EDUCAÇÃO

Reprovação garante qualidade?

O CNE recomenda a progressão continuada nos três primeiros anos do Ensino Fundamental, mas os problemas estruturais da educação brasileira podem atrapalhar
Publicado em 8 de setembro de 2010

Educação - Séries iniciais

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O Conselho Nacional de Educação (CNE) recomenda a progressão continuada nos três primeiros anos do Ensino Fundamental e defende que a reprovação não cabe em um modelo de educação como direito de todos. Especialistas concordam, mas temem que a prática possa não ser tão eficiente diante da falta de infraestrutura das escolas brasileiras. Por trás dessa discussão, no entanto, há um problema de fundo bem mais grave: a qualidade da educação no Brasil deixa muito a desejar.

G., hoje com 9 anos, teve que recomeçar todo um processo de socialização em sala de aula em 2010, porque no final do ano passado não apresentava, segundo os profissionais que o avaliaram, condições de acompanhar o 3º ano do Ensino Fundamental. “Ele lia palavras e frases inteiras. Mas disseram que ele não conseguia interpretar textos, então a professora achou melhor reprová-lo”, conta a mãe, Claudia.

Na verdade, relata Claudia, já no início do segundo semestre de 2009, o menino ficava ansioso diante da ameaça de “rodar” e estava sempre se propondo a fazer um maior esforço e conseguir acompanhar os colegas. Não apenas pelo conteúdo, mas para poder no ano seguinte contar com a companhia da turma com a qual estava há dois anos.

Diante da reprovação, a mãe tentou reanimá-lo, dizendo que em 2010 seria melhor porque ele, já sabendo a matéria, poderia inclusive ajudar aos coleguinhas. “Ele aceitou bem, saímos de férias e não se tocou mais no assunto. Mas quando faltavam poucos dias para a volta às aulas, ele teve crises de choro quando lembrava que não teria mais os colegas com quem havia convivido nos dois últimos anos”.

Passado dois terços do ano letivo de 2010, G. ainda se queixa em casa da falta de amizades em sala e revela que tem medo de “rodar” de novo, embora esteja indo bem na escola. “Ele sempre aprendeu muito com o lúdico. A maneira de ensinar nas escolas é muito padronizada, então qualquer criança que esteja um pouquinho fora do padrão sente dificuldades”, observa a mãe, que não concorda com reprovação nessa faixa etária porque para ela “cada criança tem seu tempo”.

Maria Aparecida Mendes

Foto: Maricélia Pinheiro

Maria Aparecida Mendes

Foto: Maricélia Pinheiro

E é justamente baseado nessa tese que o Conselho Nacional de Educação (CNE), através do Parecer de nº 11, recomenda que as escolas não reprovem nos três primeiros anos do Ensino Fundamental, denominado ciclo de alfabetização. Na prática, seria a adoção do sistema de ciclos, já implantado em algumas redes públicas do país, entre elas a municipal de Porto Alegre.

A orientação do CNE aguarda para ser homologada pelo Ministério da Educação (MEC) e pode virar lei. Enquanto isso, a questão gera polêmica e naturalmente convida pais, educadores e a sociedade como um todo para discutir um problema maior: a qualidade da educação no Brasil. “Independente da forma de organização da escola, se por ciclos ou seriada, a verdade é que os alunos têm aprendido muito pouco. Costumam chegar ao final do Ensino Fundamental com defasagem”, observa Márcia Jacomini, pedagoga, doutora em Educação pela USP e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Segundo dados do Saeb, 79 mil alunos foram reprovados na 1ª série do Ensino Fundamental em 2008. São crianças de seis anos para quem uma reprovação, afirmam os especialistas, só trará prejuízos emocionais e servirá como desestímulo. Vale ressaltar que o 1º ano atual corresponde ao último ano da préescola, onde as crianças ainda estão mergulhadas na primeira infância e necessitam de todo um aparato lúdico para aprender.

E essa era a proposta quando foi implantado o Ensino Fundamental de nove anos. “As escolas deveriam ter se adaptado para receber essas crianças de seis anos. Mas a grande maioria simplesmente transformou o 1º ano na antiga 1ª série, com salas lotadas, alunos enfileirados, aprendendo letra cursiva. Algumas privadas fizeram isso até por pressão dos pais, que não compreendem o grau de maturidade dessa faixa etária”, comenta Maria Aparecida Mendes, pedagoga e psicopedagoga que trabalha com as séries iniciais.

César Callegari, membro do CNE, autor e relator do parecer, se apoia na certeza de que as crianças “têm percursos convergentes, mas não iguais” e de que a reprovação nos anos iniciais está muito mais ligada à escola e aos métodos utilizados para ensinar do que ao “fracasso” do aluno. “É preciso garantir o direito à aprendizagem para todas as crianças”, defende. Nesse sentido, o Parecer orienta que as escolas devem, obrigatoriamente, desenvolver projetos político-pedagógicos que visem o disciplinamento dos tempos e espaços de recuperação, de forma que os alunos com atraso escolar possam se recuperar antes do final do ciclo de três anos.

Em tese, observa Cecília Farias, diretora do Sinpro/RS e ex-presidente do Conselho Estadual de Educação, a ideia de não reprovar e trabalhar na recuperação do aluno com dificuldades no ano seguinte é muito boa. No entanto, colocar isso tudo na prática não será uma tarefa fácil. “O ‘fracasso’ pode ser muito pior ao final de três anos. Para que dê certo, é preciso haver acompanhamento individual do aluno”, diz a professora.

Maria Aparecida Mendes compartilha a mesma preocupação e teme que as escolas não estejam preparadas para mais essa mudança. “Para que funcione é preciso que as escolas estejam muito bem equipadas de recursos materiais e humanos, de maneira que possa oferecer aos alunos outros caminhos de aprendizagem. A adoção do turno integral para essa faixa etária, com atividades de construção do conhecimento e não apenas como passatempo, poderia ser um bom começo”, acredita.

A cultura da reprovação

Uma orientação pedagógica que vai no sentido de banir a reprovação ainda gera polêmica no Brasil. Mas em países mais avançados, o modelo proposto pelo CNE já é realidade há muito tempo. “Outros países adotaram essa política por questões lógicas. A reprovação não se encaixa na ideia de educação como direito de todos”, assinala Maria Luisa Xavier, doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Ufrgs (Faced).

Para Márcia Jacomini, da Unifesp, “a reprovação está ligada à cultura brasileira”. E é nessa linha que caminha a grande maioria dos especialistas atualmente. Embora reconheçam que a prática desse modelo em um país com tantas dificuldades, especialmente na rede pública, não é uma tarefa simples, são unânimes em dizer que o recurso da reprovação não cabe dentro do paradigma da educação como direito.

A reprovação, defendem, está intimamente ligada à ideia da educação como privilégio. Ou seja, funciona como uma espécie de peneira, que seleciona “os melhores” e exclui do sistema os demais.

José Francisco Soares, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), presidente da Associação Brasileira de Avaliação Educacional e membro do Conselho Consultivo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) defende que “a criança tem o direito de ser avaliada para que suas necessidades de aprendizado possam ser atendidas e não para ser expulsa da escola”. Se for constatado que não aprendeu, tem o direito a uma nova oportunidade por um processo diferente, e o professor responsável, segundo ele, deve usar o não aprendizado para reavaliar a sua maneira de ensinar.

Mas se não é adequado reprovar e, ao mesmo tempo as escolas brasileiras não estariam preparadas para trabalhar com um modelo que exige uma melhor infraestrutura, o que fazer com o enorme contingente de analfabetos funcionais que se formam todos os anos? O consenso é de que voltar ao sistema seletivo com reprovação não ajuda em nada, até porque este é o maior responsável pela evasão escolar. E a chamada progressão continuada (não reprovação), por si só, não significa um melhor ou pior ensino. A diferença ficaria por conta da didática. “É preciso colocar o aprendizado do aluno como valor maior e prioridade absoluta da escola. No entanto, a ação da escola precisa receber o apoio de políticas sociais que apoiem as famílias na importante tarefa de educação de seus filhos”, diz Soares.

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