EDUCAÇÃO

Dilma, a educação e seus gargalos

O próximo governo terá como tema de casa qualificar a educação pública e regulamentar o setor privado diante da ofensiva do setor financeiro e do capital internacional no “mercado” do ensino
Por Marco Aurélio Weissheimer / Publicado em 17 de dezembro de 2010

Ensino

Foto: Marcello Casal Jr./ABr

Foto: Marcello Casal Jr./ABr

Os dois governos do presidente Lula foram marcados principalmente pela redução dos indicadores de pobreza e desigualdade e pela geração de emprego e renda no Brasil. Os avanços foram muitos, mas o próprio governo admite que há uma área onde ainda há muito por ser feito: a educação. A presidente eleita Dilma Rousseff (PT) e o ministro da Educação, Fernando Haddad, mantido no cargo, terão muito trabalho para cumprir a promessa de fazer a educação brasileira dar um salto de qualidade. Em setembro deste ano, a Unesco e um conjunto de entidades como a Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação (CNTEE), Conselho Nacional de Educação (CNE), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entre outras, lançaram uma “Carta-Compromisso pela Garantia do Direito à Educação de Qualidade”, que traz propostas para a “construção de um sólido projeto nacional”.

Esse documento apresentado a todos os candidatos que disputaram a eleição presidencial aponta alguns dos principais gargalos educacionais do país que precisam ser resolvidos nos próximos anos. São eles:

1. Elevar os investimentos em educação e mostrar, nos orçamentos públicos, a relevância do setor, que precisa ser integrado a um projeto maior de desenvolvimento nacional.

2. Valorização dos profissionais em educação. Isso significa promover formação, remuneração e novas perspectivas de carreira para os professores.

3. Incluir, até 2016, todas as crianças e jovens de 4 a 17 anos na escola; universalizar o atendimento da demanda por creche nos próximos dez anos; superar o analfabetismo dos jovens de 15 anos ou mais; alfabetizar plenamente todas as crianças até os 8 anos de idade.

4. Estabelecer padrões de qualidade para todas as escolas brasileiras e ampliar as matrículas na educação profissional.

Um dos nós a ser desatado pelo próximo governo é corrigir as desigualdades no sistema educacional

Foto: Vladimir/ABr

Foto: Vladimir/ABr

A carta compromisso reafirma um ponto que é reconhecido por todos os governantes, mas que vem sendo empurrado com a barriga há muito tempo: o salário dos professores. É impossível falar de uma “revolução” na educação sem que haja também avanços significativos nesta área. Em São Paulo, por exemplo, o estado mais rico da Federação, os salários dos professores são menores que os de estados como Amazonas, Tocantins, Mato Grosso, Roraima, Maranhão, Acre e outros. Mais grave ainda, esses salários vêm caindo. Em 2010, São Paulo ocupa a 14ª posição no ranking nacional da categoria. O salário-base do professor que ministra aulas nos cinco primeiros anos do Ensino Fundamental com jornada de 24 horas semanais, é de apenas R$ 785,00, e o do professor que ministra aulas do 6° ao 9° ano do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, com jornada de 24 horas semanais, é de R$ 909,00.

Educação na lógica do mercado

Protesto de professores para cumprir Lei do Piso

Foto: Fábio Rodrigues / ABr

Foto: Fábio Rodrigues / ABr

Além da questão salarial, outra questão que o novo governo deverá enfrentar diz respeito à crescente financeirização do setor. O “mercado” brasileiro de ensino já figura entre os dez maiores do mundo, com um movimento estimado entre R$ 53 bilhões e R$ 55 bilhões por ano. Este valor, cabe assinalar, considera apenas as mensalidades do ensino privado (Básico e Superior) e o mercado editorial (incluindo aí a venda de livros didáticos e a produção dos sistemas de ensino). A consolidação do setor como um “mercado lucrativo” ajuda a explicar a proliferação de cursos caça-níqueis de baixa qualidade. O aumento da renda média desse mercado vem atraindo investimento nacional e estrangeiro. Os investidores apostam no aumento da renda média da população e da demanda por mão de obra qualificada nos próximos anos. A taxa de ocupação das universidades privadas ainda é considerada baixa. Em 2008, por exemplo, as faculdades privadas ganharam em todo o Brasil 1,198 milhão de novos pagantes, para um total de 2,641 milhões de vagas oferecidas. A possibilidade de ampliar os negócios no mercado da educação vem despertando o interesse, especialmente do setor financeiro.

Hoje, dos cinco maiores grupos educacionais brasileiros, que juntos possuem 800 mil alunos, quatro deles são comandados por empresas do setor financeiro. Entre as 15 maiores empresas educacionais do país nove possuem um fundo ou banco de investimentos na sua estrutura de gestão. Entre os cinco maiores grupos – Estácio, Unip, Anhanguera, Kroton e Laureate – , somente a Unip não tem a presença do setor financeiro na sua administração. A Estácio é administrada pelo fundo GP; a Anhanguera pelo banco Pátria; a Kroton pela Advent International e a Laureate pelo fundo norte-americano KKR. A entrada do setor financeiro na educação iniciou em 2006 com a venda da Universidade Anhembi Morumbi para a Laureate International, e se intensificou em 2007 com a abertura de capital das empresas Anhanguera, Estácio, Kroton e SEB AS.

O Grupo Abril, por meio do seu braço educacional, comprou o Anglo Sistema de Ensino, o Anglo Vestibulares e a Siga, especializada na preparação para concursos públicos. O negócio criou a segunda maior rede de ensino do país. O grupo Abril já controla as editoras Ática e Scipione, além do sistema de ensino SER, que tem 350 escolas associadas. Com a aquisição do Anglo, acrescentou mais 500 instituições de ensino ao seu guarda-chuva. Um dos negócios mais rentáveis do grupo Abril é vender publicações didáticas – ou não – a secretarias estaduais de ensino, como ocorreu no governo de São Paulo, sob o comando do ex-ministro da Educação, Paulo Renato.

As entidades que subscrevem a “Carta- Compromisso pela Garantia do Direito à Educação de Qualidade” cobram do governo federal que regulamente e discipline essa expansão, impedindo a proliferação de cursos sem condições mínimas de qualidade.

Direito de todos, acesso desigual
No Brasil, o debate sobre a qualidade é indissociável dos temas da desigualdade social e da desigualdade de oportunidades. Apesar dos inúmeros avanços obtidos nos últimos anos nas políticas sociais de combate à fome e à pobreza, a desigualdade ainda é um dos grandes desafios do Brasil no terreno da educação. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado dia 18 de novembro, traz uma análise da educação no período de 1992 a 2009 e traça um quadro detalhado da atual situação da escolarização da população brasileira com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O resultado dessa pesquisa mostra que ainda há muito por fazer.

Segundo o diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Jorge Abrahão, a educação brasileira registrou muitos avanços nos últimos 20 anos, mas ainda há algumas desigualdades que permanecem firmes. Essas desigualdades exigirão um conjunto de intervenções nas esferas federal, estadual e municipal. Trata-se de desigualdades entre regiões, entre a população urbana e rural e também desigualdades de raça e cor. A dimensão dessas desigualdades fica clara quando se olha para o índice de analfabetismo entre a população de 15 anos ou mais, que ainda é considerado muito alto, atingindo 9,7% dessa faixa populacional. A distribuição desse índice apresenta grandes diferenças entre a população urbana e rural (4,4% contra 22,8%), branca e negra (5,9% contra 13,4%), e entre as regiões Sul e Sudeste (5,5% contra 18,7%). Quando comparados os 20% mais ricos da população brasileira e os 20% mais pobres, a diferença também é grande: 2% contra 18,1%. O maior percentual de pessoas que não sabem ler e escrever encontra-se na população acima de 40 anos: 16,5%.

A média de anos de estudo na população com 15 anos ou mais é de 7,5, abaixo do mínimo de oito anos previsto na Constituição Federal. Jorge Abrahão resume assim o tamanho do problema: “Estamos muito longe de atingir indicador aceitável. Como a taxa de crescimento anual tem sido de 0,14/ano, podemos concluir que ainda faltam quatro ou cinco anos para chegarmos ao mínimo (Ensino Fundamental). Se considerarmos os 11 anos, tempo necessário para conquistar o Ensino Médio, o período será ainda mais longo”.

A falta de adequação da idade ao grau de ensino
Outro problema sério que persiste na educação brasileira é a falta de adequação da idade ao grau de ensino. Na faixa entre 15 e 17 anos, por exemplo, mais de 85% das pessoas estão na escola, mas apenas 50,9% frequentam o Ensino Médio. No contexto atual da educação nacional, esse índice de adequação diminui conforme aumenta a idade. Outro obstáculo para uma educação de qualidade é o baixo índice de conclusão dos cursos. Hoje, apenas 66,6% dos alunos que entram no Ensino Médio conseguem concluí-lo. Um caminho para reduzir esse problema em particular vem sendo apontado pelo programa Bolsa Família, que tem contribuído para a redução da evasão escolar.

Segundo dados oficiais de 2010, a frequência escolar de crianças de 6 a 17 anos das famílias beneficiárias do programa foi 4,4% maior em comparação com a frequência escolar das crianças das famílias não beneficiárias. Somente na região Nordeste, essa diferença foi de 11,7 pontos percentuais a favor das crianças das famílias beneficiárias. A progressão de série escolar para crianças de 6 a 17 anos de famílias beneficiárias foi 6,0% maior em comparação com famílias não beneficiárias. O impacto é maior entre as meninas de 15 e 17 anos, quando a diferença chega a 19 e 28 pontos percentuais, respectivamente.

Outro dado que impacta positivamente a educação é a tendência de queda da taxa de trabalho infantil no país. Em 2004, havia um contingente de 5,3 milhões de trabalhadores com idade entre 15 e 17 anos. Em 2009, esse número caiu para 4,3 milhões. O nível de ocupação entre 5 e 17 anos de idade continuou a tendência de declínio, observada nos anos anteriores, em todas as faixas etárias, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/ 2009).

Os problemas apontados pelo IDH
Esses resultados positivos, porém, não escondem os problemas a serem enfrentados. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) colocou o Brasil em 73° lugar em um ranking de 169 nações. Os números da educação foram os que menos mostraram avanço no Brasil. Se fôssemos considerar apenas o dado da média de anos de estudo da população adulta, o Brasil estaria em 105° lugar neste ranking.

Segundo o relatório de 2010, o IDH do Brasil apresenta “tendência de crescimento sustentado ao longo dos anos”. De acordo com o documento, o rendimento anual dos brasileiros é de US$ 10.607, e a expectativa de vida, de 72,9 anos. A escolaridade é de 7,2 anos de estudo, e a expectativa de vida escolar é de 13,8 anos. Para o economista Flávio Comin, do Pnud, “o Brasil continua na sua trajetória, que é uma trajetória muito harmônica, ou seja, o IDH brasileiro vem crescendo igualmente nas três dimensões (saúde, educação e renda)”. O relatório destacou o sucesso econômico recente do Brasil, que desafiou “a ortodoxia do Consenso de Washington” e seu receituário de medidas liberais no campo econômico.

O mesmo documento mostrou que 8,5% dos brasileiros são pobres e sofrem privação em saúde, educação e renda. Destes, o principal item, segundo o relatório, é a educação. Em outras palavras: o que mais pesa na pobreza é a educação. O problema apareceu com uma dimensão maior, ressalta Comin, em função de mudanças metodológicas na composição no IDH, mudanças estas que produziram uma avaliação mais rigorosa e um padrão mais alto sobre o sistema educacional e a qualidade desse sistema.

O Ministério da Educação e o Ipea reconheceram problemas, mas contestaram as leituras sobre a pesquisa. Para Serguei Soares, pesquisador do Ipea, “se você olha a educação da população brasileira, ela é muito ruim graças às péssimas políticas educacionais dos anos 70, 80 e 90”. “Melhorou só lá por meados de 90, então a gente tem um passivo educacional intenso”, acrescentou. Mas os problemas são inegáveis. Segundo o levantamento da ONU, a média de anos de estudo da população adulta no Brasil é de 7,2 anos. Na Noruega, o primeiro do ranking, são 12,4 anos em média.

Na avaliação do Pnud, não basta mais colocar as crianças e os jovens na escola. “Agora, eles têm que estar na série adequada, na série que se espera que eles estejam para que você consiga dar a eles uma oportunidade igual”, observou Flávio Comin. O economista resumiu assim o desafio colocado diante do Brasil: “Com o novo IDH, você tem novos critérios, e é dentro desses novos critérios, que são mais qualitativos, que nós devemos ser julgados. À medida que você levanta esses novos critérios, a ambição de ter um sistema educacional melhor, um sistema educacional mais justo, fica mais evidente do que era antes. Antigamente, nós tínhamos apenas taxa de matrícula e alfabetização. Hoje, temos um modelo dentro do qual nós estamos esperando que as pessoas estudem mais e com qualidade melhor, e é isso que está sendo refletido no novo IDH”.

Pobres estão condenados a estudar pouco
Esse prognóstico é compartilhado pelo presidente do Ipea. Para Marcio Pochmann, estamos vivendo uma transição do trabalho material para o trabalho imaterial. “O conhecimento passa a ser cada vez mais estratégico, exigindo uma educação continuada, uma educação para toda a vida. As grandes empresas já perceberam isso e passaram a investir pesadamente em universidades corporativas”. O debate sobre a melhoria do sistema educacional brasileiro deverá enfrentar esse tema que hoje não está elaborado. Na avaliação de Pochmann, um dos principais problemas relacionados a esse tema é que ele acaba funcionando como um mecanismo reprodutor de desigualdades sociais.

Hoje, no Brasil, os filhos dos pobres estão condenados ao ingresso no mercado de trabalho muito cedo, o que implica, muitas vezes, o abandono da escola, quando não a combinação de brutais jornadas de atividades de 16 horas por dia (8 horas de trabalho, 2 a 4 horas de deslocamentos e 4 horas de frequência escolar). A aprendizagem de qualidade torna-se muito distante nessas condições. Os filhos dos ricos, por sua vez, permanecem mais tempo na escola, ingressam mais tardiamente no mercado de trabalho e acabam ocupando os principais postos, com maior remuneração e status social, enquanto os filhos dos pobres seguem disputando a base da pirâmide do mercado de trabalho, transformado num mecanismo de reprodução das desigualdades no país.

Para o economista, a intenção da futura presidente Dilma Rousseff de erradicar a pobreza no Brasil exigirá, entre outras coisas, romper com esse mecanismo vicioso, o que significa garantir mais anos de educação para os setores mais pobres da população. E mais anos de uma educação de qualidade. Como os mais pobres deixam a escola mais cedo por uma exigência de começar a trabalhar logo, isso exigirá, por sua vez, políticas que garantam seu sustento neste período em que ficará mais tempo na escola. Isso exigirá investimentos pesados por parte do Estado e das diferentes instâncias de governo no país, e uma escolha por parte da sociedade: a educação é, de fato, uma prioridade? A resposta a essa pergunta exigirá uma definição também dos limites (ou da ausência deles) ao processo de mercantilização da educação. Afinal de contas, é perfeitamente possível – e rentável – um sistema educacional que inclua a maioria da população com cursos rápidos, pragmáticos e descartáveis, que garantam apenas a reprodução da força de trabalho e o funcionamento da estrutura produtiva. Mas essa deve ser a natureza da Revolução Educacional que o Brasil está perseguindo?

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