O direito de nascer naturalmente
Foto: Igor Sperotto
Na contramão da indústria de cesarianas, representantes de organizações não-governamentais (ONGs) brasileiras lutam para promover o parto natural. Sustentam que as mulheres não perderam a capacidade de dar à luz de forma natural. Por falta de informações, de acompanhamento adequado da gestação e por pressão de médicos, no entanto, 20% das gestantes ainda se submetem à cirurgia de cesariana para terem seus filhos. As entidades lançaram uma campanha nacional de conscientização na tentativa de sensibilizar governo e classe médica a reduzir as intervenções cirúrgicas e até prepararam um dossiê – com pesquisas e artigos científicos – que condena a banalização da cesariana e fundamenta a tese difundida em diversos países: o parto normal é o mais seguro, tanto para a mãe quanto para o bebê.
O dossiê, organizado por integrantes da ONG Amigas do Parto, foi entregue ao Ministério Público Federal (MPF), em São Paulo, que ingressou na Justiça em agosto com uma Ação Civil Pública para reduzir ou evitar as cirurgias quando não houver riscos. O MPF também promoveu um debate com representantes do governo, de hospitais e de entidades de classe de médicos e enfermeiros.
Entre as medidas propostas estão mudanças, por exemplo, no valor da remuneração dos médicos pelos planos de saúde. O MPF cobra, entre outras medidas, ações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a fim de regulamentar os serviços obstétricos realizados por essas operadoras.
De acordo com o Ministério da Saúde, as cesarianas tiveram um crescimento nos últimos anos e já representam 80% dos partos feitos através dos planos de saúde e 43% dos nascimentos pelo SUS. A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que esse tipo de cirurgia alcance, no máximo, 15% dos partos.
A solução pode estar nas mãos de quem realiza os partos. Em países como o Uruguai e Holanda, as parteiras são profissionais preparadas e não só estão habilitadas pelo governo para atuar durante a gestação como são presença fundamental nos hospitais. A taxa de parto domiciliar na Holanda é de 30% e os índices de morte materna e de cesáreas se encontram entre os mais baixos do mundo. No Uruguai, o índice de cirurgias no parto não passa de 25% nos hospitais públicos e privados.
Já no Brasil, os médicos são os únicos autorizados a realizar partos nos hospitais e o processo de convencimento e conscientização destes profissionais é mais difícil porque eles nem sempre estão preparados ou dispostos a acompanhar até oito horas de trabalho de parto. Resultado: houve uma inversão da maneira de parir e nascer, do processo fisiológico à parafernália hospitalar e à lógica da “produtividade” médica.
Foto: Antônio Cruz / Abr
Em regiões menos urbanizadas e até na periferia das grandes cidades, é comum a presença das parteiras ou das doulas, às vezes a única alternativa de apoio às gestantes. Em agosto, parteiras tradicionais se reuniram em Brasília para pressionar o governo pelo reconhecimento da profissão pelo SUS.
As doulas, acompanhantes das gestantes, também são muito valorizadas. Mara Freire, doula e educadora perinatal, 47 anos, 30 de experiência, tem no currículo 580 partos acompanhados no Brasil, Portugal, França e Espanha. Integrante da ONG Amigas do Parto, ela defende a capacitação das doulas para dar suporte emocional, ensinar técnicas de relaxamento, exercícios físicos e respiratórios às gestantes e acompanhá- las também no pós-parto, aleitamento e cuidados com os recém-nascidos. Ela considera a indústria da cesárea um desrespeito à vida. “A finalidade única é para as vidas da mãe e do bebê, mas virou uma máquina de retirada em série de crianças para fazer dinheiro, de forma agressiva e irresponsável”.
Mulheres especiais
Cinco da manhã de uma quinta-feira de setembro, dia 16, no hospital público de Rivera, Uruguai. Duas parteiras e uma estagiária recepcionam uma gestante com fortes dores. A mãe da grávida a acompanha. A gestante é colocada num quarto, pois é preciso esperar maior dilatação. Quatro horas depois, nasce Gian Augustin, dois quilos e duzentos gramas. O bebê chora sem parar, mas algumas horas depois a família já está posando para as fotos com a criança, ao lado das parteiras. Sílvia Flores, parteira há 46 anos, diz que nem os médicos nem as enfermeiras obstetras estão realmente capacitados a realizar partos normais. “Eles não foram preparados para isso, não têm paciência para acompanhar por até oito horas um trabalho de parto”, afirma.
Toda essa atenção faz com que o índice de cirurgias oscile em 25% nos hospitais públicos e privados. Em 2009, dos 768 partos realizados em Rivera, 199 foram por cesárea.
Mabel Larrosa e Mirta Gomes, ambas com 40 anos de carreira, e Noelia Xavier, 26 anos de idade, ressaltam que o papel das parteiras é imprescindível desde o começo da gestação. “Acompanhamos todo o processo, realizamos reuniões em grupos, tiramos muitas dúvidas”, destaca Mabel. “Somos mulheres especiais, vocacionadas”, exalta Mirta.
A vocação passa por cinco anos de formação na Escola de Parteiras, na capital, Montevidéu. É para lá que as estagiárias Kiria Sian e Maria Eugênia retornarão dentro de quatro meses para concluir o curso, que completou agora 150 anos, mais antigo que a Faculdade de Medicina.
A chegada de Santiago
Foto: Divulgação
A jornalista Sabrina Santos, 28 anos, relata que começou a pesquisar sites de entidades que trabalham pelo parto humanizado logo que soube da gravidez – ela tinha 24 anos quando engravidou. “Instintivamente sempre quis ter meu filho de parto normal e de cócoras.” Ela lamenta que nenhum médico a tenha aconselhado a fazer o parto normal. “A primeira obstetra com quem falei disse que não era saudável demorar mais que oito horas, o que é um tempo perfeitamente normal, ainda mais no primeiro filho, e que faria uma cesárea se passasse desse tempo. A maioria dos médicos se mostra intolerante se o trabalho de parto se prolongar muito”. A jornalista diz que é preciso desmistificar a cena do parto sofrido. “A mulher saudável tem todo o potencial de ter um parto normal e feliz, simplesmente porque a natureza a prepara para isso, porque, de fato, é o normal.”
Marcas do nascimento
Foto: Igor Sperotto
A arquiteta Francisca Schiaffino, 30 anos, teve a Isabela, hoje com dois anos, por parto normal através de convênio médico no hospital Moinhos de Vento. Apesar de suas amigas terem lhe aconselhado a fazer por cesárea, devido à comodidade de agendar a hora mais adequada e por acreditarem que dessa forma sentiria menos dor, ela optou pelo parto natural. “Minha vontade sempre foi fazer parto normal e encontrei em meu médico o apoio que precisava. No final, me senti realizada. A dor foi insignificante e a emoção foi imensa”, compara
Para o ginecologista que realizou o parto de Francisca, Sérgio Rocha, 60 anos, 34 de profissão, o nascimento de forma natural é sempre melhor do que de uma cesárea, mas ele adverte que, com os meios de diagnóstico e de acompanhamento do trabalho de parto existentes, quaisquer sinais que possam apresentar riscos podem fazer com que o obstetra intervenha, por angústia, antecipadamente, pois se algo acontecer com o bebê, ele é quem será responsabilizado. “O equilíbrio e o bom senso são meus referenciais profissionais. Levo em conta os riscos fetais e os problemas emocionais que possam ocorrer com os pais”, pondera Rocha.
A psicanalista Carla Cervera, 42 anos, que teve uma filha por cesárea e um filho de parto natural afirma que a cirurgia representa uma frustração à maternidade. “Havia me preparado para ter a Marcella por parto normal. Não queria que cortassem meu corpo. Não queria carregar essa marca na carne, que é a marca da impossibilidade de realizar um parto por mim mesma. Fiquei muito tempo sozinha, com fome, sentindo dores. Às vezes faziam toque, o médico demorou a chegar. Aí me ofereceram anestesia! Impossível não aceitar. Daí para acontecer uma cesárea é muito fácil. No segundo parto, estava mais segura, com a ajuda de uma doula. “Tirei meus medos e na hora do parto meu filho saiu muito rápido. Foi engraçado até: eu estava de cócoras e ele saiu inteiro, numa só contração”. O nascimento sem o trauma da cirurgia, diz Carla, “é o momento importante para o bebê, das marcas do nascimento, e o momento de ‘empoderamento’ da mulher”.