OPINIÃO

Perdidos

Por Luis Fernando Verissimo / Publicado em 9 de setembro de 2021

Na falta de notícias de uma chegada ou de uma tragédia comprovada, não havia um tempo predeterminado para o epíteto “missing” ser abandonado.

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

“Há uma crise não só de velhas certezas ideológicas e morais, mas de velhas certezas científicas também, e não passa dia em que não se descubra que o universo não é nada do que se pensava ontem”

Na Inglaterra de Joseph Conrad, no relato diário de partidas e chegadas de navios publicado pela imprensa, a palavra mais temida era “overdue” – atrasado – junto ao nome de um barco.

– Estar “overdue” era estar à beira de um grande alívio ou de uma grande tragédia, pois só uma de duas palavras substituiria o temido adjetivo no noticiário: “arrived”, chegado, finalmente, ou “missing”, desaparecido.

Havia um tempo predeterminado para um barco “overdue” passar a ser descrito como “missing”, e o progresso de uma condição a outra dava à leitura de um simples registro comercial a mesma sensação de um emocionante folhetim diário.

Na falta de notícias de uma chegada ou de uma tragédia comprovada, não havia um tempo predeterminado para o epíteto “missing” ser abandonado.

Ele perdurava ao lado do nome do barco como uma sombra, dia após dia, e o barco permanecia desaparecido, nas palavras de Conrad, “num mistério grande como o mundo”.

Ou pelo menos como o mar.

Hoje, os perigos do mar continuam os mesmos, mas qualquer caíque sabe sempre exatamente onde está, e pode transmitir sua localização e sua condição em segundos.

Então, por que esta sensação de estarmos “overdue” em algum indefinível porto seguro do qual partimos e cujo caminho de volta nunca mais reencontramos, perdidos num mistério cada vez maior? Ao contrário dos nossos barcos, continuamos sendo matéria de especulação literária.

Há uma crise não só de velhas certezas ideológicas e morais, mas de velhas certezas científicas também, e não passa dia em que não se descubra que o universo não é nada do que se pensava ontem.

Não admira que as pessoas cada vez mais renunciem ao racional – que, afinal, nos deu o GPS, mas nos deixou mais desorientados do que antes – e busquem o místico, o tribal e o maluco.

Na falta de instrumentos precisos para mapear a angústia, apela-se de novo para entranhas de pássaros, deuses selvagens e a anulação dos sentidos.

No tempo de Joseph Conrad, os barcos guiavam-se pelos astros e pelos polos magnéticos.

Mesmo longe de qualquer porto ou socorro, nenhum herói embarcado de Conrad tinha razão para duvidar das estrelas sobre a sua cabeça ou da bússola à sua frente, ou dificuldade em identificar seu lugar no mundo.

 

Luis Fernando Verissimo colabora mensalmente com o Extra Classe desde 1996.

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