Abuso de corticoides no rol dos erros médicos da pandemia
Foto: Igor Sperotto
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O suposto tratamento precoce promovido pelo governo Bolsonaro como solução para a covid-19 não se limitou à hidroxicloroquina. Outros remédios também foram usados à revelia de estudos científicos, ainda que as evidências apontassem que esses fármacos poderiam até fazer mal se usados da maneira incorreta. Com função validada pela ciência para o tratamento de pacientes internados, corticoides também têm sido aplicados de forma errônea ao longo da pandemia. Em associação ao “kit covid”, médicos entusiastas do tratamento precoce promoveram o uso domiciliar de remédios como prednisona, dexametasona e metilprednisolona e a aplicação de ultradoses dessas drogas, terapias que podem ter efeitos adversos incertos e atrapalhar a recuperação de pacientes.
Em fevereiro de 2021, completava-se quase um ano de pandemia da covid-19, mas a médica intensivista e doutora em pneumologia Ana Carolina Peçanha ainda internava pacientes que estavam tomando remédios ineficazes contra a doença. Na UTI do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), onde ela trabalha, para além do famoso “kit covid”, com ivermectina, hidroxicloroquina e azitromicina, outro receituário também chamava atenção: altas doses de corticoides, classe de medicamentos que agem na supressão da imunidade e têm efeitos anti-inflamatórios. “Alguns pacientes que chegavam tomaram doses elevadas ainda em tratamento domiciliar”, declara a intensivista.
Foto: Igor Sperotto
Na época, o uso desses remédios já era consagrado para o tratamento da doença, mas só para casos muito específicos, como em pacientes hospitalizados em necessidade de tratamento com oxigênio ou respirador mecânico – ou seja, não deveriam ser receitados antes da internação. “Dar corticoide em uma fase em que nosso sistema imune ainda é capaz de dar conta do vírus (como em casos leves ou moderados) pode fazer mais mal do que bem”, explica Peçanha. E esse tipo de uso não parou em 2021. Em julho deste ano, por exemplo, o cirurgião vascular Seleno Glauber atendeu uma paciente saudável, mas positivada para covid-19, que chegou à consulta relatando estar tomando altas doses do fármaco, quase o dobro do que seria recomendado para hospitalizados. “Paciente assintomática vacinada testou positivo para covid. Médico passou azitromicina e corticoide e cobrou R$ 700 pela consulta via WhatsApp”, desabafou Glauber.
A corticoterapia foi um dos primeiros tratamentos a terem eficácia comprovada contra a covid-19. A evidência veio por meio do estudo britânico Recovery, o qual testou mais de 15 fármacos diferentes contra a doença em cerca de 40.000 pacientes – o ensaio clínico teve seus resultados preliminares divulgados em julho de 2020. A pesquisa, no entanto, apontou benefício do uso da dexametasona, um potente corticoide, apenas para pacientes hospitalizados, em oxigenoterapia ou ventilação mecânica. Já o uso domiciliar, ou ambulatorial, pelo contrário, foi correlacionado a uma maior mortalidade. “Eles viram que o paciente fora de oxigenoterapia se prejudicava com o corticoide”, afirma Peçanha. O mesmo Recovery, aliás, também testou hidroxicloroquina e azitromicina e não encontrou eficácia contra o coronavírus em nenhum dos casos.
“Entre maio e julho de 2020 começam a sair esses grandes estudos britânicos. Depois deles, saíram outros que chancelaram esses dados, mas a linha mestra saiu dali. Houve a transição de todo mundo ler o resultado e começar a aplicar”, lembra o médico intensivista Wagner Nedel, do Hospital Conceição de Porto Alegre.
Sem evidências, mas com endosso do Ministério da Saúde
Nedel se recorda de ver protocolos que recomendavam o “kit covid” associado ao uso de corticoides circularem pelo WhatsApp de médicos desde o início da pandemia. “Eram tratamentos sem embasamento científico”, assegura. No entanto, muitos desses protocolos divulgados entre abril e junho de 2020 influenciaram políticas públicas de combate à pandemia e catapultaram médicos antes desconhecidos à condição de influenciadores digitais. Com isso, quando foram publicadas as primeiras evidências que apontavam a ineficácia da cloroquina, por exemplo, esses mesmos profissionais as negaram de pronto. “Vejo que o kit covid promoveu um conforto cognitivo naquela época, um falso senso de tranquilidade, de que médicos sabiam o que estavam fazendo e de que não haveria ainda uma grande incerteza sobre a doença”, pondera Peçanha.
Um desses protocolos que circulava por grupos de WhatsApp foi batizado de “protocolo de Madrid”, criado por uma médica piauiense radicada na Espanha, a internista Marina Bucar. Com base na experiência pessoal de Bucar em um hospital universitário espanhol ainda em março de 2020, a receita era simples: cloroquina e azitromicina para sintomas leves, e corticoides para a “fase inflamatória”, suposto momento da doença em que surgiriam febre e inflamação pulmonar, mas sem sinais de falta de ar ou necessidade de oxigenoterapia. “Essa divisão em fases da covid usada nesse tratamento precoce não existe. Não temos essa separação, nem é validado pelos órgãos científicos internacionais. É algo à margem das evidências”, rebate Peçanha.
Foto: HCPA/ Divulgação
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Com a chegada do vírus ao Brasil, o “protocolo” de Bucar passou a ser aplicado no interior do Piauí, a partir do município de Floriano, onde sua família mantém uma faculdade privada. A fama nacional veio após um vídeo da ex-ministra da Família e Direitos Humanos Damares Alves, que visitou a cidade e afirmou ter testemunhado um “milagre” com o uso das orientações. “Estou levando o protocolo que é usado aqui, monitorado por uma cientista que tá na Espanha, o protocolo de Madrid, feito por uma brasileira (Marina Bucar), e estou levando para o Brasil inteiro”, disse Alves à época, em maio de 2020. Bucar não respondeu à tentativa de contato da reportagem via Instagram – a médica tem hoje 83 mil seguidores na rede social.
Semanas depois, o Ministério da Saúde publicou orientações no manejo da covid-19 que, além do kit covid, recomendavam a corticoterapia domiciliar. Na esteira do protocolo de Bucar, o material também orientava a pulsoterapia de corticoides para pacientes hospitalizados graves – ou seja, o uso de altas doses em curtos períodos de tempo – com o objetivo de imunossuprimir o paciente. Arriscada, ainda hoje não há evidências nem estudos que atribuam eficácia à técnica. “Se houvesse uma unidade no combate à covid, não teríamos médicos na dúvida se devem acreditar no protocolo que receberam via WhatsApp. O Ministério da Saúde foi alvo de uma ação deliberada de pseudociência, em que todos os ministros contrários ao kit covid ou a favor de medidas não farmacológicas, como o isolamento, eram postos para fora”, critica o médico infectologista Alexandre Naime, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
O “milagre” dos corticoides
Foto: Igor Sperotto
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A ideia por trás do uso de corticoides contra a covid-19 seria prevenir a “tempestade de citocinas”, uma resposta imunológica excessiva associada a maior mortalidade por covid-19 – a classe de fármacos agiria impedindo essa super-resposta do corpo ao vírus. “Existia essa plausibilidade de que o corticoide funciona? Sim, mas aí se estudou e viu que era apenas em uma determinada situação. Nem muito no começo da doença (o uso proposto no tratamento precoce), porque, ao cortar a resposta imunológica inicial, o vírus pode agir mais e você induzir essa reação exagerada mais tarde, e também nem no final, porque a resposta imunológica já passou”, considera o médico rádio-oncologista Marcos Santos, professor da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB).
Ainda assim, apesar das evidências científicas em contrário, não faltaram histórias de supostos “milagres” com o uso de corticoides, como o relatado por Damares no Piauí. Outro caso aconteceu no Pará, em um dos momentos em que os hospitais do estado estavam à beira do colapso, em meados de junho de 2020. Na época, unidades de saúde locais seguiram recomendações do médico imunologista paulista Roberto Zeballos, que propôs o uso domiciliar de corticoides, antibióticos e anticoagulantes para pacientes positivados, com o objetivo de prevenir internações. A “experiência” foi anunciada como o “milagre do Pará”, que teria tratado 323 pacientes e resultado em apenas 40 internações e uma morte. Na época, Zeballos foi alçado à condição de uma das estrelas do tratamento precoce no país. Como o protocolo de Bucar, as receitas do imunologista também se espalharam Brasil afora e passaram a ser promovidas por pequenas prefeituras, clínicas privadas e hospitais regionais.
Em agosto de 2021, mesmo após evidências apontarem que o uso domiciliar de corticoides não tem eficácia, Zeballos publicou resultados do suposto “milagre” na SCIRP, uma revista considerada predatória por publicar artigos de baixa qualidade mediante pagamento de taxas editoriais. Nas conclusões, o médico indicava que o tratamento proposto reduzia a necessidade de hospitalização. “Esse uso, que não funciona para covid, pode causar retenção de líquido e crise hipertensiva. Em idosos, pode gerar alterações neurológicas e episódios de confusão. Nos diabéticos, há o risco de descontrole da glicemia. Já em casos mais leves, em tese, poderia retardar o desaparecimento da doença”, avalia o médico intensivista Wagner Nedel. Zeballos foi contatado por meio de sua secretária pessoal, mas estava de férias e não retornou até o fechamento desta reportagem.
O que diz a ciência sobre corticoides contra covid-19?
Tanto o uso de corticoides via oral em pacientes leves, que estão em tratamento domiciliar e não precisam de internação hospitalar ou de suporte de oxigenoterapia, como também o de doses altas e imunossupressoras em pacientes graves e internados são incorretos, diz o médico infectologista Alexandre Naime, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “O único uso comprovado são 6mg de dexametasona uma vez ao dia em pacientes em oxigenoterapia. Qualquer coisa que fuja disso está fora do lastro científico”, diz. Naime conta que ver pacientes recebendo corticoides em casos de covid-19 leve não tem sido incomum durante a pandemia, e ressalta que o uso domiciliar do remédio pode piorar quadros ou, a depender da dose receitada, gerar infecções oportunistas, dado o enfraquecimento na imunidade do paciente. “No entanto, é um remédio importantíssimo para o tratamento da covid em quem necessita de oxigênio ou ventilação mecânica”, ressalta o infectologista.
Médicos têm autonomia para ignorar evidências?
O médico rádio-oncologista Marcos Santos, professor da Cátedra Unesco de Bioética da UnB, explica que a primeira obrigação ética da medicina é não causar dano ao paciente, e que a segunda é beneficiá-lo por meio dos tratamentos receitados. “Então, pelo conhecimento atual, cada vez mais não estou sendo beneficente ao não usar as melhores evidências disponíveis”, diz Santos. Na avaliação do professor, a decisão do Conselho Federal de Medicina que autoriza a prescrição de remédios ineficazes contra a covid-19 à revelia de evidências abriu brecha para a politização de um debate científico, o que dificultou a implementação de medidas comprovadas. Nesse bojo, a autonomia médica, um dos nortes da profissão, se tornou a justificativa para a oferta de tratamentos pseudocientíficos. “Tenho autonomia para usar cloroquina na covid hoje, por exemplo? Não, por causa da falta de beneficiência”, conclui.