasil. Mães se queixam, dizem que estão perdendo o sono e com dor de estômago pelas tentativas frustradas de ajudarem os filhos nas tarefas. “Há colegas com até 20 turmas, em média com 30 alunos cada”, conta.
Busca de alunos nas redes sociais para reduzir evasão
Até mesmo o paradeiro dos estudantes está difícil de saber. Na Lomba do Pinheiro, professores estão fazendo “busca ativa”, investigando em Facebook e Instagram para descobrir onde estão. “Muitos venderam os celulares, perderam os planos de internet por causa do desemprego”, relata a vice-diretora da escola Guerreiro Lima, Sinthia Mayer.
“Mas superamos as expectativas em 2021. Já conseguimos o envolvimento de 50% da comunidade escolar, conseguimos fazer até assembleia virtual com familiares. Descobrimos que muitos pais e mães não iam nas reuniões na escola porque matam um leão por dia, trabalhando pra sobreviver. Hoje estão presentes conosco, por meio do WhatsApp. Mobilizamos mercados, sindicatos, associações, fizemos arrecadação de alimentos. Tudo acontecendo, nos agarramos na esperança, as pessoas pedindo comida, pais e mães morrendo de covid”, revela.
Aulas por rádio e televisão
“Estamos fazendo todo o possível. Em Alagoas estão usando o rádio, há estados com aulas por canais de televisão. Mas não tem faz-de-conta, tivemos em 2020 no país um ensino meia-boca”, resume Edileuza Fernandes, coordenadora do Observatório da Educação Básica, da Faculdade de Educação, da Universidade de Brasília (UnB).
“No pós-pandemia, teremos desafios na aprendizagem, principalmente dos estudantes de redes públicas. O Brasil tem 47,3 milhões de matrículas na educação básica, segundo o Censo 2020, a maioria em escolas municipais e estaduais. Em mais da metade dos estados, menos de 60% das famílias têm acesso à internet banda larga. E menos de 40% das escolas básicas públicas têm computadores ou tablets com acesso a alunos e professores”, ressalta ela, com base em Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019.
Começar do zero, como um atleta que se lesionou
Foto: Igor Sperotto
“Precisamos identificar os que estão sem nenhum acesso à escola. São os que têm maior déficit, mas todos voltarão com déficit. É como um atleta que se tratou de uma lesão. Os treinos recomeçam do zero”, compara Edileuza Fernandes.
Ela propõe avaliações diagnósticas permanentes para intervir junto a estudantes que ficaram pelo caminho, e a retomada de projetos de educação integral com jornada ampliada para atender aos alunos mais prejudicados pela exclusão. “Não como compensação do conteúdo curricular. Precisamos definir os conteúdos que não podemos abrir mão, mas também favorecer o protagonismo, especialmente dos jovens, saber como eles desejam a escola, o que querem para a sua vida.”
Na Restinga, a Emef Alberto Pasqualini atende a cerca de 1.200 alunos, e as professoras relatam algumas situações que caracterizam grande parte das escolas públicas de educação básica. “Em nossas turmas de 25 a 30 alunos, três ou quatro conseguiram responder às atividades durante o ano letivo de 2020”, conta Janaína Barbosa.
“Temos muitas mães com diagnósticos de depressão, muitas são mães solo (sem marido). Há casos em que passaram por violência doméstica, estão desempregadas”, acrescenta sua colega Ana Carolina Silveira, que, mesmo depois de transferida para outra escola neste ano e morando na Zona Norte, acaba voltando ao bairro, pois existem famílias que ela acompanha há dez anos e não conseguiu abandonar.
A Lomba do Pinheiro e a Restinga, onde se localizam as Emef Afonso Guerreiro e Alberto Pasqualini, respectivamente, são áreas contínuas de periferia e baixa renda, entre a Zona Leste e o extremo-sul porto-alegrenses. Somam mais de 110 mil habitantes e estão entre os bairros de maiores populações autodeclaradas negras e pardas da capital gaúcha.
Os moradores se originaram de territórios rurais e “malocas” de áreas centrais removidas há cerca de 50 anos para longe dos olhos da cidade. As comunidades têm histórico de resistência. Suas organizações culturais, sociais e políticas são cada vez mais atuantes e reconhecidas.
Uma das alunas da Pasqualini que Ana Carolina visita é Amanda, de 9 anos, que a recebe com as mãozinhas na cabeça, dando pulinhos sem tirar os pés do chão: “Então, eu tô na 4ª série? Não acredito!”, exclama ao saber da novidade. Sem assistir às aulas, foi aprovada automaticamente, como todos da rede pública.
O analfabetismo ainda é uma grande barreira
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Andréia perdeu o marido há cinco anos. Ele era músico e ganhava o suficiente para manter bem as despesas domésticas, mas um dia foi trabalhar na noite e acabou assassinado (ela conta fazendo sinais para que a filha não perceba). Depois, ela conseguiu se cadastrar no programa Minha Casa Minha Vida, que na época aceitava a renda do Bolsa Família como garantia, e assim conseguiu o apartamento onde mora.
Além do benefício do governo federal, os três passaram a depender dos extras que a mãe conseguia com faxinas. E a professora a ajudou a conseguir cadastro para remédios no programa Farmácia Popular, para a depressão que sente e para o menino que é hiperativo. Recentemente, abriu um brechó, que foi fechado quando o Rio Grande do Sul inteiro foi coberto pela bandeira preta da covid-19, neste início de 2021. Andréia ficou mais pobre e, sem saber ler, com mais dificuldades ainda na busca por trabalho.
Escolas públicas de Brasília têm os problemas do Brasil
“Temos 38 milhões de analfabetos funcionais no país”, comenta Edileuza Fernandes, ressaltando a incapacidade de os pais em ajudarem os filhos nas tarefas escolares. Ela comenta que a pandemia tornou ainda mais graves e evidentes as situações que já existiam antes. “Entre os alunos que em 2019 estavam em sala de aula no Brasil, 16,2% do ensino fundamental apresentavam distorção entre idade-série. No ensino médio, a taxa de distorção idade-série é de 26,2%, de acordo com o Censo de 2020.”
Na capital federal, onde a renda per capita é o dobro da nacional, um levantamento feito pelo Sindicato dos Professores (Sinpro-DF), em maio, revela que a falta de tecnologia também tem números bastante lastimáveis: 26,27% dos 460 mil estudantes da rede pública do DF não têm condições materiais para participarem de nenhum tipo de Ensino a Distância (EaD). Quase 121 mil alunos não têm nenhum tipo de equipamento para uso em aulas nas plataformas digitais. “Esses correm os mais graves riscos de não voltarem pra escola, por vários motivos”, acentua a coordenadora do Observatório da Educação Básica da UnB.
As mães sofrem de depressão
Foto: Igor Sperotto
Os filhos de Kátia Alves Brandão fazem parte desse tipo de estatísticas. Aliás, ela tem oito. Mas cinco estão entre os 11 e 16 anos, estudantes da Alberto Pasqualini, na Restinga. Dois pares de gêmeos e Dafne, de 15. Todos usam o celular da mãe. Mas é tudo muito complicado. Além dos apagões por causa do mau sinal da operadora de internet, a disputa é grande. E o resultado das aulas virtuais é nenhum. Davy nunca nem tentou fazer exercícios mandados pela escola pelo WhatsApp.
“Só o que interessa pra ele no celular é joguinho”, denuncia Kátia. “Eu prefiro aula na escola”, justifica o menino. Ketley concorda. Mas as famílias não querem contaminação e mais mortes. Essa mãe é uma das mulheres que sobrevivem com muitos filhos sem ajuda de marido. E também precisa de remédios para controlar a ansiedade, porém prefere não tomar para ficar atenta à filha Weschelley, uma das gêmeas, que é acometida de esclerose tuberosa, tem manifestações neurológicas, com convulsões. No ano passado, eles perderam quase todos os móveis da casa por causa da inundação do Arroio do Salso, que corre na esquina. Mais uma vez, a ajuda solidária foi mobilizada. Kátia abraça Ana Carolina e chora.
A omissão do MEC obriga os professores ao improviso
Foto: Museu da Educação/ Reprodução
A capital gaúcha só é mais um reflexo do país. Edileuza Fernandes observa que até setembro do ano passado apenas 11% dos 5.570 municípios brasileiros haviam adotado o ensino remoto. Muitos preferiram investir esforços em diagnósticos e preparação de professores. “O Ministério da Educação não oferece orientações para superar essa crise.”
A professora acentua que as escolas necessitam de diferentes estratégias para exigências de variados grupos, da educação infantil ao ensino médio. E ressalta que as necessidades apresentadas durante a pandemia já deveriam estar solucionadas há anos. Portanto, o roteiro do que precisa ser feito daqui pra frente já poderia estar em ritmo acelerado há cerca de seis anos, pois muitas estratégias voltadas à formação de professores para uso de tecnologias, infraestrutura e equipamentos necessários estão descritas no Plano Nacional de Educação (PNE) para 2014 a 2024, que até agora teve quatro metas razoavelmente atendidas e 16 abandonadas. “Agora, precisamos recorrer a ações improvisadas para dar respostas à sociedade”, resume a professora da UnB, que tem experiência de 30 anos em salas de aula do DF.
Ensino híbrido, um caminho possível para o pós-pandemia
Foto: Acervo Pessoal
Existe um vazio nos currículos escolares. Professores e especialistas conhecem as deficiências e as soluções – que já estão atrasadas há anos, e podem demorar ainda mais, como demonstra a nota pública emitida em março, um mês depois da posse do novo presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Vitor de Angelo. “O Consed recebe com perplexidade a informação do veto presidencial ao projeto que garantiria acesso à tecnologia para estudantes e professores. Diante da falta de coordenação nacional, ao menos até o momento, seria a primeira ação importante na área da educação, realizada pela União, desde o início da pandemia.” O documento referia-se ao veto de Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei 3.477/2020, o qual busca garantir acesso à internet, com fins educativos, a alunos e professores da educação básica. O veto será apreciado pelo Congresso Nacional.
Angelo, que também é secretário de Educação do Espírito Santo, destaca que o ensino híbrido – mescla de aulas presenciais e virtuais – é prioridade do Consed para o biênio 2021/2022. “Tem muito a ver com os desafios que a pandemia trouxe, especialmente para a educação pública. A ideia é se debruçar sobre experiências nacionais colhidas ao longo do ano passado, quem sabe compará-las com a riqueza de experiências internacionais, apontar dificuldades, políticas necessárias, indicar o que caberá a estados, municípios e governo federal. Enfim, fazer uma radiografia do país nesse aspecto e ser propositivo em como avançar, tanto para 2021 como para os anos seguintes. Pelo menos para o ensino médio, o ensino híbrido é uma perspectiva que já estava na agenda e cuja necessidade de adoção foi precipitada pela pandemia”, enfatiza.
O Consed tem ações conjuntas com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), com planos de trabalhar com técnicos de Secretarias, Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e MEC. O Conselho já disponibiliza informações do calendário letivo de 2021 sobre medidas tomadas no país para mitigar perdas causadas pela pandemia, as quais podem ser acompanhadas em Consed.info/ensinoremoto.