MOVIMENTO

Votação do marco temporal no STF mobiliza 6 mil indígenas em Brasília

Representantes de 173 povos de 20 estados da federação estão no acampamento Luta pela Vida, na capital federal, pela garantia de direitos originários
Por Gilson Camargo* / Publicado em 24 de agosto de 2021

Foto: Kamikia Kisedje/ Cimi/ Divulgação

Acampamento Luta pela Vida, na capital federal, reúne representações dos povos indígenas de todo o país

Foto: Kamikia Kisedje/ Cimi/ Divulgação

Cerca de seis mil indígenas de 173 povos vindos de 20 estados estão mobilizados na capital federal pela garantia de seus direitos originários e contra o marco temporal, que está em votação nesta quinta-feira, 26, no Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento que pode acabar com a demarcação de terras indígenas no país estava pautado na quarta-feira, mas foi adiado, aumentando a expectativa e a tensão na capital federal, já que também é intensa a mobilização de ruralistas que estão em Brasília para pressionar os ministros do STF a aprovarem o marco temporal.

Para as lideranças, essa é a maior mobilização indígena pós-constituinte, após a chegada de caravanas de todas as regiões. No domingo, mais de dez ônibus deixaram o Rio Grande do Sul, levando indígenas de Passo Fundo, Iraí e outros municípios gaúchos com forte presença indígena – o estado tem se notabilizado pela violência e manifestações públicas de ódio contra minorias nas regiões dominadas pelo agronegócio. Em Passo Fundo, ruralistas chegaram a promover uma manifestação anti-indígena para contrapor a mobilização em torno da votação do marco temporal.

Centralizada no acampamento Luta pela Vida, previsto para durar sete dias, de 22 a 28 de agosto, a mobilização tem como bandeira principal a pauta do julgamento do marco temporal pelo Supremo, considerada pelo movimento indígena o processo mais importante do século sobre a vida dos povos indígenas. Os povos também denunciam os projetos anti-indígenas em trâmite no Congresso Nacional e o agravamento das violências contra os povos originários dentro e fora dos territórios tradicionais.

Julgamento

Os ministros do STF irão analisar a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang.

Com status de “repercussão geral”, a decisão tomada neste julgamento servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça, também como referência a todos os processos, procedimentos administrativos e projetos legislativos no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.

“Estamos realizando a maior mobilização de nossas vidas, em Brasília, porque é o nosso futuro e de toda humanidade que está em jogo. Falar de demarcação de terras indígenas, no Brasil, é falar da garantia do futuro do planeta com as soluções para a crise climática”, reforça Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib.

“O acampamento Luta pela Vida já diz no nome os motivos que fazem os povos indígenas estarem, em Brasília, em plena pandemia. Estamos trabalhando todas as medidas sanitárias, incluindo a testagem dos participantes e reforçando a vinda de pessoas já vacinadas”, enfatiza Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

De acordo com a Apib, foram desenvolvidos para o acampamento protocolos sanitários dedicados a reforçar todas as normas já existentes e recomendadas para o combate à covid-19.

A equipe de saúde do acampamento conta com profissionais indígenas de saúde em parceria com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), com a Fundação Oswaldo Cruz de Brasília e do Rio de Janeiro (Fiocruz DF e RJ), com o Ambulatório de Saúde Indígena da Universidade de Brasília (Asi/UNB) e com o Hospital Universitário de Brasília (HUB).

Com uma intensa programação de plenárias, agendas políticas, marchas, manifestações públicas e culturais, os indígenas ficarão acampados na Praça da Cidadania, na Esplanada do Ministérios.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em conjunto com todas as suas organizações de base, iniciou no domingo, 22 a mobilização nacional Luta pela Vida, em Brasília.

As atividades acontecem até o dia 28 de agosto e buscam reivindicar direitos e promover atos contra a agenda anti-indígena que está em curso no Congresso Nacional e no Governo Federal. O julgamento que está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 25 de agosto e pode definir o futuro das demarcações das terras indígenas também será acompanhado pela mobilização.

Marco temporal joga com o futuro dos indígenas, alerta liderança

Foto: Cristina Ávila

Kretã Kaingang, coordenador da Arpin Sul: votação do STF cessa tramitação de projetos anti-indígenas no Congresso

Foto: Cristina Ávila

O coordenador da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpin Sul), Kretã Kaingang, afirma que a expectativa é grande em relação à votação do marco temporal no STF.

“É um momento histórico para os povos indígenas. O Estado sempre fala que cometeu crimes contra os indígenas e cometeu de fato, em relação à usurpação dos nossos territórios em todo o Brasil e principalmente aqui na Região Sul, onde de donos da terra viramos acampados em beira de estrada. Se o Estado quer reparar o erro que cometeu nesses 521 anos, precisa reparar principalmente a questão fundiária, as nossas terras tradicionais, onde nossos avós, nossos bisavós moraram e que foram utilizadas pelos governos de estados nos anos 1960 para reforma agrária da colonização quando chegou no Sul do Brasil”.

Ele ressalta que a votação do marco temporal pelo STF joga com o futuro dos povos indígenas no país. “É necessário que seja votado e aprovado em favor dos povos indígenas para que a gente tenha tranquilidade e possa pensar o futuro dos nossos filhos e das futuras gerações”.

Kretã acrescenta que essa votação também põe um fim à tramitação de projetos anti-indígenas no Congresso. “A gente sabe que a ideia deles é criar um marco temporal via projeto de lei, mexendo na Constituição de 1988, nos artigos 231 e 232, por isso que está ali o PL 490, que paralisa as demarcações ao envolver o estado e o municípios na demarcação junto com os requerentes. A gente sabe também que o estado e os municípios no Sul são muito racistas, então dificilmente nós conseguiríamos demarcar. Além disso, a questão envolve a Câmara dos Deputados que tem uma bancada de 300 deputados que são contrários aos direitos indígenas”, avalia.

O coordenador regional da Apib aponta também o PL 191, da mineração, “que abre os territórios indígenas para legalizar o garimpo que acontece em terras indígenas”; e o PL 2751, do licenciamento ambiental para empreendimentos em terras indígenas “sem consulta aos povos indígenas se eles querem ou não aquele empreendimento e sem direito a indenização também”.

“Esse licenciamento ambiental é muito perigoso para os povos indígenas, principalmente aquelas terras que estão passando por processo de demarcação”, alerta. “Outro projeto é o PL 2633, que nós chamamos PL da grilagem de terras, que é grilar a terra indígena e grilar a terra pública da União e terras que são reivindicadas para demarcação”. Esses quatro projetos de lei que tramitam hoje no Congresso Nacional seriam um marco legal em nível legislativo, aponta.

“Por isso é muito importante que o marco temporal que está no Supremo seja votado favorável a nós porque elimina pelo menos essas chances desses projetos de lei. O restante nós vamos ter que brigar no Supremo. Nós temos um Congresso que eu não digo conservador, mas é contrário aos direitos indígenas e a gente vai ter que levar para instâncias maiores que são o STF e se necessário levar até os tribunais internacionais também”, explica.

“Acredito que o Supremo não pode mais ficar empurrando com a barriga, mesmo que tenha um pedido de destaque do ministro que foi indicado pelo governo Bolsonaro (Nunes Marques), nada impede os demais ministros votarem a favor dos povos indígenas”, diz Kretã.

Tribunal Penal Internacional

Foto: Eduardo Figueiredo / Arquivo Mídia Ninja

Luta antiga: manifestação contra o marco temporal e pelas demarcações da Terra Indígena Jaraguá, em São Paulo

Foto: Eduardo Figueiredo / Arquivo Mídia Ninja

O movimento indígena denuncia de forma constante o agravamento das violências contra os povos originários dentro e fora dos territórios tradicionais. A Apib protocolou no dia 9 um comunicado no Tribunal Penal Internacional (TPI) para denunciar o governo brasileiro por genocídio e ecocídio.

Na data que marcou o dia Internacional dos Povos Indígenas, a organização pediu que a procuradoria do tribunal de Haia examine os crimes praticados contra os povos indígenas pelo presidente Jair Bolsonaro, desde o início do seu mandato, em janeiro de 2019, com atenção ao período da pandemia da covid-19.

Carta contra marco temporal e proteção dos direitos indígenas

Mais de 160 mil pessoas assinaram uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal (STF) manifestando sua posição contra a tese do chamado “marco temporal” e pedindo que a Corte proteja os direitos constitucionais dos povos indígenas, sob grave ameaça neste momento no Brasil.

Na tarde desta terça-feira, 24, véspera do julgamento que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil, lideranças do acampamento Luta Pela Vida entregam carta aos ministros, após uma caminhada até a Praça dos Três Poderes.

A carta foi inicialmente assinada por 301 pessoas, entre as quais artistas, juristas, acadêmicos e diversas personalidades brasileiras, e protocolada no STF no dia 24 de junho por lideranças indígenas que participam do acampamento Levante Pela Terra, em Brasília.

A partir de então, o manifesto foi aberto para a coleta virtual de assinaturas e ganhou a adesão de dezenas de milhares de pessoas que se posicionaram em apoio aos povos indígenas do Brasil e contra o “marco temporal”, interpretação restritiva da Constituição Federal que busca limitar o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras.

Marco temporal

O plenário do STF vai analisar a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklanõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang.

O status de “repercussão geral” dado em 2019 pelo STF ao processo significa que a decisão sobre ele servirá de diretriz para o governo federal e todas as instâncias do Judiciário no que diz respeito à demarcação de terras indígenas, além de servir para balizar propostas legislativas que tratem dos direitos territoriais dos povos originários.

Apesar da Constituição não ter estabelecido nenhum limite de tempo para a demarcação de terras indígenas, ruralistas e setores interessados na exploração destes territórios de ocupação tradicional defendem, com a tese do “marco temporal”, que os povos originários só deveriam ter direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988.

Esta tese vem sendo utilizada pelo governo federal para travar demarcações de terras indígenas e foi incluída em proposições legislativas anti-indígenas como o Projeto de Lei (PL) 490/2007, aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados.

“O tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada ‘tese do marco temporal’ para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de justiça e legalidade”, afirma a carta.

“Este Supremo Tribunal tem em suas mãos a oportunidade de corrigir esse erro histórico e, finalmente, garantir a justiça que a Constituição determinou que se fizesse aos povos originários”, prossegue o documento.

Foto: Marina Oliveira/Cimi/ Divulgação

Pressão: em carta aos ministros do STF, indígenas alertaram que a aplicação do marco temporal para anular a demarcação de terras é “exemplo cristalino de injustiça”

Foto: Marina Oliveira/Cimi/ Divulgação

Alerta da ONU

“Apelo ao Supremo Tribunal Federal para que defenda os direitos dos povos indígenas a suas terras tradicionais, territórios e recursos naturais”, afirmou na segunda-feira, 23, o relator especial da ONU sobre os direitos dos povos, Francisco Cali Tzay.

O relator disse temer que uma decisão favorável ao marco temporal legitime a violência contra os povos nativos e aumente os conflitos na Floresta Amazônica: “a decisão do STF não só determinará o futuro destas questões no Brasil para os próximos anos, mas também sinalizará se o país pretende estar à altura de suas obrigações internacionais de direitos humanos”.

Acampamento

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) iniciou no domingo, 22, em Brasília, a mobilização nacional Luta pela Vida, que reúne indígenas de todas as regiões do país.

O acampamento na Esplanada dos Ministérios está previsto para durar até o dia 28 de agosto e conta com uma programação de plenárias, agendas políticas em órgãos do governo federal e embaixadas, marchas e manifestações públicas.

Um dos objetivos é acompanhar o julgamento que está na pauta do STF de quarta-feira, 25, e pode definir o futuro das demarcações das terras indígena.

O que será julgado

O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365 é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ.

Repercussão

Em decisão no dia 11 de abril de 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365, o que cria jurisprudência para todos os casos envolvendo terras indígenas.

Em 2020, o Ministro do STF Luiz Edson Fachin, em duas liminares nessa ação, decidiu pela suspensão das “ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas ações”, mas sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas; e suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que determinava a aplicação da tese do marco temporal.

Comissão de Direitos Humanos e Minorias

A Presidência da CDHM se manifestou em 2019 e em 2020 endossando os pedidos da Comunidade Indígena Xokleng. Na última sexta-feira, Tzay participou de audiência pública do Observatório da Revisão Periódica Universal sobre as recomendações relativas aos direitos dos povos indígenas no Brasil. Na ocasião, a paralisação das demarcações foi debatida, entre outros temas.

Teses

Há duas teses em disputa: a “teoria do indigenato”, que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito “originário” – ou seja, anterior ao próprio Estado, e a tese do marco temporal, que defende que povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse ou em disputa judicial ou material no dia 5 de outubro de 1988.

*Com informações da Apib, Cimi e agências.

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