Foto: Alan Santos/PR
Escrevo este texto na manhã do dia 3 de outubro sob o impacto dos resultados do primeiro turno da disputa presidencial e da eleição para os parlamentos estaduais e federais.
O que se pode afirmar, por enquanto, é que a extrema-direita se consolidou no Brasil como uma força político-ideológica hegemônica e com ideário situado nos anos 30 do século passado.
O Brasil, que foi anunciado como “O País do Futuro”, por Stefan Zweig, parece se definir mais propriamente como “O País do Passado”.
Lula, é claro, tem boas chances de vencer o segundo turno, porque a vantagem de 6 milhões de votos sobre Bolsonaro é significativa.
Tudo indica, entretanto, que teremos eleições disputadas palmo a palmo e em um clima de tensionamento e radicalização crescentes, agravado pela circunstância inédita no Brasil de termos núcleos radicalizados de uma facção formada por “patriotas” armados.
Penso que a realidade política brasileira foi radicalmente alterada pela chegada da extrema-direita ao poder, o que exigirá uma revisão muito ampla dos pressupostos compartilhados por todas as demais visões políticas e ideológicas. Mais do que isso: entendo que essa situação aponta para uma complexidade a desvendar a respeito das causas e das dinâmicas que operam o vendaval em que milhões de eleitores se identificam com figuras públicas notoriamente autoritárias, intolerantes e medíocres.
Observe-se, por exemplo, o perfil de grande parte dos eleitos para o Senado. Aqui no RS, os eleitores mais conservadores tinham a opção de votar em Ana Amélia. Trata-se de liderança muito conhecida, tradicional defensora do agronegócio e, em uma perspectiva conservadora, alguém reconhecidamente competente como parlamentar.
Quase a metade do RS, entretanto, descarregou seus votos no general da reserva Hamilton Mourão, admirador de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o único militar a receber uma sentença em ação cível no Brasil que o reconheceu como torturador. Há algo nessa opção – me refiro aos votos da direita gaúcha – que não se explica pelo conservadorismo.
Há situações ainda mais impactantes em outros estados, como a eleição para a Câmara Federal, com a maior votação do RJ, do general Eduardo Pazuello, aquele mesmo que declarou, ao assumir o Ministério da Saúde no auge da pandemia, que “não conhecia o SUS”.
Pazuello, ignorante em Saúde pública, recomendou cloroquina aos doentes a mando do seu chefe e fez uma das gestões públicas mais desastrosas de que se tem notícia, chegando ao cúmulo da inércia que agenciou a crise de falta de oxigênio em Manaus/AM.
Ele deveria estar sentado no banco dos réus e, possivelmente para evitar esse desfecho, candidatou-se à Câmara Federal. Mais de 200 mil eleitores compreenderam o gesto e resolveram premiá-lo com um mandato.
Algo semelhante ocorreu com Ricardo Salles, outro ex-ministro de Bolsonaro, principal articulador do desmonte dos mecanismos de controle ambiental no Brasil e investigado “por advocacia administrativa, criar dificuldades para a fiscalização ambiental e atrapalhar investigação de infração penal que envolva organização criminosa”.
Esse cidadão (4º mais votado) teve quase três vezes os votos obtidos em São Paulo por Marina Silva (14ª mais votada), a mais destacada defensora da floresta no Brasil e prestigiada liderança mundial na luta contra o aquecimento global.
A opção aqui foi a de “passar a boiada”, o que também não se explica pelo conservadorismo, mas assinala absoluta ausência de apreço pelo interesse público.
Como explicar esse fenômeno de consolidação de uma representação política de extrema-direita no Brasil?
Por que os sentimentos de insatisfação com os governos petistas, por exemplo, não consolidaram alternativas políticas situadas ao centro, com um perfil liberal-democrático?
Por que, pelo contrário, as posturas moderadas entre os conservadores migraram para uma plataforma extremista que sequer se dá o trabalho de inovar os slogans dos movimentos nazifascistas como “Deus, Pátria e Família”, criado pelo integralismo de Plínio Salgado, e “Brasil, acima de tudo” (Deutschland über alles), criado por Hitler?
O tema deve ser objeto de pesquisa, e uma das hipóteses é a de que milhões de pessoas tenham escolhido candidatos de extrema-direita não porque sejam “fascistas de carteirinha”, mas porque aderiram a narrativas radicalizadas e impulsionadas pelo ódio, customizadas com o auxílio de algoritmos e reproduzidas em espaços não públicos de circulação de informações, em “bolhas” no WhatsApp, Telegram, etc.
Estaríamos, assim, diante de um processo sistêmico de sequestro do debate público e de formação da opinião por grupos extremistas realizado inteiramente na ausência do contraditório. Essa possibilidade ajudaria a compreender, também, processos expressivos de migração de intenções de voto às vésperas do pleito, não capturadas pelos institutos de pesquisa.
O caminho aberto pela extrema-direita é, claramente, o da radicalização, o que ameaça nossa frágil democracia. Resta saber o quanto ainda teremos dela após o dia 30.
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.