OPINIÃO

Sobre a emergência do novo

Por Marcos Rolim* / Publicado em 12 de setembro de 2014

Em 22 de julho de 2013, participei de um evento no Palácio Piratini, Vozes das ruas, promovido pelo governo do estado, para debater os significados das manifestações que haviam sacudido o país. Os ex­tratos que seguem são partes de minha intervenção naquele dia. Os reproduzo aqui, porque os imagino úteis para pensar o momento político pré-eleitoral, a emergência do novo e a total incapacidade da política tradi­cional de compreendê-lo.

O COMEÇO – “Todos os começos possuem um elemento de total arbitrariedade”, dizia Han­nah Arendt. Esta condição de dar início a algo no mun­do, de providenciar que algo até então inexistente surja, é equiparado por ela ao fenô­meno da natalidade; afinal, “Todos nós viemos de lugar nenhum e iremos desapare­cer para o nada”. A tentação que temos, entretanto, é a de sempre situar os fenômenos que emergem como desdo­bramentos naturais e neces­sários de outros fenômenos já catalogados. O fato é que eles não são este desdobra­mento. Há muito de casual em todo início, assim como muito de ilógico e espantoso. E ainda bem que as coisas são assim. Se vivêssemos em um mundo de pura necessi­dade, onde tudo o que nasce fosse o resultado previsível de uma dinâmica causal, não haveria escolhas possíveis.

Sobre a emergência do novo

Ilustração: Pedro Alice

“Há muito de casual em todo início, assim como muito de
ilógico e espantoso. E ainda bem que as coisas são assim. Se
vivêssemos em um mundo de pura necessidade, onde tudo o
que nasce fosse o resultado previsível de uma dinâmica causal,
não haveria escolhas possíveis”

Ilustração: Pedro Alice

O DESCOLAMEN­TO – Vivemos uma expe­riência de descolamento de parte expressiva da cidadania diante das instituições tradi­cionais da política (os parti­dos); da religião (as Igrejas) e da indústria cultural (os veículos de comunicação so­cial). Diante disso, pergunto: em termos históricos, este deslocamento configura um fenômeno progressivo ou regressivo? Descon­siderando o que é secundário ou mesmo irrelevante, as multidões que saíram às ruas aumentaram as possibilidades de mudanças virtuosas ou agregaram ameaças? Para os que apreciam metáforas óbvias: qual o seu gigante pre­ferido, o que acordou ou o que dormia? Desde uma posição conservadora, parece claro que a preferência recairá sempre sobre um gigante que hiberne, se possível em todas as estações.

UM MUNDO GRÁVIDO DE OUTRO – Os deuses costumam apreciar as ironias. O que parece ser ainda mais verdadeiro no Olimpo quando o assunto é o Brasil. Entre nós, os movimentos jovens de protes­to – movimentos de borda e de ativismo autoral (para empregar dois dos conceitos utilizados por Marina Silva desde 2010), sem lideranças e hierar­quias, organizados horizontalmente a partir das redes sociais e com reivin­dicações difusas, passaram a ser vistos com desconfiança, temor e contida hostilidade por importantes setores da esquerda tradicional. Já a esquerda ortodoxa, que esteve desde o início presente nas mobilizações, não percebeu que as aspirações genéricas por mudanças envolviam também a recusa às formas tradicionais de mani­festações políticas controladas e dirigidas por partidos. O re­sultado foi e segue sendo o de um estranhamento notável. Um estranhamento que não é apenas de ideologias, lingua­gens e valores, mas de mundos mesmo. Nosso mundo que está grávido de outro não reconhe­ce o que está gestando nem de­seja o parto. Penso que o novo mundo se rebela, porque não se conforma com a ausência de caminhos, com o deserto de ideias e, sobretudo, com o ci­nismo.

UM MODELO EXAU­RIDO – Seria preciso que a política fosse o espaço para as reformas que moldassem as instituições de acordo com as tradições e os valores mais generosos que a humanidade produziu, mas e se as institui­ções políticas tiverem se tor­nado, precisamente, o centro desta impossibilidade? Se che­gássemos à conclusão de que o modelo político que temos fosse o maior impedimento para qualquer processo de re­forma? Se descobríssemos que este modelo forjou lideranças que não lideram, gestores que não administram e represen­tantes que não representam? Que a grande maioria dos que ocupam funções públicas está orientada por objetivos de Poder, sempre to­mados como prioritários diante de qualquer ideia ou mesmo de qualquer princípio?

O modelo político que temos diz respeito a um mundo que se tornou deserto. Não apenas porque está vazio de perspectivas utópicas, mas porque o vazio produzido pelo fim das utopias só se tornou vazio pela ausência de valores. Essa é a maior e a mais importante mensagem que brotou nas ruas do país, em meio ao gás lacrimogêneo e às balas de borracha. E essa é, precisamente, a única mensagem que não será ouvida pelos donos do Poder.

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