Contexto social e político atualiza obras de Chico Buarque
Foto: Detalhe do clipe "Tua Cantiga", 2017/ Reprodução
Pela segunda vez consecutiva, o álbum Construção, de Chico Buarque, lançado há mais de 50 anos, é o primeiro da lista de leituras obrigatórias dos estudantes que irão prestar o vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 2022.
Além de revisitar a obra do artista mais representativo da resistência à ditadura militar, a prova da federal gaúcha também terá questões sobre os livros Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo; Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo; Deixa o quarto como está, de Amílcar Bettega; Bagagem, de Adélia Prado; São Bernardo, de Graciliano Ramos; As meninas, de Lygia Fagundes Telles; Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva; poemas selecionados, de Florbela Espanca; Papéis avulsos, de Machado de Assis; Úrsula, de Maria Firmina dos Reis; e Hamlet, de William Shakespeare.
Com o título “construção”, assim mesmo, em letras minúsculas, o disco que estampa na capa um Chico de bigode, que ainda nem tinha completado seus 27 anos de idade, foi uma surpresa para todos, da crítica ao público, incluindo aqueles que acreditavam que o músico fosse mais um moço bonito e bem comportado.
A obra continua chamando a atenção de professores de língua portuguesa pelo genial jogo com palavras proparoxítonas. Uma canção na contramão do “milagre brasileiro” alardeado pelos militares, parte da mídia e classe dominante da época, e que permanece carregada de sentidos na atualidade.
Em uma entrevista a Geraldo Leite, da Rádio Eldorado, em setembro de 1989, o próprio artista relata as condições em que o disco construção foi produzido: “existem músicas que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Existe algo de abafado, pode ser chamado de protesto”.
Anos de chumbo
Foto: Reprodução
Foto: Reprodução
Em 1971, a ditadura militar (1964-1985) pegava pesado no país. O Ato Institucional Nº 5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, instituiu o terrorismo de estado.
Além de institucionalizar a tortura, assassinato, perseguições e violações de direitos humanos de quem o Estado identificasse como inimigo, a medida determinou o fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas dos estados, permitiu a cassação de mais de 170 mandatos parlamentares, instituiu a censura prévia da imprensa e produções artísticas, a intervenção nos estados e municípios. “Deus lhe pague”, diz a letra da canção-título após enumerar: “por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir…”.
Meio século depois, com o país destroçado sob um governo eleito que conspira, promove o negacionismo letal e flerta com o autoritarismo, Chico Buarque publicou, em setembro passado, Anos de Chumbo e Outros Contos (Companhia das Letras, 2021, 168 p.).
Construção e Anos de Chumbo convidam a uma reflexão sobre o contexto político e social do país quando do lançamento do “álbum da maturidade” e a atual realidade brasileira que recebe o livro de estreia de Chico como contista. Qualquer semelhança entre o quadro de terror dos anos 1970 e os desmandos da era Bolsonaro não será mera coincidência.
Maturidade
Foto: Reprodução
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Primeiro livro de narrativas breves do autor de Estorvo (1991), Benjamin (1995) Leite derramado (2009) e Essa gente (2019) – que em 2019 ganhou o Prêmio Camões pelo conjunto da obra – Anos de chumbo reúne oito histórias curtas, densas, escritas com o domínio de quem se aprimorou como escritor depois das novelas e romances publicados.
Desde o primeiro relato, Chico diz a que veio. Em “Meu Tio” é apresentado um tipo boçal, autoritário e sem o mínimo de empatia. Segue em “Passaporte”, com um típico anti-herói perdido num voo Rio-Paris. No conto em que envolve milícia e futebol, “Primos de Campos”, sobrou até uma alusão ao seu tricolor do coração, o Fluminense.
Em “Copacabana” o clima é onírico e uma surpresa fica para o final. Há no conto “Para Clarice Lispector, com candura”, uma forma sensível de homenagear a escritora. “Sítio” conta a história de um casal que busca se refugiar da pandemia de covid-19.
Fechando os relatos, “Anos de chumbo” é uma narrativa irônica com sabor de vingança: “eram uns bonecos do Exército brasileiro, chumbados num pedestal de madeira, um deles tocando corneta, outro batendo continência”. Chico Buarque denuncia ao seu estilo – com sensível e indignada sutileza – as torturas e outros crimes da ditadura militar.
Música e literatura
“O Chico escritor revisita o tempo da ditadura de diversas formas, mas por um viés menos imediato do que se pode ouvir nas canções dele”, ressalva o escritor Luís Augusto Fischer, autor de Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Arquipélago, 2021) e professor de Literatura da Ufrgs.
Para Fischer, particularmente na canção que nomina o disco há muitas camadas de sentido e de forma. “O arranjo por si só carrega uma dimensão de construção propriamente dita, como coisa humana, carregada de drama, mas com um fim caótico”, analisa.
Há muitas diferenças de contexto, pondera o professor. Mas “o que não muda é que temos fantasmas que, por não serem adequadamente confrontados, ficam atormentando por décadas a fio. É o caso daquele tempo do miolo da ditadura militar, os tais anos de chumbo, retratados pelo disco e revisitados neste novo livro”, constata.