Novo Ensino Médio deve aumentar abismo entre escola pública e privada
Foto: Igor Sperotto
André Luiz Silva dos Passos tem 16 anos. Em 2022, cursará o terceiro ano do ensino médio na Escola Estadual de Ensino Médio Tuiuti, no município de Gravataí, na Grande Porto Alegre. Tranquilo, de fala articulada, não titubeia frente às perguntas sobre a implantação do Novo Ensino Médio durante entrevista por telefone. Assim como a mãe, Simone, formada em Administração, e o irmão mais velho, João Pedro, que cursou Matemática, ele conta que deseja seguir seus estudos e fazer o curso de Música na Ufrgs, escolha que o acompanha desde os 12 anos de idade. Mas sobre o que irá acontecer no ano que vem na escola quanto às mudanças a serem implementadas, confessa não fazer a mínima ideia.
Das atuais 2,4 mil horas, o Novo Ensino Médio terá uma carga de 3 mil horas, das quais 1,8 mil horas serão destinadas às aprendizagens obrigatórias estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as 1,2 mil horas restantes constituirão os itinerários formativos. Esses últimos compõem a parte flexível da nova proposta, podendo a escola oferecer pelo menos dois dos cinco itinerários formativos, dos quais quatro são de aprofundamento nas áreas de conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza ou Ciências Humanas e Sociais) e um de formação técnica profissional.
Foto: Igor Sperotto
Há cinco anos aluno da Tuiuti, André avalia que tanto ele como os irmãos tiveram e estão tendo uma boa formação na escola. Ao buscar justificar por que até o momento os alunos não foram informados sobre o que irá mudar no ensino a partir do ano que vem, mostra-se compreensivo. Segundo o estudante, a escola enfrenta problemas sérios quanto às instalações, em obras desde 2016, sendo que, das 14 salas de aula existentes no colégio, apenas quatro estão em uso. “Tem gente que tem aula dentro do refeitório, eu tive na sala dos professores, tinha quatro turmas dentro do salão da escola. Eram lugares que não eram salas de aula, mas tiveram que virar pros alunos poderem ter as aulas”, justifica.
A biblioteca é outro espaço indisponível já faz três anos na Tuiuti, relata Geovana Rosa Affeldt, diretora da escola, e como não existe concurso para bibliotecário no estado e as administrações escolares não podem designar professores para trabalhar no setor, não há perspectiva para a reabertura, prenuncia a educadora. Por isso, André relata que poucas vezes entrou na biblioteca, só mesmo quando algum professor pedia um livro específico. “Não tive muito o hábito de ler na escola”, reconhece, assumindo para si a consequência de o governo do estado ter fechado todas as bibliotecas que eram atendidas por professores nas escolas da rede pública estadual.
A cerca de oito meses da implantação do Novo Ensino Médio, tramita no Conselho Estadual de Educação (CEEd/RS) a segunda versão do Referencial Curricular Gaúcho (RCG) para o Ensino Médio no Rio Grande do Sul. O Conselho está analisando a proposta enviada pela Secretaria de Educação (Seduc-RS) e deverá se manifestar até outubro sobre este referencial que, se aprovado, valerá para todas as instituições do Sistema Estadual de Ensino, públicas e privadas.
Antes mesmo de qualquer encaminhamento, Geovana adverte que não existe nenhuma possibilidade de qualquer reforma dar certo se não houver investimento: manutenção das escolas, política de reposição de professores e de profissionais de educação.
Falta de protagonismo de professores e estudantes
Foto: Igor Sperotto
Para refletir sobre os impactos que a implantação do Novo Ensino Médio terá na educação brasileira, é preciso entender sua origem e seus encaminhamentos. Quem afirma é Mariângela Silveira Bairros, coordenadora do Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Ufrgs. Conforme a pesquisadora, a falta de participação nas discussões referentes às reformas do ensino médio vem desde 2016, quando foi implementado o ensino médio em tempo integral, através de uma medida provisória que, depois de votada, resultou na Lei 13.415, de fevereiro de 2017. “Sem a participação das universidades, dos docentes, das escolas, de gestores ou alunos”, lamenta.
A ausência de protagonismo, especialmente dos professores, também é salientada pela diretora da escola de André. Geovana critica o fato de que as escolas estão sendo atropeladas pela nova política educacional, além dos poucos dias para discussão, os professores que quisessem participar da construção teriam que ter carga horária sobrando. “Isso no meio de uma pandemia em que estávamos tentando dar aula remota e que não sabíamos usar as tecnologias. Ou seja, o Novo Ensino Médio nos foi apresentado só pra constar. Posso te dizer que a construção do ensino médio foi por amostragem, não foi efetiva, não teve a participação de quem realmente vai ser atingido por ela,” argumenta.
Foto: Feevale/ Divulgação
Gabriel Grabowski, professor da Feevale e representante da Associação de Escolas Superiores de Formação de Profissionais do Ensino (Aesufope) no Conselho Estadual de Educação, destaca ainda a exclusão dos alunos nesse processo, o que, na avaliação do educador, é um contrassenso, uma vez que um dos eixos da nova proposta é justamente o protagonismo estudantil através do projeto de vida. André confirma a ausência dos estudantes nas discussões que antecederam a implantação, pois tanto ele quanto os demais alunos do ensino médio da Tuiuti não foram chamados para opinar.
Como membro da Aesufope, Grabowski ressalta a preocupação mais ampla da entidade quando analisa o papel dos professores em questões como a mudança curricular, que implica o Novo Ensino Médio. Para a instituição, tal proposta deveria ser precedida de formação de professores, seja na universidade, seja na formação continuada. “Continuamos formando professores por áreas de conhecimento, e a reforma agora vem por competências e habilidades,” explica.
Futuro desigual a egressos da escola pública e privada
Foto: Igor Sperotto
O fato de a escola Tuiuti comemorar seus 80 anos de existência em 2022, com apenas 28% de suas salas de aula em condições de uso, atesta os argumentos de muitos educadores e gestores quando apontam a falta de investimento na educação pública como fator que potencializa o abismo já existente entre as redes de educação básica pública e privada de ensino no Brasil. “Enquanto os investimentos na educação pública estão congelados desde 2016, a rede privada vai investir porque vai repassar para as mensalidades. Ou seja, a inciativa privada poderá oferecer mais opções ao aluno”, afirma o professor da PUCRS Sani Belfer Cardon, diretor do Sinpro/RS, ao analisar as condições prévias à implantação do Novo Ensino Médio.
Outra crítica de Sani que potencializa esse distanciamento entre as redes é que, enquanto na escola privada a preferência será oferecer itinerários formadores que incrementam o preparo para o ensino superior (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza ou Ciências Humanas e Sociais), desconsiderando o itinerário profissionalizante, nas escolas públicas um dos itinerários a ser oferecido é justamente o tecnológico. Ou seja, na avaliação do professor, é um modelo que reforça o destino do aluno da escola privada a ascender ao ensino superior, enquanto o aluno da escola pública deve se contentar com o profissionalizante. “A reforma vai ampliar o abismo que existe entre a escola pública e a privada”, sentencia.