Ilustração: Pedro Alice
Ilustração: Pedro Alice
Em um dos homicídios investigados pelo mais famoso personagem da literatura policial, Watson interrompe os devaneios musicais de Sherlock Holmes dizendo algo como:
– Você não parece estar muito concentrado no caso que temos em mãos.
Ao que Holmes responde:
– Ainda não há dados suficientes. É um erro capital teorizar antes de possuir todas evidências. Isto distorce o julgamento.
Neste diálogo há um tema central para a vida em sociedade e, especialmente, para o Estado Democrático de Direito. Muito normalmente, somos conduzidos por preconceitos. Todos nós. Em boa medida, isto tem a ver com o regular funcionamento do cérebro que faz com que interpretemos situações a partir de significados que, por diferentes razões históricas, se revelaram úteis e que antecedem a elaboração de um conceito (neste sentido, são pré-conceitos).
Há uma razão para isso; afinal, se em cada momento fôssemos obrigados a refletir sobre significados ocultos – não revelados à percepção imediata ou não codificados culturalmente – a vida seria impossível, porque estaríamos imobilizados pela dúvida e pelo medo. Para além do que há de banal e rotineiro, entretanto, há infinitas situações, problemas e dilemas que não se pode resolver pelo “piloto automático” dos nossos cérebros e que demandam investigação e pensamento sobre as evidências antes de “acharmos” alguma coisa.
O que ocorre, não obstante, é que somos facilmente apanhados na armadilha de, primeiro decidir, para depois encontrar razões que justifiquem escolhas intuitivas ou preguiçosas. O processo de “confirmação do preconceito” (confirmation bias) é conhecido. Ele ocorre quando passamos a coletar dados que reforçam nossa conclusão, enquanto desconsideramos as informações que a invalidariam. Trata-se, evidentemente, de um embuste – não necessariamente consciente – pela qual o sujeito impede que os dados desconsiderados contem uma história diferente daquela em torno da qual o preconceito já o amarrou. Dito de outra forma: normalmente vemos aquilo que desejamos ver.
É preciso construir uma disciplina rigorosa – aquela exigida pela ciência – para reduzir o risco de visões distorcidas e, ainda, alimentar saudável desconfiança sobre nossas convicções. Aqui, vale lembrar Nietzsche para quem a maior inimiga da verdade não é a mentira, mas a convicção.
Este é o ponto. Os que carregam certezas possuem menos chances de se aproximar da verdade do que aqueles que duvidam. E, duvidando disso, talvez seja preciso especificar que o risco maior seja o da certeza em excesso, posto que uma vida sem qualquer certeza seria também infernal.
Pensem, por exemplo, no processo penal. Há um crime e uma prisão em flagrante. O bastante para a certeza da autoria? Claro que não. No Direito Penal, prisões em flagrante não são – ao contrário do que imagina o senso comum – aquelas feitas quando se observa um crime (estas, chamadas de “flagrante próprio”, são raras), mas prisões realizadas “logo depois” do fato, o que a jurisprudência considera até 24 horas após. Um preso em flagrante, assim, pode não ter qualquer relação com o crime. Ah, mas a vítima reconheceu o suspeito. Temos, então, o autor? Ainda não.
As pessoas se parecem e a capacidade de memorizar detalhes e expressões faciais, especialmente em momentos de aguda tensão, é reduzida. Ah, mas o suspeito confessou a autoria. Tudo resolvido? Infelizmente, não. Frequentemente, há quem confesse o que não fez. Porque foi torturado, chantageado; porque foi corrompido; porque queria livrar um filho ou por loucura mesmo, mitomania e desejo de fama. Razão pela qual não se admite a condenação se a única evidência for a confissão. Para ser válida, a admissão de culpa deve ser confortada por outros elementos colhidos na instrução criminal.
Em nossas vidas, entre o amor e o desamor, nas vitórias e derrotas, no real e no sonhado, as dificuldades para a prova são possivelmente maiores. Uma razão suficiente para reler Sherlock Holmes, para nunca condenar sumariamente e para perguntar sempre: será?