CULTURA

A improvável biografia de Carolina

Romance histórico reconta história da portuguesa que foi para o Rio cuidar de um irmão doente e acabou mudando a literatura brasileira
Por Gilson Camargo / Publicado em 3 de novembro de 2021

Foto: ABL/ Domínio Público

Escritora gaúcha reconstitui a história e dá voz à mulher que apresentou os clássicos da literatura a Machado de Assis

Foto: ABL/ Domínio Público

Nascida Carolina Augusta Xavier de Novais, no Porto, em Portugal, em 1835, Carolina Augusta de Novaes Machado saiu de casa ainda adolescente para cuidar de um irmão doente no Rio de Janeiro. Ela viveu por três décadas e meia no Brasil, ao lado do marido, o carioca Joaquim Maria Machado de Assis – que viria a ser o autor de obras referenciais da literatura brasileira como Memórias póstumas de Brás Cubas, O Alienista, Quincas Borba. A quase desconhecida Carolina, que nunca foi biografada, apresentou ao escritor os clássicos da literatura que ele não conhecia e se tornou uma crítica implacável do que o autor escrevia.

A não ser pelo período em que viveu discretamente no Rio de Janeiro, de 1869 a 1904, casada com um dos nomes mais importantes da literatura do século 19, pouco se sabe sobre a vida da portuguesa, falecida aos 70 anos, e que inspirou o soneto póstumo À Carolina, escrito por Machado em meio a uma crise depressiva que se seguiu à viuvez.

De acordo com a biógrafa Lucia Miguel Pereira, Carolina incentivou o escritor a conhecer os clássicos da literatura e foi sua primeira leitora, confidente e crítica. “Machado, como todo autodidata, tinha enormes lacunas de cultura, das quais muitas parecem haver sido preenchidas graças às indicações de Carolina”, anota Lucia no livro Machado de Assis – Estudo Critico e Biográfico (Cia. Editora Nacional) de 1936.

“Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo”, lamentou o escritor em uma carta ao colega Joaquim Nabuco, em 20 de novembro de 1904. “A solidão não me é enfado­nha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela (…), mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada”, completa o viúvo, segundo anotou Graça Aranha no livro Correspondências de Machado Assis & Joaquim Nabuco (ABL, 2003). São relatos como esse, contidos em cartas e documentos históricos, as únicas referências sobre a personagem.

Para completar a literatura sobre o período do Brasil Colônia a respeito da existência dessa “mulher reconhecidamente culta, inteligente e discreta”, a escritora gaúcha Rosa Busnello resolveu seguir as pistas e os escassos registros e escreveu o romance histórico O livro de Carolina – A improvável biografia de Carolina Machado de Assis (Libretos, 2021, 232 p.), lançado na 67ª Feira do Livro de Porto Alegre.

Construção literária

O livro resgata as origens, a vida e as conturbadas relações da família Novais em Portugal, e dá voz a uma personagem que teve grande influência sobre o mais festejado escritor em Língua Portuguesa até a atualidade. Em uma época adversa a qualquer protagonismo feminino, Carolina e uma amiga liam escondido clássicos da literatura mundial que chegavam a Portugal e que tiveram grande influência sobre a formação literária da personagem.

Machado de Assis, que criou a personagem Capitu, manteve uma relação conturbada com Eça de Queiroz, a quem dirigia críticas ferozes. Nos registros biográficos dos dois autores, não faltam insinuações sobre um suposto triângulo amoroso que teria Carolina como pivô das brigas e cenas de ciúme protagonizadas pelos dois escritores. “Quanto a Capitu, não acho que seja Carolina, mas a beleza da estética da recepção é essa. Pode ser para ti”, sugere.

Imagem: Reprodução

Imagem: Reprodução

“Carolina teve um passado amoroso no Porto. Este foi o ponto de partida para a pesquisa a que me dediquei. No entanto, achei o boato de uma ligação com Eça de Queirós muito fabricado. Eça era filho de uma também Carolina Augusta, mas o casamento de seus pais só veio a ocorrer quando o menino estava com quatro anos. Por quê? Dizem que a avó paterna não permitiu que o filho (juiz de direito e par do reino) se casasse com uma plebeia pobre. Assim, creio que alguém misturou as histórias, criando uma versão novelesca para nossa Carolina”, esclarece Rosa Busnello.

Machado sonhava com o Realismo, mas só o alcançou com Memórias Póstumas de Brás Cubas. “Nessa época, Eça já era famoso e Machado já escrevera duas duras resenhas reclamando, principalmente, da superficialidade dos personagens dos Maias e do Crime do Padre Amaro. Pode ser que houvesse uma certa inveja machadiana, e também pode ser que essa tenha feito com que Machado alcançasse o brilho – muito maior do que o de Eça”.

Ficção e cartas

O livro de Carolina é um romance recheado de correspondências originais, e um toque de requinte em sua construção literária, descreve Rosa.

Como são escassos os registros sobre a vida da personagem em Portugal, Rosa recorreu à ficção. Daí o subtítulo “biografia improvável”.

No Brasil, relata a autora, “a vida dessa mulher intrigante também foi marcada pela discrição, apesar de contarmos com várias histórias”. São registros sobre o namoro com Machado de Assis – de início malvisto pelos irmãos Novais que não o aceitavam por ser “mulato” –, relatos de amigas e vizinhas, e “seus 35 anos de companheirismo no casamento”.

As cartas e reflexões de Carolina que aparecem na obra são fictícias. Elas se completam com a correspondência real de Machado que está no acervo público da Academia Brasileira de Letras. A pesquisa estendeu-se também por estudos em genealogia, em livros já esgotados obtidos em sebos de todo país, e jornais da época na Hemeroteca Digital, além dos biógrafos de Machado, Lúcia Miguel Pereira e Godin da Fonseca.

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